23 de fevereiro de 2014

Demasiado espanto com o pensamento de outrem oblitera o mérito do próprio. Qualquer fascínio excessivamente violento perante o exterior constrange a intimidade ao silêncio. A voz tem origem no combate e na desilusão.

19 de fevereiro de 2014

Pouco tempo antes de fazer quatro anos, uma dor que bloqueava e fazia inchar os membros ocupou-me o corpo. Primeiro de baixo para cima, depois inadvertidamente, surgindo em locais muito precisos, ficou a alastrar e a fazer ninho. Queixei-me embaraçada com dores nas pernas quando uns círculos vermelhos começaram a aparecer nas articulações.
Quando os meus pais chamaram um táxi penso que já não conseguia falar. Lembro-me de fazer a viagem ao colo da minha mãe a sentir-me esvaziar, sem peso. A febre era um vulto colossal que me possuía e ao mundo, de uma violência inexplicavelmente doce.
Não me lembro de ter chegado ao Hospital, onde fiquei internada e acordei já noite com um tubo preso ao braço, para logo ter de me despedir da minha mãe. Lembro-me dessa separação como se fosse hoje, implorei que não me deixasse sozinha. O Hospital era grande, a noite não me deixava ver o que se passava à minha volta, fiquei quieta, chorei ainda durante muito tempo e eventualmente adormeci. Sei que passaram uns dias de que não tenho memória. Quando comecei a acordar vi que tinha visitas durante o dia. Na sua primeira visita, os meus pais traziam nas mãos uma boneca de pano e cabeça de barro, cabelo ruivo de fibra, a quem chamei assim que a vi «A Boneca Palhaça» e me fez sentir muito amada, em toda a minha fragilidade, porque não era Natal nem dia de aniversário. Quis ver a minha irmã que, muito pequena, não podia entrar, mas me disseram estar à minha espera para brincar.
Um dia, já estava quase curada, uma enfermeira que tinha conquistado a minha confiança levou-me a passear pelo Hospital. Ao colo dela eu vi onde estava, os velhos nos corredores mal iluminados deitados em macas abandonadas, pessoas em cadeiras de rodas, algumas empurradas, outras paradas. Na grande maioria as pessoas mantinham a cabeça baixa e os olhos fechados e eu descobri que se o vulto era o mesmo então nós éramos o mesmo. Chegámos a um quarto com muito mais luz do que todas as outras salas onde tínhamos estado. Nas camas estavam crianças e havia uma sala ao lado, separada por um vidro, com mesas baixas coloridas cheias de papéis e lápis de cor. Atravessámos o quarto e uma das crianças chamou-me a atenção. Não tinha traços.
Perguntei o que se tinha passado com ela. Disseram-me que era um menino em cima de quem tinham despejado sem querer uma panela de água a ferver. Portanto o que eu via e não conseguia perceber, era uma cicatriz mas o corpo como cicatriz. Ele brincava em cima da cama. Era difícil olhar, entre o asco e o horror, não podia imaginar como era antes. Surpreendeu-me que olhássemos um para o outro e a familiaridade que senti. Voltámos a sair do quarto sem que tivesse tido sequer a possibilidade de brincar com os lápis de cor.
Poucos dias depois vieram buscar-me para sair. Explicaram-me que tinha tido uma doença muito grave e que teria de regressar todas as semanas para levar injeções de penicilina, até ser adulta. Foi só nesse momento que percebi que podemos desaparecer de repente, sem nos apercebermos, sem termos tempo para fazer coisas e nos despedirmos. Que o negro doce do meu vulto era uma armadilha com um encanto sem escapatória.
À porta do Hospital havia (há) uma rampa muito íngreme para as ambulâncias saírem que a minha mãe começou a descer vigiando que eu a seguia. Quando avanço nela dois ou três passos, eis que a rampa começa a mexer.
O chão oscilava, eu ia cair. Apoiei-me no muro do lado direito e comecei a gritar, pensando que a minha mãe também estaria com medo. Mas a minha mãe permaneceu imóvel. Ficou a olhar para mim, de olhar incrédulo, dizendo que não, era mentira, o chão não estava a mexer, eu podia avançar sem problema. Contudo, mesmo enquanto ela pronunciava essas palavras, o chão oscilava e tremia cada vez mais. Eu estava num navio e a tempestade abatia-se com violência, a qualquer momento eu poderia ser engolida pela terra. A terra mexia, todas as árvores se agitavam, o mundo estava a chegar ao fim, eu gritava e, o pior de tudo, ninguém acreditava em mim. Nisto a minha mãe subiu o pouco da ladeira que tinha descido, pegou-me ao colo e pediu-me que me acalmasse. Perguntou-me se podíamos descer a ladeira desde que ela me levasse ao colo ao que respondi naturalmente que não. Não era uma possibilidade sequer ponderável, era como estarem a perguntar-me se não me importava de ser lançada ao mar revolto desde que fôssemos abraçadas. Para meu alívio ela acedeu sem grande esforço e assim que voltou costas à ladeira vi com grande espanto que o chão do lado oposto não oscilava. Caminhámos tranquilamente, podia ser domingo, talvez fosse. Percebi que só eu é que tinha visto a borrasca e o perigo, que nada do que dissesse poderia descrever e tornar credível. À medida que nos afastámos do Hospital fui ganhando plena consciência de me ter tornado presa da febre que agora ninguém senão eu via.

