o teu filho
há-de conhecer
a subtileza da noite
no seu corpo
desvendar-se-á a ciência da solidão
e a terra
apesar de bela
manterá silêncio
quando ele lhe fizer apelo
22 de setembro de 2014
Quando fiz o Jacarandá com o Jonas Lopes, queria falar sobre a fragilidade. Estávamos os dois integrados num curso que a companhia Clara Andermatt promoveu em 2013 e para meu grande gáudio e surpresa, o Jonas declarou subitamente querer trabalhar comigo. Depois de lhe explicar o que tinha em mente fazer, o Jonas disse: «deixa cair tudo o que é acessório.» Foi nesse momento que comecei a trabalhar.
Escrevi a alguns amigos pedindo que me enviassem «os seus silêncios». Explicava que a palavra silêncio não deveria ser entendida de maneira literal pois referia-se aqui aos momentos em que nós próprios ficamos suspensos, em silêncio, perante o tempo e o espaço particulares a essa suspensão. Podia ser um momento em que decidissem agora vou-me sentar aqui 5 minutos a não fazer nada ou quando deparassem com alguma coisa que os remetesse a esse estado, enfim, seriam possíveis vários exemplos, como esse de sair à rua e descobrir que os jacarandás floriram durante a noite.
Mostrei cinco silêncios: da Vânia Rovisco, do Pietro Romani, da Andrea Brandão, do Gonçalo Alegria e da Vanda Medeiros. Conhecia todas as histórias por detrás destes silêncios, ou imaginei-as mas referi ao público apenas o lugar e a hora a que tinham sido gravados. A Vânia estava a passear na praça Tahir, em Istambul, poucos dias após a ocupação ter começado. O Pietro gravou o seu silêncio no jardim de Torres Novas, a poucos metros do lugar onde nasci. No silêncio da Andrea, o som da respiração e do coração dela ecoaram pela sala. O Gonçalo gravou o silêncio noturno da última casa onde viveu com a sua gata, dias antes de sair. A Vanda enviou-me o som do coração do filho dela, a bater no meio das suas águas, e nessa altura prestes a nascer. Entre as gravações contei uma história, explicando porque é que aos 10 anos comecei a interessar-me pela questão do silêncio. No processo, tudo isto era muito claro.
Um dia, estávamos ainda a ensaiar, a propósito de uma dificuldade que eu tinha de resolver, o Jonas interrompeu-me e perguntou-me: «o que é que tu queres mesmo fazer.» Tive um bocadinho de medo daquilo, mas respondi logo: «quero mostrar a minha mão a tremer. Porque nesse dia vou estar a tremer.» O Jonas respondeu «feito». No desenho de luz anotámos APAGAR TODAS AS LUZES e pacientemente o Jonas iluminou a minha mão com uma pequena lanterna. No entanto, quando mostrámos isto a primeira vez, recebi muitas hesitações em relação a este momento. Uma mão a tremer, isso não se mostra, disfarça-se. Havia que criar um movimento qualquer, uma diversão, beleza. Tentei aprender a fazer isso (como gostaria de saber dançar mesmo que fosse só com as mãos...). Mas qualquer coisa em mim se obstinava em limpar tudo em torno daquela mão e deixá-la tremer. Fosse como fosse, para o público bastariam os silêncios para a peça ser insuportável e o que eu queria fazer era demasiado depurado para uma primeira experiência. E o movimento para a mão foi estudado e ensaiado. Mas, embora tremesse muito menos do que tinha esperado (e neste caso, desejado), no dia da estreia deixei a mão praticamente imóvel sob a luz.
Para mim continua a ser o momento alto da peça. Não estou a falar de silêncio, estou a mostrar, a todos, o meu silêncio.
