3 de agosto de 2014

A maior história de sempre é a da Bela Adormecida. Questões de natureza, como as que são levantadas na história do escorpião e do sapo, não me mantinham acordada quando a minha mãe enfim se levantava e saía do quarto. O choque da compreensão de todos os porquês causava-me uma certa alegria, ainda que por vezes uma alegria ansiosa do futuro, ansiosa pelo momento em que pudesse ver todas essas coisas manifestarem-se aos meus olhos: o mundo tal como ele é fascinava-me. Na história da Bela Adormecida havia contudo algo que era acrescentado ao mundo. E esses símbolos intrigavam-me.
O primeiro momento está logo no início: os dons das fadas. Dons que se oferecem, poderes a que a as nossas decisões se subordinassem. Não conseguia perceber a sua origem e o seu fim e contudo toda a história estava já contada neles, apenas não acontecida. O que significava então acontecer?
O momento posterior são os 100 anos do sono em que a princesa e o seu reinado mergulham e a floresta de espinhos que os envolve. Apenas aqueles que não fazem parte desse mundo permanecem acordados e apesar de serem vários os intrépidos aventureiros, há um cuja aproximação basta para desfazer os espinhos. Isto parecia-me injusto e deixava-me com vontade de resgatar os mortos: se nem sequer teve de enfrentar espinhos, que raio de força era a desse príncipe?
Restava enfim esse país de sono, vedado, interdito, secreto, e o que haveria nele, sonhos ou pesadelos, de que não era possível acordar.
Conheci uma mulher que assim que encontrava alguém pegava-lhe nas mãos. Enquanto cumprimentava a pessoa, pegava em ambas as mãos com ambas as mãos, acariciava-as e apertava-as, como se procurasse conhecer as suas formas apenas através do tato. Tudo o que fazia com as mãos fazia como se fosse cega e, também como os cegos, nunca chegava a olhar para elas.
Durante anos fugi dela. Desde cedo, tinha ganho o hábito de esconder as mãos; muitas vezes ouvi quem o estranhasse. Geralmente tapava-as com as mangas do casaco ou da camisa mas às vezes também as enfiava nos bolsos. Quando - o que, por me trazer uma enorme angústia, era raro - vestia alguma coisa que não me dava hipótese de as esconder, cerrava os punhos e escondia os dedos, hábito que por vezes ainda me surpreende quando, apesar de mim, assim as encontro. Da mesma maneira, sonhava e continuo a sonhar frequentemente com mãos e sobretudo com as minhas mãos. No último que me lembro, estavam a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, palavras demasiado marcantes a contrastar com a sensação de profundo conforto que essa transformação me proporcionava.
Na altura em que andava a esconder-me dela na rua, não as arranjava. Achava-as feias e inúteis, portanto inútil também dedicar-lhes tempo. Quando a preocupação com elas se tornou excessiva ao ponto de me fazer ficar em casa para que ninguém as visse, comecei a tentar aceitá-las: uma delas, a esquerda, feminina, com dedos finos e pele macia, leve; e a direita, a que escreve, com um calo no dedo, dedos grossos e curtos, masculina, pesada. A manutenção dessa aversão por mim própria ressoava sobretudo quando encontrava esta mulher. Ambas eram inescapáveis e assustadoramente reais, precisamente como se se tratasse de um sonho.
Agora que ela faz parte da minha família, cada encontro é um teste. Há que viver a vida com algum desinteresse.
http://martarema.tumblr.com/post/95380293315/carl-theodor-dreyer-gertrud-1964 
Edvard Munch
Two people, the lonely ones
Gravura, ponta seca, roleta e placa de tinta preto-castanho, 26,67x42,86 cm, 1894

1 de agosto de 2014

Há uma semana atrás, chorei pela primeira vez por uma dor que ignorei durante 23 anos. A redenção tem uma morte lenta, como os astros.