12 de fevereiro de 2014

A vontade de registar os sonhos surgiu pela primeira vez quando acordei no limiar deles. Quando, embora de olhos abertos, não podia ainda distinguir claramente os objetos e os corpos da vigília mas já me arrancava do peso do sono. Ontem, por duas vezes, fiz a passagem através da minha voz, ou dito de outra maneira, fui acordada pela minha voz do sonho.
O que nesses primeiros instantes de olhos abertos foi irreconhecível, foi a voz da vigília. Não podia usá-la, não me pertencia. A esforço aceitei - acreditei - que poderia ser eu esse outro, esse estranho, que me olhava, me esperava, sem perguntas.
Durante o dia voltei a ser surpreendida por essa voz, a minha, que se mostrava apesar de mim num gemido, sabendo eu imediatamente que mostrando-se é a mim que me mostra. Mas como, se não fui eu quem gemeu? Fui eu?
O fim do dia trouxe o ruído da cidade, do trânsito intenso, das pessoas na rua, do vento na copa das árvores, dos cães a latir no jardim, dos meus próprios passos na calçada. Senti entre nós uma grande distância, como se todo o ruído se transformasse num murmúrio e eu o atravessasse, munida do meu próprio murmúrio, este porém, demasiado fino para querer mostrar-se.

5 de fevereiro de 2014

Na verdade, tornou‑se‑me cada vez mais difícil, mesmo insensato, escrever num inglês normal. E cada vez mais a minha linguagem me aparece como um véu que tem de ser arrancado para se aceder às coisas (ou ao Nada) por detrás dele. Gramática e estilo. A mim parece‑me que se tornaram tão irrelevantes como um fato de banho vitoriano ou a imperturbabilidade de um verdadeiro cavalheiro. Uma máscara. Tenhamos a esperança de que virá o tempo, que graças a Deus já chegou em alguns círculos, em que a linguagem é mais eficientemente usada quando mal usada. […] Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por detrás – seja isso alguma coisa ou nada – comece a emergir. Não consigo imaginar hoje um objetivo mais elevado para um escritor.

Carta de Samuel Beckett a Alex Kaun, 1937.

28 de janeiro de 2014

Não sei quem me lançou no mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu próprio. Vivo numa ignorância terrível acerca de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, os meus sentidos, a minha alma, e até esta parte de mim que pensa o que digo, que reflecte sobre tudo e sobre ela mesma, e que não se conhece melhor do que ao resto.
Vejo estes espaços pavorosos do universo que me envolvem e vejo-me preso a um canto desta imensa vastidão, sem que saiba porque estou colocado neste lugar, e não noutro, nem porque razão este pouco tempo que me é dado viver me é atribuído neste momento, e não noutro ‘de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que há-de vir‘ depois de mim. Vejo apenas infinitos de todos os lados, que me envolvem como a um átomo ou uma sombra, que dura apenas um instante, e não regressa mais.

