4 de setembro de 2014

A cultura mediterrânica não é uma cultura trágica. A sabedoria não substitui a ciência como fim supremo e, quando nós encaramos a obra de Dante como expressão do trágico, é porque a grande cultura tem sempre qualquer coisa em comum: a grande dor, que faz o homem descer às últimas profundezas e despojar-se da sua confiança. O acto criador é um acto a que falta confiança. 

Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.

2 de setembro de 2014

sem começo
ou resultado
a fábrica pondera

1 de setembro de 2014

A sensação dominante em quem tem asco dos animais é a do medo de ser reconhecido por eles quando se lhes toca. Aquilo que, no mais fundo de nós, nos horroriza, é a consciência obscura de que em nós alguma coisa vive, tão pouco estranha ao animal que nos causa asco que ele a poderia reconhecer. Todo o nojo é originalmente nojo do contacto.

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento


Quando era criança, tinha tanto medo de cães que bastavam uns segundos diante de um para que o animal reagisse, invariavelmente, atacando. Se alguns ataques seguidos me fizeram começar a receá-los e mesmo a conseguir antecipar a investida no olhar do animal, outros não deixaram de me surpreender, como no dia em que descia uma ladeira de bicicleta e um pequeno cão preto sentado no passeio saltou do seu sossego para vir enfiar os dentes na minha perna, que já não largou apesar de pedalar energicamente, fazendo-me desistir do meu equilíbrio para me defender. Guardo portanto pequenas marcas de várias mordidas, nenhuma suficientemente grave que tivesse convencido o meu pai a desistir de me transformar numa amante do melhor amigo do homem.
O meu pai sempre teve uma paixão por animais, especialmente por cães. Conheci-lhe vários em diferentes fases da vida, uns rafeiros outros de raça, uns comprados outros oferecidos por amigos, uns pequenos outros grandes. Era frequentador de concursos e exposições de canicultura, onde eu também era chamada a ir. Entrava no parque de diversões mais aterrador do mundo forçada a controlar o meu pavor, para que não se tornasse em pavor do meu próprio pai: de o desiludir e de, em consequência, ver a sua fúria abater-se. A pressão era tanta que tenho agora a sensação de mal respirar.
Em minha casa sempre houve cães. Na maioria das vezes ficavam presos na cozinha ou no quintal, mesmo quando eram considerados meigos. Mas essas trelas nunca eram suficientemente curtas e muitos desses dóceis animais tiveram de sair de casa por me atacarem constantemente. Houve alturas em que o meu medo ameaçava atingir proporções incontroláveis e eu não dormia pensando que no dia seguinte teria de passar novamente a meros centímetros do bicho para entrar na cozinha e tomar o pequeno almoço. Os dias eram preenchidos por provas constantes, como esta. Talvez conseguisse passar, talvez não. Talvez conseguisse fazer uma festa se me obrigassem, talvez não. Talvez o animal me ignorasse, talvez me rosnasse. Numa coisa, no entanto, nunca acreditei: que iria deixar de ter medo. Apesar de todas as tentativas do meu pai e dos anos que passavam, tudo o que conseguia era tentar fingir o mais possível e o melhor possível. Mas esse medo, sentia-o definitivo. E de que tinha eu medo?
A pergunta angustiou-me anos a fio. De que tinha eu, afinal, medo? Ter medo de um grande Retriever de Labrador negro pode até, se puderem usar da vossa benevolência, ser compreensível. Mas que medo se pode ter de um cão de pequeno porte cujos latidos não chegam a acordar as moscas? Mesmo quando ganhava coragem para falar nisso, as minhas explicações, francas e cuidadosas, não eram compreensíveis, ou pelo menos não surtiam consequências. Os cães foram aparecendo e ficando, até que finalmente um deles me mordeu tantas vezes que a minha mãe ganhou coragem para formular a frase inteira diante do meu pai: «Não podemos ter o animal aqui em casa.» E eu tinha pena do