Escrevi a alguns amigos pedindo que me enviassem «os seus silêncios». Explicava que a palavra silêncio não deveria ser entendida de maneira literal pois referia-se aqui aos momentos em que nós próprios ficamos suspensos, em silêncio, perante o tempo e o espaço particulares a essa suspensão. Podia ser um momento em que decidissem agora vou-me sentar aqui 5 minutos a não fazer nada ou quando deparassem com alguma coisa que os remetesse a esse estado, enfim, seriam possíveis vários exemplos, como esse de sair à rua e descobrir que os jacarandás floriram durante a noite.
Mostrei cinco silêncios: da Vânia Rovisco, do Pietro Romani, da Andrea Brandão, do Gonçalo Alegria e da Vanda Medeiros. Conhecia todas as histórias por detrás destes silêncios, ou imaginei-as mas referi ao público apenas o lugar e a hora a que tinham sido gravados. A Vânia estava a passear na praça Tahir, em Istambul, poucos dias após a ocupação ter começado. O Pietro gravou o seu silêncio no jardim de Torres Novas, a poucos metros do lugar onde nasci. No silêncio da Andrea, o som da respiração e do coração dela ecoaram pela sala. O Gonçalo gravou o silêncio noturno da última casa onde viveu com a sua gata, dias antes de sair. A Vanda enviou-me o som do coração do filho dela, a bater no meio das suas águas, e nessa altura prestes a nascer. Entre as gravações contei uma história, explicando porque é que aos 10 anos comecei a interessar-me pela questão do silêncio. No processo, tudo isto era muito claro.
Um dia, estávamos ainda a ensaiar, a propósito de uma dificuldade que eu tinha de resolver, o Jonas interrompeu-me e perguntou-me: «o que é que tu queres mesmo fazer.» Tive um bocadinho de medo daquilo, mas respondi logo: «quero mostrar a minha mão a tremer. Porque nesse dia vou estar a tremer.» O Jonas respondeu «feito». No desenho de luz anotámos APAGAR TODAS AS LUZES e pacientemente o Jonas iluminou a minha mão com uma pequena lanterna. No entanto, quando mostrámos isto a primeira vez, recebi muitas hesitações em relação a este momento. Uma mão a tremer, isso não se mostra, disfarça-se. Havia que criar um movimento qualquer, uma diversão, beleza. Tentei aprender a fazer isso (como gostaria de saber dançar mesmo que fosse só com as mãos...). Mas qualquer coisa em mim se obstinava em limpar tudo em torno daquela mão e deixá-la tremer. Fosse como fosse, para o público bastariam os silêncios para a peça ser insuportável e o que eu queria fazer era demasiado depurado para uma primeira experiência. E o movimento para a mão foi estudado e ensaiado. Mas, embora tremesse muito menos do que tinha esperado (e neste caso, desejado), no dia da estreia deixei a mão praticamente imóvel sob a luz.
Para mim continua a ser o momento alto da peça. Não estou a falar de silêncio, estou a mostrar, a todos, o meu silêncio.
20 de setembro de 2014
18 de setembro de 2014
A minha mãe diz que o dia em que eu nasci era
feio de assustar, com uma tempestade violenta a fazer abanar o céu, a
crosta terrestre e o que há pelo meio. Depois diz que eu era tão bonita
que foi como ver nascer o sol, que todos na maternidade quiseram ver.
Quando contava isto olhávamos sempre uma para a outra a sorrir, como quem reconhece que alguma coisa neste mundo deve estar certo: eu tinha encarnado alguma coisa desse contraste.
Quando contava isto olhávamos sempre uma para a outra a sorrir, como quem reconhece que alguma coisa neste mundo deve estar certo: eu tinha encarnado alguma coisa desse contraste.
16 de setembro de 2014
Lembro-me duma passagem em que o protagonista pensa ter matado o seu perseguidor. E logo pensa: se o matei, não resolvi coisa alguma porque o mal é mais profundo.
(...).
Também é por isso que os meus leitores se afeiçoam a mim; temos em comum o desprezo pelas ideias fixas. Mas reconheço que uma tal personalidade, que envolve na tolerância tanto os erros menores como os pequenos vícios, acaba por desculpar até os crimes.
Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.
(...).
