Acender velas para gastar menos luz. Comer menos para poupar na conta do supermercado, uma refeição por dia chega. Não ter filhos. Vestir mais uma camisola e um casaco por cima dela para não ter de ligar o aquecedor. Não ficar doente. Sair menos à rua ou sair prevenido com uma peça de fruta ou uma sandes e água. Comprar o passe apenas em caso estritamente necessário, de resto, andar a pé. Encontrar estratégias para não pagar telefone e não pagar internet. Acumular louça para abrir uma só vez a torneira. Usar a torneira de água quente exclusivamente para o duche. Se o mês chegar antes do meio do mês, jantar em casa de amigos e aceitar o auxílio do pai ou da mãe. Não sair com os amigos a não ser para passear num jardim ou ir ver uma exposição ao domingo. Não ir ao cinema, não ir ao teatro, não comprar livros nem jornais, não fazer inscrições em seminários, cursos ou ateliers. Não ter dias da semana nem fins-de-semana. Falar o menos possível entre nós sobre isto e menos ainda àqueles que não estão na mesma situação em que nós estamos. Ser tolerante quando alguém avaliar a sociedade por si próprio. Ser tolerante quando falarmos de preocupações com a renda a alguém que nos responde que está na mesma situação e a seguir nos convida para jantar fora. Ser tolerante com as nossas lágrimas e implacável quando chega o momento de sair da cama de manhã. Enviar muitos CV's, todos os dias. Ter no mínimo três CV's em várias línguas: um muito reduzido, com o mínimo de habilitações académicas, um médio com as principais experiências profissionais e o registo completo das habilitações académicas e um verdadeiro, para não nos esquecermos de que estivemos sempre a trabalhar. Ter vergonha. Ter medo. Saber esperar sem ter mais nada a esperar. Não ter tempo precisamente quando se tem todo o tempo do mundo. Ouvir quando o amigo nos diz que quando estou parado começo logo a sentir-me um logro e lembrar a frase quando formos nós o logro. Saber estar em silêncio, porque o prazer é possível mas a esperança não. Lembrar quando nos disse que quando as perspetivas se reduzem a nada, todos os caminhos parecem válidos e achamos que nunca estamos a fazer o que realmente devíamos estar a fazer e lembrar muitas vezes que perante o que temos é obsceno ficar e contudo, também não podemos partir, porque tudo é um grande talvez ou um grande nunca ou um grande não sei ou um grande não aguento mais. Quando deixar de ser possível pensar, será ainda possível respirar. E quando já não for possível respirar, talvez seja doce.
Para o Pietro Romani, que nunca me deixou só.
16 de outubro de 2014
14 de outubro de 2014
Li no Gulistan, ou Jardim das Flores, de autoria do xeque Sadi de
Shiraz, que um dia perguntaram a um sábio: «Entre as muitas árvores
célebres que o Altíssimo Deus criou altaneiras e umbrosas, nenhuma é
chamada azade, ou livre, exceptuando o cipreste, que não dá frutos. Qual
o mistério disso?» O sábio replicou: «Cada uma tem seu fruto adequado e
sua estação determinada, durante a qual fica fresca e florida e fora
dela seca e murcha; o cipreste não está sujeito à variação de estados,
está sempre a florescer. Da mesma natureza são os azades ou religiosos
independentes. Não ponhas o teu coração no que é transitório, porque o
Dijlah, ou Tigre, seguirá fluindo através de Bagdade mesmo depois de a
raça dos califas se extinguir. Se as tuas mãos estão cheias, sê liberal
como as tamareiras, mas se estão vazias, sê um azade, ou um homem livre
como o cipreste.»
Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques
Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques
13 de outubro de 2014
Mon cas n'est pas unique: j'ai
peur de mourir et je suis navrée d'être au monde. Je n'ai pas
travaillé, je n'ai pas étudié. J'ai pleuré, j'ai crié. Les larmes et
les cris m'ont pris beaucoup de temps. La torture du temps perdu dès
que j'y réfléchis. Je ne peux pas réfléchir longtemps mais je peux me
complaire sur une feuille de salade fanée où je n'ai que des regrets à
remâcher. Le passé ne nourrit pas. Je m'en irai comme je suis
arrivée. Intacte, chargée de mes défauts qui m'ont torturée. J'aurais
voulu naître statue, je suis une limace sous mon fumier. Les vertus,
les qualités, le courage, la méditation, la culture. Bras croisés,
je me suis brisée à ces mots-là.
Violette Leduc, La bâtarde
12 de outubro de 2014
tinha uma avó que comia medula
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização
não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização
não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece
11 de outubro de 2014
Há textos que gostamos mais de escrever que outros. Talvez porque tenham
aquele efeito de livro arrumado, acabado de ler, ao qual não voltamos
com a mesma excitação porque sabemos que depois de escalado o muro há um
jardim arruinado.
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.
Raquel Nobre Guerra
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.
Raquel Nobre Guerra
9 de outubro de 2014
Alguns narradores contam que Medeia, em fuga, não teve possibilidade de
levar consigo os filhos que, perante a negligência de Jasão, foram
apedrejados até à morte pela família de Creonte, como vingança.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.
De artigo da Wikipédia completo aqui.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.
De artigo da Wikipédia completo aqui.
Fui ver uma exposição muito estranha, no Museu de São Roque (Visitação, curadoria de Paulo Pires do Vale). Entre
os objetos do espólio da Misericórdia de Lisboa expostos,
encontram-se alguns exemplos de cartas que eram entregues com as
crianças que deixavam na roda. O costume era que a cada criança correspondesse um
identificador, entregue com essas cartas, que funcionasse como prova de
pertença: apenas quem tivesse a outra metade a poderia resgatar. Pelo
menos de acordo com a proporção que é mostrada nas vitrines, a grande
maioria das crianças era entregue com cartas de baralho e cautelas de
lotaria. Quem as entregava fazia um recorte único, transformando-os em peças
de um puzzle. Também há outros exemplos, como cabelo, dados e até uma pequena e
incompreensível escultura em palha. Alguns são bastante
elaborados, e ricos, como é o caso de uma bolsa de seda vermelha bordada
e umas meias de renda branca fina.
Fora da galeria, na igreja de São Roque, estão dois écrãs, cada um com o rosto de uma criança do filme Casa de Lava de Pedro Costa, cuidadosamente escondidos em cada um dos lados do transepto, certamente para não perturbar a oração.
Fora da galeria, na igreja de São Roque, estão dois écrãs, cada um com o rosto de uma criança do filme Casa de Lava de Pedro Costa, cuidadosamente escondidos em cada um dos lados do transepto, certamente para não perturbar a oração.
[Em
Portugal] a surdez profissional é hoje a primeira na tabela das doenças
de trabalho e os números absolutos não parecem cessar de aumentar.
(...). No Canadá, os estudos sobre som tiveram uma influência directa na
criação de um novo tipo de legislação anti-ruído, mais eficaz, que tem
em conta a natureza específica da escuta. Em França, a dimensão sonora
do ambiente faz parte dos currículos escolares e é uma valência
importante em áreas como a dos estudos artísticos ou a arquitectura, por
exemplo. (...). No Japão, há mais de quatrocentas associações que se
dedicam ao estudo e preservação do património sonoro. Imagine-se um
grupo de cidadãos mobilizado em torno da preservação do simples som de
uma fonte ou de uma ponte de bambu.
Carlos Alberto Augusto, Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa.
Carlos Alberto Augusto, Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa.
7 de outubro de 2014
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