29 de julho de 2014

Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão - é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha.


Herberto Helder, Ou o Poema Contínuo.
Desde que se continue a ouvir a algazarra das crianças atrás dos muros das escolas, saberei onde está a beleza.

28 de julho de 2014


                               






























Frederick William Burton  
Hellelil and Hildebrand, the Meeting on the Turret Stairs 
Aguarela e guache sobre papel, 95,5x60,8cm, 1864

27 de julho de 2014

Eu que já estive a bater a bota um par de vezes e não sei como nem porquê não bati, que já sofri das doenças mais inesperadas, que já passei pelo enigma da dor física e descobri forças inexplicavelmente íntegras, fico paralisada quando sinto a mais ligeira impressão no ouvido.
Escondidos do calor daquela tarde, seis amigos escolhem filmes que não chegam a ver. Falar sobre o futuro, subitamente demasiado próximo, é a única coisa que na verdade todos querem fazer. Dali a um mês começa o último ano de escola, mais um para a maioria, decisivo para R., que talvez por isso não quer conversar sobre o futuro. Sobre ele tudo o que precisa de saber é que o tempo está a chegar ao fim: mais ninguém a pode reter naquele lugar. Um último esforço e a tagarelice e a asfixia cessarão. Nada mais importa, nem mesmo o que suceda a partir daí, desde que não volte. Sentada no sofá, espera o tempo passar refugiando-se no silêncio. «O que tens?», «Nada», que tu possas entender, acrescenta para si, pois mais ninguém parece dar-se conta que aquela tarde é uma prisão.
O nome dele numa conversa paralela fá-la voltar a cabeça e tendo-o ouvido claramente, deseja voltar a ouvi-lo. Não sabia de quem era aquele nome. O que havia num nome que era apenas um nome, e até agora desconhecido, ao ponto de a fazer voltar a cabeça?
Pergunta sobre o que estão a falar, explicam-lhe que é sobre um professor, um professor muito bom, que dá belas aulas. Duas ou três frases bastam para que R. saia da casa a correr, sem se despedir e sem dar explicações a ninguém. Debaixo do sol tórrido, pergunta-se agora que malefício traz aquele nome para que saiba a importância que terá para ela. Ao passar à frente da escola fechada, pensa que as listas de professores ainda nem estão feitas. Pensa que não percebe mas que sabe. Pensa que aquilo não é normal, está a ter uma alucinação, talvez tenha febre. Sempre que pensa, observa como através de um fino, discreto, fio, uma tranquilidade invariável se mostra: uma certeza. A verdadeira razão da sua perturbação, começa então a compreender, não está no facto daquele ser um tempo prévio aos acontecimentos, um nome prévio à pessoa ou sequer uma súbita claridade no meio da sombra a que se habituou. R. está apenas admirada por ser uma certeza tão pura.

26 de julho de 2014

À porta dos ricos desacelera-se o passo, o silêncio interrompe a conversa, as cabeças voltam-se para a casa, o jardim, as janelas fechadas. Sobre o que pensarão? Nos que se escondem lá dentro? Na casa colossal, suas divisões, recheio, sons e cheiros? No jardim, fresco e profundo, e nos animais que o frequentam? Queria saber que silêncio é este. Este. Com a duração de uma casa, despercebido, partilhado, que pode interromper uma conversa, uma frase, um pensamento, sem que se perca o fio à meada e que permanece nos rostos quando no final do muro o ritmo acelerado do andar regressa. Não sei se é desejo, curiosidade ou desgosto o que arrasta os olhares para o chão ou para o vazio no momento a seguir. Talvez uma mistura dos três. Sei que o silêncio, este, nunca é interrompido.
Lembro-me de uma casa assim. Pouco depois de começar a descer a ladeira começava também o muro, alto e vermelho, com um bosque por trás que continuava até chegar cá abaixo, onde havia uma abertura, a única, que dava acesso justamente à entrada principal da casa. Através do portão com ferrugem a comer a tinta verde, via-se à direita uma passagem para o bosque, a porta da frente, algumas janelas, e uma casa completamente coberta de hera. Embora fosse a mais difícil de subir, escolhia aquela ladeira para poder espreitar lá para dentro. E o que pensava eu? Em como havia de descobrir uma maneira de entrar naquele bosque. Ao longo do muro, ouvia por vezes corujas cantar. Parei muitas vezes para admirar a fachada coberta de hera enublada pela obscuridade do bosque, perguntando-me como é que aquilo acontecia, que planta era aquela feita para cobrir uma casa. Era a minha definição de riqueza, ter aquela planta agarrada às paredes, que cada ano crescia mais, a subir pelas paredes, a cobrir uma casa inteira, à exceção do telhado (e porque não também o telhado?). Admirar aquela casa era também pensar no tempo: de quanto tempo seria feita esta coisa extraordinária que eu estava a ver agora e ano após ano vi em mudança?
Nunca consegui descobrir uma forma de entrar, o que é o mesmo que dizer que nunca tive coragem de entrar. Um dia apanhei o portão fechado. Lembro-me de ter tido medo, de me perguntar o que teria acontecido. A casa parecia muito velha, a precisar de cuidados. Talvez tivessem todos morrido. Perguntando aqui e ali, fiquei a saber que estava à venda. Eu já não vivia lá perto nesta altura e já trabalhava. No dia a seguir a essa notícia, joguei no euromilhões. Depois alguém a terá comprado e cortaram a hera. Não a cortaram toda, o que apesar de tudo me alegrou e não cortaram as árvores como tinha temido. Há muitos anos distante, continuo a ter medo de a voltar ver e sobretudo, mantenho ainda a esperança de lá entrar. Agora sou eu esta casa, coberta de hera, a ver o tempo passar.
Em vez de guerra ou conflito, o Público chama loucura ao que se está a passar em Gaza. Seja lá o que isso for, parece-me mais justo do que tudo o que até hoje li sobre o termo.
Quatro homens estão sentados na esplanada do café de um bairro de subúrbio. Um quinto está em pé e fala com uma garrafa de cerveja na mão. Os quatro homens ouvem o seu monólogo sem nunca dizer palavra mas acompanhando a conversa através de gestos, expressões faciais e sons.