Também é por isso que os meus leitores se afeiçoam a mim; temos em comum o desprezo pelas ideias fixas. Mas reconheço que uma tal personalidade, que envolve na tolerância tanto os erros menores como os pequenos vícios, acaba por desculpar até os crimes.
Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.
Ando pela cidade a resolver pendentes com lassidão, como se estivesse a fazer recados à mãe e houvesse no dever certa chave para a liberdade. Ameaça chover mas não chove, ameaça fazer sol mas o sol só timidamente aparece. O meu leque persegue-me, cada vez mais perto do corpo. Na última casa onde entro, portando já a centelha de melancolia dos fins (que não é melancolia, uma vez li uma palavra que definia isso muito melhor e que infelizmente não recordo agora), encosto-me ao balcão de madeira enquanto espero. A empregada regressa e ao ver o leque negro sair do bolso diz «Isto está impossível» ao que vou para responder que «É verdade, mesmo nas casas com...» mas ela interrompe-me completando de imediato a frase de forma tão eloquente que me deixa sem reação por uns segundos. «Com ar condicionado, sim» e continua. Fala como se adivinhasse os meus pensamentos mas sem a hesitação que me caracteriza. Não diz apenas que está um calor húmido, depois de o descrever faz-lhe corresponder os efeitos que lhe provoca no corpo e no espírito, diz entre as frases esta frase: «Parece que o tempo parou.» Estou maravilhada. Tenho os olhos abertos para ela, sorrio. Puxo mais pelo assunto e ela faz-me a vontade, fala sobre as condições meteorológicas como se falasse de um tratado de paixões da alma ou de Dante. Qualquer coisa assim, qualquer coisa que preenche os espaços e soa virtuosamente. Ouvir a sua voz, foi a coisa mais importante que me aconteceu hoje.
No regresso a casa recordo-me subitamente de Strangers talk only about the weather. Desconheço maior talento que o de fazer repercutir nos outros diálogos de onde nos ausentámos.
No regresso a casa recordo-me subitamente de Strangers talk only about the weather. Desconheço maior talento que o de fazer repercutir nos outros diálogos de onde nos ausentámos.
o meu destino é desiludir
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.
15 de setembro de 2014
14 de setembro de 2014
13 de setembro de 2014
Da mesma maneira que uma pessoa não nasce com o corpo que escolheu, também não escreve sobre o que quer. Bem posso passar a vida à procura de uma ideia para uma novela, a mão há-de sempre fugir-me para outro lado, com um desejo próprio, que me supera. Foge para ali disposta a desintegrar-se e daí parece não querer sair. Toda a minha aprendizagem serve no fundo para lhe dar ouvidos, me tornar submissa. Sempre fui demasiado rebelde. A insatisfação devora-me e se tivesse de confessar algum pecado teria certamente de ser o da impaciência.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.
Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:
Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?
Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:
Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.
Perguntei-lhe:
Como é que se chamava a bisavó?
Não sei.
Também não.
Nem ele.
Nem eu.
Mas a titi sabe.
Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.
Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:
Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?
Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:
Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.
Perguntei-lhe:
Como é que se chamava a bisavó?
Não sei.
Também não.
Nem ele.
Nem eu.
Mas a titi sabe.
Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.
12 de setembro de 2014
11 de setembro de 2014
Hoje no jardim do Príncipe Real, entre as barracas montadas com roupa à venda, debaixo da samaúma ao lado dos quiosques, estavam dois holofotes mecânicos a apontar para o céu. A música, eletrónica, também soava como numa discoteca, mas as pessoas pareciam nem a ouvir, sentadas nas esplanadas, descontraídas, a conversar. É a segunda vez que encontro um jardim assim recentemente. Na Estrela, há algumas semanas, a música estava tão alta que para meu pasmo o som da vibração do metal que contorna o jardim se misturava ao ritmo alucinante. Nesse dia, não consegui sequer perceber que tipo de música era. Creio que soavam várias ao mesmo tempo ou pelo menos assim pareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
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