animal ter de sair, um cão rafeiro de porte médio a quem chamámos Bolinhas, cujo dono anterior tinha maltratado. O meu pai explicava-me que era para se defenderem que atacavam. Explicava-me que era por pressentirem o meu medo que reagiam e que se eu não demonstrasse medo, nada acontecia. Mas eu tinha medo na mesma e não percebia. O meu medo não tinha tido origem numa mordida de cão. Era anterior. Não acontecer nada não fazia sentido, pois o meu medo original não era medo do ataque. Na minha inocência, eu pensava: «Se eles o pressentem, bem posso pretender demonstrar que não o tenho.» O que o meu pai me queria fazer perceber, concluía então, era que podia transformar o meu medo, podia erradicá-lo. Erradicar o meu medo definitivo. Creio que poderei ter considerado ser essa a mais incontestável prova de amor, que é a mais excelente de todas as coisas. E havia que prová-lo. Só podia ser essa a razão para que, depois do Bolinhas, tivéssemos continuado a ter cães e não um gato, como eu tanto pedia ao meu pai. «Um dia trago um gato!», dizia a rir-se e fazendo-me rir, aumentando a minha expetativa, mas voltava sempre com um cão.
À entrada do inferno está um cão com três cabeças que sofre de enxaquecas contínuas. Não sei onde a li mas nunca mais esqueci a frase. Quando pensava no meu medo começava por pensar nisto, existe um cão à porta do inferno cujo olhar múltiplo está cego pela dor. Tinha esperança de poder desvendar certo segredo a partir dela, pois me parecia ser idêntico àquilo que o meu pai me tentava explicar. Tinha também um certo fascínio por este animal mitológico, cuja dor, que eu bem sabia ser terrível, era exponencial e ininterrupta. Quem me negaria que todos os cães pudessem sofrer do mesmo mal? E que o inferno não seria a origem ou o destino de todos eles? Sem dúvida, pelo visto, era o lugar.
Continuei a tentar modificar o medo muito depois da separação dos meus pais. Assisti a inúmeros programas televisivos sobre cães, li livros sobre treino de cães, ouvi atentamente os donos falarem sobre a sua personalidade. Mas os truques não funcionavam comigo e os cães continuavam a pressentir o medo, desatando a latir ou atacando. Já crescida, cheguei a decidir que simplesmente não voltaria a ser mordida nem nenhum cão me faria atravessar a estrada para fugir dele: se algum me atacasse, sofreria de volta o meu ataque impiedoso. Afinal, agora eu era maior que eles, pensamento que funcionou até me encontrar num pequeno apartamento ao lado de um Grand Noir, que felizmente era o cão mais pachorrento do mundo e se estava nas tintas para se eu tinha medo dele ou não: com medo ou sem medo, ninguém naquela casa tinha dúvidas sobre quem tinha mais poder e pese muito embora essa realidade, quando o vi a primeira vez ele dormia ao lado do berço de um recém-nascido. Não fiz qualquer confissão sobre o meu horror pois percebi, não sem alguma incredulidade, que ele ainda me dominava. O último cão que tivemos, uma cadela Teckel de pelo curto chamada Boneca, conseguiu contudo estabelecer comigo uma amizade admirável. Nunca me atacou, pelo contrário, defendia-me dos outros cães. Mas rosnou-nos uma vez, quando teve filhos, e respeitando o aviso a minha mãe disse-nos que não podíamos entrar onde ela estava. Quando morreu, atropelada por um bêbado ao volante, sofri como se tivesse sido uma pessoa a morrer. Nem ter tomado a decisão nem a Boneca, erradicaram o medo ou o tornaram mais compreensível. Continuo a saber que posso voltar a ser atacada a qualquer momento e a pensar nisso de tempos a tempos. Aprendi contudo a controlar a angústia mas não sei até que ponto essa terá sido uma aprendizagem positiva. Viver sem angústia é viver cautelarmente, e a excessiva cautela com a vida é uma patética fraude da inteligência. Quando há um ano atrás vi a frase do Benjamin, percebi que tinha encontrado a resposta para o meu medo justamente porque ela deu lugar a uma angústia nova.