Blaise Pascal, Pensées


Quando ouvi o poema do Herberto Helder pela primeira vez, soube exactamente o que ele queria dizer com uma essência de oficina. No rés-do-chão da casa ao lado daquela onde vivi os primeiros anos, trabalhava um cesteiro. As memórias do cesteiro são as minhas primeiras memórias e por isso aquelas cujos detalhes são os mais silenciosos. Foram estas as primeiras coisas que eu vi. As primeiras coisas que me inquietaram. São estas as primeiras imagens, que se colaram a mim, me embalaram o sono durante anos, e ainda resistem. Tenho a sensação que estas imagens hão-de resistir a tudo. A sua limpidez, a sua clareza e o seu mistério hão-de resistir até a mim.
Temo fracassar. Talvez não encontre forma de lhes fazer coincidir o que posso escrever sobre elas. Contudo, penso há anos como fazê-lo. E espero.
Eram portas de madeira verde escuro, do tamanho das portas de uma garagem, abertas em par para dentro. Havia cestos já feitos pendurados na porta, outras peças acabadas e incompletas espalhadas pela oficina. Eram belas. Eram a coisa mais bela que eu já tinha visto. Eram a coisa mais extraordinária que eu já tinha visto.
A minha mãe caminhava rapidamente. Eu era levada pela mão e por vezes pelo caminho procurava retardar-lhe o passo. Então ela dizia «Vamos para casa, vamos jantar».
Ele estava lá dentro, na penumbra. Raramente, e quando o fazia era de soslaio, olhava para nós. Parecia absolutamente concentrado no que estava a fazer, como se mais nada existisse. O pó do vime acumulava-se até à rua e evolava-se no ar. Pareciam estrelas, um firmamento de estrelas dentro da oficina do cesteiro. Ele estava sentado num pequeno banco, quase rente ao chão, e com os seus dedos grossos enfiava rapidamente fios de vime uns nos outros até formarem um objecto. Para mim, o cesteiro estava debruçado sobre um segredo. Era um alquimista. O firmamento dentro da oficina era um reflexo, ou a continuidade, do firmamento de onde ele sabia trazer coisas.
Só havia luz na entrada da oficina e ao fundo, que passava através de uma porta para as traseiras ligeiramente entreaberta e que me parecia estar sempre na mesma posição; não havia aquecimento e as grandes portas de madeira verde escuro estavam abertas todos os dias à excepção do Domingo. Ao Domingo eu nunca via o cesteiro, imaginava-o. Imaginava-o com um fato de Domingo a ir para a missa. Imaginava-o rodeado pela família à espera do almoço, cozinhado pelas mulheres, sentado com o seu fato, já desabotoado, depois de chegar da missa, num sofá grande com um napperon de renda nas costas. Não sei de onde vem esta imagem. Procuro nas minhas memórias mas não sei onde poderei ter visto napperons de renda em cima das costas dos sofás, ou pelo menos não me lembro de alguma vez os ter visto nas casas por onde passei. Não sei porque imaginava o napperon de renda mas sei porque fazia a associação: o cesteiro era pobre. A minha percepção do mundo já estava formada.
O tempo passando, a minha atracção por aquele lugar crescia cada vez mais. Perguntei à minha mãe «o que é aquilo», para lhe dar a entender que queria parar ali. Ela não parava e eu continuei a perguntar. Espalhados pelo espaço da oficina, os bancos e cestos de todos os tamanhos e feitios mudavam com uma rapidez alucinante. Mudava o objecto nas mãos dele e mudavam os objectos nos seus lugares, um sendo substituído por outro, quase diariamente. Muitos deles eu nem tinha tempo de perceber para que serviam. Depois da penumbra onde a oficina estava mergulhada, único foco de luz para além da rua onde eu passava, a porta aberta para as traseiras atraía-me também cada vez mais. Como era estranho que nunca estivesse nem mais aberta nem mais fechada. As pessoas sempre tocavam nas portas quando passavam, será que ele nunca ia ao outro lado? Será que nunca se aproximava sequer, que não queria ver o que lá estava? Eu tinha apenas um desejo, com os anos cada vez mais intenso: entrar na penumbra, ver o que ela tinha e passar por essa porta pois, de tudo, o que mais me fascinava era o jogo de luz e de sombras dentro da oficina. Perante isso, até a existência do cesteiro era secundária.
Um dia, insisti com a minha mãe, puxei-lhe o braço e consegui parar mesmo à frente do cesteiro. Ele levantou ligeiramente o queixo, parou o que estava a fazer por breves instantes, para logo retomar o trabalho e voltar a concentrar-se nas mãos. A minha mãe não se moveu, como eu teria esperado que fizesse, porque era o que acontecia sempre que lhe mostrava interesse em alguma coisa. Estranhei essa imobilidade, não a percebia. Não conseguia ver nenhum perigo e no entanto havia ali uma resistência que como nenhuma outra me exigia esforços para a vencer. Voltei a puxar-lhe o braço e aproximei-me. Dirigi a palavra ao cesteiro: «o que é isto». Não me lembro da resposta apenas da conversa. Mostrou-me os ramos de vime pendurados à entrada, umas fitas longas presas em ramos de onde ele retirava o material para fazer as peças. Levantou-se e pegou num deles para me mostrar como se fazia. Após alguns minutos, dei mais um passo para a frente cheia de coragem, era agora, era agora que ia conseguir entrar. A minha mãe agradeceu rispidamente, pegou em mim e levou-me para casa. Num segundo, tudo se desmoronava em frente dos meus olhos, não tinha conseguido entrar e a conversa tinha sido interrompida sem que soubesse quando ou se voltaria a conseguir iniciá-la.
Não muito tempo depois disto, ao passar em frente da oficina num dia que era de semana, encontrei as portas fechadas. De um dia para o outro, fechadas. Perguntei à minha mãe, com um sentimento de absoluto desespero, se ela sabia o que tinha acontecido. «O cesteiro morreu». Era o meu primeiro confronto com o desaparecimento de uma pessoa. A primeira coisa que desapareceu com o cesteiro foram as suas mãos, de dedos grossos, ágeis e pele lisa. Morreu significava isso, que não tinha ido para lado nenhum, não estava em lado nenhum, nem mesmo sentado no sofá com o napperon nas costas à espera do almoço. Morreu significava que nunca ia conseguir falar com ele e que o firmamento tinha morrido também.
Perante essa frustração senti uma enorme culpa por nunca ter falado com ele, por não ter sido mais insistente, mais perseverante, e enfim, eficaz. Esta culpa devorou-me durante anos, muito depois de ter entrado na idade adulta e penso que, sobretudo sempre que alguém próximo me morreu, voltava a pensar na decisão que não tinha tomado. Nos anos que ali vivi depois disso, passava à porta da oficina para me certificar que pelo menos as portas ainda estavam lá. Que eram as mesmas portas, que havia ainda uma ínfima possibilidade do interior estar intacto. Tinha vontade de as fazer arrombar, imaginava formas de o fazer. Procurei os familiares, nunca descobri ninguém. Hoje, quando volto ao lugar onde nasci, evito essa rua, não quero sequer ver se as portas da oficina ainda lá estão. Para mim estão.
Antes de escrever esta história, perguntei à minha mãe se se lembrava do cesteiro e pedi-lhe, por e-mail, para me contar o que se lembra. Ela respondeu:

"Não me lembro de nada em especial. Era já muito velho quando fui morar para aquela casa e que era muito antipático, vendia no mercado os seus produtos e passava os seus dias ali com o seu rádio."

Não me lembrava do rádio, um pequeno rádio pousado no chão ligeiramente afastado do banco onde ele trabalhava, mas o perigo que me impediu a aproximação foi desvendado. Quando li a resposta, voltei a sentir-me intimamente persuadida de que entre mim e o cesteiro houve uma ligação que se perdeu irrecuperavelmente e não me consigo conformar com o extravio do que poderia ter sido. O que acabo de escrever ainda é uma tentativa de a manter viva.

26 de janeiro de 2014

Já dentro do autocarro, sentada logo à frente num banco baixo à janela, ao colocar a mala sobre os joelhos, percebeu que o dedo médio estava cheio de sangue. Ocorreu-lhe que estava menstruada e que o sangue só podia ser desse que estava a expelir, mesmo que não compreendesse como podia ter manchado o dedo daquela forma sem se ter dado conta. Em segundos, olhou discretamente para a frente onde não estava ninguém sentado, para confirmar que ninguém podia ter visto e pôs o dedo na boca, que começou a limpar vigorosamente com a ajuda da língua e da saliva. O sangue estava seco, custou a tirar, pois quando pensou que o dedo já estaria limpo e o tirou da boca, cerca de metade estava ainda por retirar, pelo que voltou a introduzi-lo rapidamente na boca. Pensou que era estranho este sangue não lhe saber a nada, quando o sangue tem normalmente um sabor metálico e o odor do sangue menstruado é tão forte. Continuou a pensar, enquanto limpava já distraidamente o dedo, que havia algo de prazer num corpo que expele coisas do seu interior e portanto, tal como acontece com os excrementos, havia um certo triunfo do corpo sobre o sangue libertado com os óvulos inúteis. Não estava satisfeita com a palavra prazer mas não conseguia encontrar a adequada. Parecia-lhe ainda mais desadequada agora, que lambia o sangue excrescido e sem sabor. Não teria nojo?
Quando o dedo ficou limpo descobriu um corte na raiz da unha. Surpreendeu-se então com a vergonha que tinha sentido minutos atrás, ao associar imediatamente o sangue no dedo à actividade do seu corpo. Voltou a olhar para o dedo para perceber se o sangue estava estancado. Pensou nessa actividade silenciosa, secreta, contudo de uma violência plutónica, que tinha acabado de associar a um prazer, prazer de um corpo que se liberta, prazer de se desprover de si próprio, de tudo o que o excede e aniquila. Manteve uma vez mais essa saborosa ilusão de que todos os seus gestos, todos os seus pensamentos, não eram senão terra, e que não havia entre eles espaço que os distinguisse, pois pertenciam a uma sequência orgânica, incessante e sem destino. E não tinha nojo.

23 de janeiro de 2014

o rapaz pensou:

- é assim que eu gosto de amar.

e sentiu a planta dos pés pousar na calçada como peixes assomando à tona da água.

21 de janeiro de 2014

Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.

W. G. Sebald, O Caminhante Solitário


Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.



Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.

18 de janeiro de 2014