- E eram ciganos. Eram todos ciganos. Ela era cigana. Aquilo era cá uma mistura. Que raça...! Eram de um lado pretos e do outro ciganos.

Faz uma pausa. Olha para a frente, à primeira vista parece estar a olhar para o homem sentado à sua frente mas na verdade está a olhar para o vazio. Depois continua:

- Ah e mais! A mãe dela era prostituta.

O que se subentende é que as putas são uma raça. Todos esboçam um sorriso enquanto gesticulam para o lado e olham uns para os outros e para as pessoas perto da entrada do café. Aproxima-se um outro homem. O falador dá-lhe uma palmada por trás do ombro para o cumprimentar mas sem nunca parar o recém chegado diz-lhe:

- Não me toques.

Há um momento de silêncio pesado. O falador fixou o olhar no recém chegado e de risonho passou a sisudo. Todos esperam a sua reação. Começa a dirigir-lhe piadas por meio de perguntas que não recebem resposta, enquanto o recém chegado acende um cigarro em pé perto da porta do café e me observa como se eu não o estivesse também a ver. Com o cigarro pendurado nos lábios, finalmente esboça um sorriso e responde-lhe qualquer coisa entredentes. Entre a sua chegada e a minha partida, nunca chegou a olhar para ele.

25 de julho de 2014

24 de julho de 2014

Agora vou continuar a ler os meus velhos diários. Afinal não os vou rasgar.

Etty Hillessum, Diário 1941-1943, 28 de julho, 1942, oito e meia da noite.
Tive uma sensação estranha há pouco ao ouvir a minha voz. Como se finalmente tivesse conseguido afinar o tom para dar a nota certa.

22 de julho de 2014

O cheiro a cera no edifício de habitação das freiras, onde raras alunas entravam e cujos recantos eu conhecia bem. O chão de madeira escura brilhava de uma ponta à outra, por vezes uma freira de joelhos no chão passava num recanto a dar lustro com um pano de lã cinzenta. No guichê da entrada havia telefones negros que quando tocavam podiam ouvir-se cá fora no pátio. Os quartos das freiras, no primeiro andar onde até eu me surpreendia por me deixarem subir. Local de reclusão, de cada um dos lados do corredor os quartos sucediam-se, quase todos iguais: uma cama, uma mesa de cabeceira, uma mesa de camilha ou uma secretária, uma ou várias cadeiras, uma estante. Tudo aquilo me fascinava por ser tão diferente do mundo exterior. Uma poética de clausura, de silêncio, de disciplina e de sobriedade, do ascetismo, da moderação, da frugalidade, de uma alegria com origem na modéstia e da simplicidade. Eram estas as razões que me faziam amar aquele lugar. Perante elas, porém, o que eu sentia era uma paixão veemente que mal conseguia gerir. Tinha o delírio de que naquelas coisas havia uma verdade minha e de poder explicar o que via e sentia, que me parecia em tudo contrário à frugalidade, ao ascetismo e à moderação. A fé estava ausente desse delírio. Eu não sabia nada de Deus. 

Diário, 23 de janeiro de 2011.

21 de julho de 2014

Tarde de verão amolecida pelo silêncio e pela solidão. Pegava na bicicleta e saía para onde não me deixavam ir. O carreiro das cobras ia dar à autoestrada, talvez por isso. O meu corpo não era o de uma criança nem o de uma adolescente mas as portas iam-se abrindo. Entrava no carreiro com uma certeza felina, nítida, como uma visão. A terra seca levantava pó à minha passagem e de cada lado havia campos de cultivo a perder de vista, uma casa em ruínas à direita e duas frondosas filas de árvores e arbustos selvagens. No inverno a lama era tanta que havia sítios onde não conseguia passar, obrigando a que subisse a margem e caminhasse mal equilibrada sobre os arbustos. Moldadas na terra, as marcas de pneus da passagem dos tratores continuavam visíveis ao longo do verão. Mas eu pensava que talvez ninguém me pudesse ver: levantava o queixo, estendia o pescoço, abria os ombros. Quando chegava ao fim, um mundo desprotegido, agressivo, a grande incógnita onde eu queria embarcar: para Lisboa vai-se pela esquerda.

20 de julho de 2014

Um dia vou começar uma história com esta frase: No tempo em que o papel era uma matéria preciosa...

19 de julho de 2014

Na Madragoa as pessoas são coscuvilheiras, trigueiras, falam a gritar mesmo quando estão umas ao lado das outras, há buracos na estrada e nos passeios até à Estrela, falta de contentores de lixo e muita merda de cão a contornar. Mas no verão as pessoas sentam-se em bancos à porta dos cafés a conversar, os velhos sentam-se à porta de casa ou ficam a falar à janela de um lado para o outro da rua, as raparigas novas sentam-se em degraus a olhar para os telemóveis e falam em surdina umas com as outras, levantando os olhos quando os rapazes passam à frente delas para ir buscar a bola, e há crianças a brincar na rua, muitas crianças, em ruas que ficaram enfeitadas desde o Santo António. O rio é ali em baixo, de vez em quando passa uma gaivota ou ouve-se a sirene de um barco. Gosto de os ouvir passar mas não quero ir a mais lugar nenhum.