31 de agosto de 2014

Obstinado e rude, o meu coração batia oscilando sem resistência rumo ao que não conseguia ainda compreender. Durante muito tempo a minha vida foi feita de um filão de acontecimentos como este: a camada de pó debaixo da fria luz matinal, a estupefação perante um corpo violado, a transcendência da solidão, cuja linguagem particular sustentava a minha nudez, esta porém exausta, como um gato que todo o dia dorme ao sol. Mesmo a repetição tinha um sabor improvável e a violência desiludia pela sua fragilidade. Que poder teria sido mais ambíguo para uma mulher?
Mentir poderá ter sido a minha ocupação mais estável e profundamente apreciada. A minha maneira de me dirigir ao infinito, ou de o desmascarar, talvez fosse melhor dizê-lo. Mas como em todos os jogos, a façanha era insuficiente, limitada. O magnetismo está ausente nas vítimas, nelas o seu simulacro é infalível. A não ser que se tenha fé. Havia que desistir e isso tornou-se mais importante que tudo. Nenhuma outra origem me era acessível. De um grande silêncio imóvel, sem intriga, o prazer surgia peremptoriamente com uma alegria sofrida, como um parto. Sempre estive entre a bizarria e a elegância, impossível dizer se por medo se por coragem. Essas coisas são insignificantes quando se sabe rir e nada há de gratuito no riso, pois a vulnerabilidade é precisamente o que excede o confronto da bizarria e da elegância. Estabeleci pactos íntimos e familiares porque não acredito no tempo que, tal como o espaço, ilude, transmitindo contornos às coisas. E as coisas são sem contornos, sobretudo um corpo violentado. Talvez isto não possa ser dito sem fatalmente adquirir um cunho feminista ou pior ainda, esotérico, o que em ambos os casos falha tanto o alvo como querer acender um cigarro debaixo de água. Seja como for, cedo ou tarde tudo me desilude à exceção das flores que tenho à minha frente. Seria preciso fazer nascer botões em cada texto para que não fossem eles também uma desilusão. Mas as únicas forças demiúrgicas que encontrei estão latentes na escrita, não em mim. Eu sou uma operária, preguiçosa por sinal. Desconfio até que tenha sido a preguiça a causa de a pouco e pouco me ter tornado indiferente a todas as lutas, ao ponto de passar dias sem me alimentar. O que se passa lá fora? A toalha balança no estendal ao sol. Uma poeira metálica turva o horizonte fechado pela serra da Arrábida, o céu está azul mas insuficientemente azul e sob ele os telhados é que contam. Qualquer coisa me dói, qualquer coisa me enfurece. Como uma língua.
Houve uma altura em que as pessoas poupavam papel. Por nenhuma razão ligada à ecologia mas porque o papel era um bem precioso, a cujo uso era dada soberania nas suas vidas. Se ter papel em casa era prestigiante, a sua ausência nas gavetas correspondia à confirmação da singeleza, esta tratada como um sacramento. Lembrava-se assim que, material frágil de entre os mais frágeis, perante um destino comum, sabedoria e ignorância equivalem-se e que, acima da sua soberania, prevalecia ainda o imperscrutável mistério do gesto e do olhar, que nem todo o papel do mundo chegaria para esclarecer. A sua manipulação extraordinariamente exigente manteve-se intacta, como um estilete invisível, mesmo quando o seu valor decaiu, por via do crescimento da sua produção e da democratização do seu uso, ou seja, da escolaridade obrigatória. Cuidar do papel que se possui tornou-se ao tempo, em si, um fator meritório mas o elitismo dos mais instruídos alimentava-se dos contornos poéticos que descobria num cartucho de castanhas a arder. Lembro-me ainda, e não tenho assim tantos cabelos brancos, de ser zombada por me ter cortado numa folha que tinha acabado de retirar de um maço de papel para impressora. E com a mesma vivacidade me lembro de ter vigiado o sangue a aparecer, ocultando ao mesmo tempo o desejo de que a pele ali guardasse uma pequena cicatriz.

29 de agosto de 2014

Sob os plátanos, grupos de adolescentes sobem e descem a avenida que vai dar ao mar. Quatro rapazes, três negros e um branco, aproximam-se pela minha esquerda. Como uma mola, o meu olhar é atraído para o rapaz branco, louro, de olhos azuis, com a pele queimada, os ombros direitos e o peito a descoberto no limite de um corpo bem desenhado. Lembra-me o deus grego da praia da Nazaré, e sinto-me abençoada por poder ver aquilo que é único repetir-se. Quando nos cruzamos, ouço-o falar crioulo. «Noutro tempo», concluo no meu choque, «teria causado a minha destruição».
Estou há muito tempo parada à beira-mar quando subitamente, como se fossem algas, dois rapazes são trazidos pela água, um a cada lado dos meus pés. O mar recua e eles, deitados de barriga para baixo na areia, olham um para o outro, riem e num salto correm novamente para o mar, mergulhando de chapa numa onda. Creio que nem viram os meus pés no meio das suas cabeças.
Como são admiráveis estes rapazes! Quanto arriscam.
Tenho pena de há muito ter desistido de viver embora também haja privilégio em ter conhecido o íntimo terror da sombra. Voltar a ter um glossário é pois para mim um gesto da mais pura afirmação, todo feito de alegria e certeza. Falhei em tudo e já não tenho vergonha em declarar que amo o que o mundo despreza.