30 de julho de 2014

Tenho saudades do toque da fábrica fiação e tecidos e do ar fresco, luz oblíqua, que o acompanhavam. Contra a fealdade e a violência, construí um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns. Servi-me da matéria do mundo para me proteger do mundo e alojei-me onde as contingências sucedem, por ser o único lugar tangível. A cada recusa das formas, aperfeiçoei o movimento do sim mas do não só conheço a amplitude e a serenidade que medeiam entre mim e a morte. Não preciso de explicações e não gosto de explicar. Ter de explicar alguma coisa é para mim o suficiente para me por em fuga para outras paragens. Assim tem sido e não se pode ser quem se não é. Gosto de pedras e do vento que as dissolve, como deuses que se fossem esquecendo sem zelo da humanidade. Ouço-me desde o tempo em que ainda não tinha nascido, o mesmo em que te sorri pela primeira vez. Quando anoitece, como agora, escrevo, e como tenho muito sono de manhã, sonho com as manhãs que foram feitas para escrever. Tudo está bem. Se não te dou mais notícias para além destas é porque continuamente descobrimos que não precisamos de palavras para nos entendermos. Que ironia.

29 de julho de 2014


Até Salomão, o Amado, cercou Jerusalém de muralhas e recebeu tributos em troca de uma sabedoria que os profetas declararam ser divina.
Até Salomão, o Justo, deixou que a ambição e o amor maternos, que não retêm mácula, o levassem ao trono, purificando-o do sangue daqueles que por direito o reclamaram.
Até Salomão, o Pacífico, arrancou da terra os ciprestes para revestir o chão do Templo, dando-lhe o seu próprio nome.
A Rainha de Sabá deixou-se deslumbrar pelo seu palácio e glorificou o Rei de Israel mas o seu reinado soçobrou perante o maior de todos os enigmas.
Nenhum império prevalece sem o trunfo da hipocrisia.
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão - é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha.


Herberto Helder, Ou o Poema Contínuo.
Desde que se continue a ouvir a algazarra das crianças atrás dos muros das escolas, saberei onde está a beleza.

28 de julho de 2014


                               






























Frederick William Burton  
Hellelil and Hildebrand, the Meeting on the Turret Stairs 
Aguarela e guache sobre papel, 95,5x60,8cm, 1864

27 de julho de 2014

Eu que já estive a bater a bota um par de vezes e não sei como nem porquê não bati, que já sofri das doenças mais inesperadas, que já passei pelo enigma da dor física e descobri forças inexplicavelmente íntegras, fico paralisada quando sinto a mais ligeira impressão no ouvido.
Escondidos do calor daquela tarde, seis amigos escolhem filmes que não chegam a ver. Falar sobre o futuro, subitamente demasiado próximo, é a única coisa que na verdade todos querem fazer. Dali a um mês começa o último ano de escola, mais um para a maioria, decisivo para R., que talvez por isso não quer conversar sobre o futuro. Sobre ele tudo o que precisa de saber é que o tempo está a chegar ao fim: mais ninguém a pode reter naquele lugar. Um último esforço e a tagarelice e a asfixia cessarão. Nada mais importa, nem mesmo o que suceda a partir daí, desde que não volte. Sentada no sofá, espera o tempo passar refugiando-se no silêncio. «O que tens?», «Nada», que tu possas entender, acrescenta para si, pois mais ninguém parece dar-se conta que aquela tarde é uma prisão.
O nome dele numa conversa paralela fá-la voltar a cabeça e tendo-o ouvido claramente, deseja voltar a ouvi-lo. Não sabia de quem era aquele nome. O que havia num nome que era apenas um nome, e até agora desconhecido, ao ponto de a fazer voltar a cabeça?
Pergunta sobre o que estão a falar, explicam-lhe que é sobre um professor, um professor muito bom, que dá belas aulas. Duas ou três frases bastam para que R. saia da casa a correr, sem se despedir e sem dar explicações a ninguém. Debaixo do sol tórrido, pergunta-se agora que malefício traz aquele nome para que saiba a importância que terá para ela. Ao passar à frente da escola fechada, pensa que as listas de professores ainda nem estão feitas. Pensa que não percebe mas que sabe. Pensa que aquilo não é normal, está a ter uma alucinação, talvez tenha febre. Sempre que pensa, observa como através de um fino, discreto, fio, uma tranquilidade invariável se mostra: uma certeza. A verdadeira razão da sua perturbação, começa então a compreender, não está no facto daquele ser um tempo prévio aos acontecimentos, um nome prévio à pessoa ou sequer uma súbita claridade no meio da sombra a que se habituou. R. está apenas admirada por ser uma certeza tão pura.