28 de agosto de 2014

27 de agosto de 2014

Quando ainda vivia soterrada, rapei o cabelo porque era a única coisa que podia fazer para afirmar que não pertencia àquele lugar. Tinha uma longa cabeleira loira carregada de caracóis pelo meio das costas e tive de ir a três cabeleireiros para conseguir livrar-me dela. Tinha 17 anos. Perguntaram-me se não queria guardar um caracol para recordação. Coisas assim desesperavam-me. No entanto era delicada, recusei agradecendo. Espantava-me nessa altura, e por vezes ainda me espanto, ao deparar-me com a diferença abissal entre a idade do meu corpo e a minha idade real. Talvez todas as mulheres nasçam velhas e por isso se espantem ao passar diante do seu próprio reflexo. E talvez por isso desejem os filhos. A quem mais passar essa sabedoria, que só se revela na solidão e àquele que se encontra em silêncio?

25 de agosto de 2014

Uma pessoa ofereceu-me um quadro com a imagem que tenho de mim própria. É o perfil de uma mulher sentada que olha para o vazio. Não se vê o seu olhar, não se sabe para onde é dirigido. Está sentada numa cadeira. Ao fundo está um móvel com algumas louças em cima e à direita dele um cortinado. É possível que ela olhe para o espaço para lá de uma janela ou para o espaço que medeia entre si e a janela. Vemos o seu cabelo louro cair sobre os ombros, um vestido azul claro antiquado.

Não tenho outro significado para o amor.

Que perigo maior do que ver o múltiplo unificar-se? O sentido dos nossos gestos escapa-nos. No limite talvez nem exista. Aquilo que defendemos é tenazmente obscuro. Acredito nessa obscuridade, para lá de tudo, uma obscuridade lodosa, inegligenciável, que nos racha como um talhante. O que acontece é precisamente o silêncio. Sou eu esta mulher sentada a olhar para o vazio ou para o espaço além da janela, à espera. Por vezes sorri mas ninguém a vê sorrir. Nunca fala. Ninguém a vê fazer nada senão esperar. O seu mistério é inacessível e abominável, sólido mas aviltante. Se pronunciasse uma palavra, seria para mostrar que não tem vergonha nem orgulho em ser observada. Ela vive onde o cabelo cresce, lento e silencioso território, intocado.

24 de agosto de 2014

no interior de todos os fogos
vigia-nos 
um ígneo jardim negro
cujas artérias
amplamente secretas
tocam o fôlego
que assusta as mãos

tudo dorme
um sono múltiplo
onde o verbo desemboca na morte
que toca a boca

e a luz sobe
como uma mulher madura
parada e insondável
treva de som

23 de agosto de 2014

«Venha cá dona! São artigos de luxo a 5€ para usar no baile de logo à noite, nem uma sardinha assada consegue comprar a este preço!», era a cantoria de uma cigana no mercado. Quando voltei para baixo, os artigos de luxo já estavam a 3,5€. As entradas no baile é que devem ser caras. Turista na minha própria terra, esquecida dos costumes e das regras silenciosas (as mais sólidas), meti-me com ela, para elogiar a sua alegria contagiante, mas só uma mulher muito velha a seu lado, provavelmente a mãe, me respondeu. Da bela jovem cigana vestida de negro só recebi um olhar fulminante, que me acertou em cheio num nervo e me matou.

22 de agosto de 2014

Uma cidade de província é mais imprevisível do que Londres e Paris, sempre postas em juízo pela informação dos seus escritores e dos seus visitantes.

Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - Jóia de Família
I have no memory for things I have learned, nor things I have read, nor things experienced or heard, neither for people nor events; I feel that I have experienced nothing, learned nothing, that I actually know less than the average schoolboy, and that what I do know is superficial, and that every second question is beyond me. I am incapable of thinking deliberately; my thoughts run into a wall. I can grasp the essence of things in isolation, but I am quite incapable of coherent, unbroken thinking. I can’t even tell a story properly; in fact, I can scarcely talk.

Franz Kafka

20 de agosto de 2014

Estive a ver na televisão um concurso com danças de salão e senti-me como se estivesse dentro da Matrix, vendo tudo passar-se diante dos meus olhos com uma lentidão extraordinária, mas sem perceber se o que estava errado era o mundo ou eu.