26 de julho de 2014

À porta dos ricos desacelera-se o passo, o silêncio interrompe a conversa, as cabeças voltam-se para a casa, o jardim, as janelas fechadas. Sobre o que pensarão? Nos que se escondem lá dentro? Na casa colossal, suas divisões, recheio, sons e cheiros? No jardim, fresco e profundo, e nos animais que o frequentam? Queria saber que silêncio é este. Este. Com a duração de uma casa, despercebido, partilhado, que pode interromper uma conversa, uma frase, um pensamento, sem que se perca o fio à meada e que permanece nos rostos quando no final do muro o ritmo acelerado do andar regressa. Não sei se é desejo, curiosidade ou desgosto o que arrasta os olhares para o chão ou para o vazio no momento a seguir. Talvez uma mistura dos três. Sei que o silêncio, este, nunca é interrompido.
Lembro-me de uma casa assim. Pouco depois de começar a descer a ladeira começava também o muro, alto e vermelho, com um bosque por trás que continuava até chegar cá abaixo, onde havia uma abertura, a única, que dava acesso justamente à entrada principal da casa. Através do portão com ferrugem a comer a tinta verde, via-se à direita uma passagem para o bosque, a porta da frente, algumas janelas, e uma casa completamente coberta de hera. Embora fosse a mais difícil de subir, escolhia aquela ladeira para poder espreitar lá para dentro. E o que pensava eu? Em como havia de descobrir uma maneira de entrar naquele bosque. Ao longo do muro, ouvia por vezes corujas cantar. Parei muitas vezes para admirar a fachada coberta de hera enublada pela obscuridade do bosque, perguntando-me como é que aquilo acontecia, que planta era aquela feita para cobrir uma casa. Era a minha definição de riqueza, ter aquela planta agarrada às paredes, que cada ano crescia mais, a subir pelas paredes, a cobrir uma casa inteira, à exceção do telhado (e porque não também o telhado?). Admirar aquela casa era também pensar no tempo: de quanto tempo seria feita esta coisa extraordinária que eu estava a ver agora e ano após ano vi em mudança?
Nunca consegui descobrir uma forma de entrar, o que é o mesmo que dizer que nunca tive coragem de entrar. Um dia apanhei o portão fechado. Lembro-me de ter tido medo, de me perguntar o que teria acontecido. A casa parecia muito velha, a precisar de cuidados. Talvez tivessem todos morrido. Perguntando aqui e ali, fiquei a saber que estava à venda. Eu já não vivia lá perto nesta altura e já trabalhava. No dia a seguir a essa notícia, joguei no euromilhões. Depois alguém a terá comprado e cortaram a hera. Não a cortaram toda, o que apesar de tudo me alegrou e não cortaram as árvores como tinha temido. Há muitos anos distante, continuo a ter medo de a voltar ver e sobretudo, mantenho ainda a esperança de lá entrar. Agora sou eu esta casa, coberta de hera, a ver o tempo passar.
Em vez de guerra ou conflito, o Público chama loucura ao que se está a passar em Gaza. Seja lá o que isso for, parece-me mais justo do que tudo o que até hoje li sobre o termo.
Quatro homens estão sentados na esplanada do café de um bairro de subúrbio. Um quinto está em pé e fala com uma garrafa de cerveja na mão. Os quatro homens ouvem o seu monólogo sem nunca dizer palavra mas acompanhando a conversa através de gestos, expressões faciais e sons.

- E eram ciganos. Eram todos ciganos. Ela era cigana. Aquilo era cá uma mistura. Que raça...! Eram de um lado pretos e do outro ciganos.

Faz uma pausa. Olha para a frente, à primeira vista parece estar a olhar para o homem sentado à sua frente mas na verdade está a olhar para o vazio. Depois continua:

- Ah e mais! A mãe dela era prostituta.

O que se subentende é que as putas são uma raça. Todos esboçam um sorriso enquanto gesticulam para o lado e olham uns para os outros e para as pessoas perto da entrada do café. Aproxima-se um outro homem. O falador dá-lhe uma palmada por trás do ombro para o cumprimentar mas sem nunca parar o recém chegado diz-lhe:

- Não me toques.

Há um momento de silêncio pesado. O falador fixou o olhar no recém chegado e de risonho passou a sisudo. Todos esperam a sua reação. Começa a dirigir-lhe piadas por meio de perguntas que não recebem resposta, enquanto o recém chegado acende um cigarro em pé perto da porta do café e me observa como se eu não o estivesse também a ver. Com o cigarro pendurado nos lábios, finalmente esboça um sorriso e responde-lhe qualquer coisa entredentes. Entre a sua chegada e a minha partida, nunca chegou a olhar para ele.