Já dentro do autocarro, sentada logo à frente num banco baixo à janela, ao colocar a mala sobre os joelhos, percebeu que o dedo médio estava cheio de sangue. Ocorreu-lhe que estava menstruada e que o sangue só podia ser desse que estava a expelir, mesmo que não compreendesse como podia ter manchado o dedo daquela forma sem se ter dado conta. Em segundos, olhou discretamente para a frente onde não estava ninguém sentado, para confirmar que ninguém podia ter visto e pôs o dedo na boca, que começou a limpar vigorosamente com a ajuda da língua e da saliva. O sangue estava seco, custou a tirar, pois quando pensou que o dedo já estaria limpo e o tirou da boca, cerca de metade estava ainda por retirar, pelo que voltou a introduzi-lo rapidamente na boca. Pensou que era estranho este sangue não lhe saber a nada, quando o sangue tem normalmente um sabor metálico e o odor do sangue menstruado é tão forte. Continuou a pensar, enquanto limpava já distraidamente o dedo, que havia algo de prazer num corpo que expele coisas do seu interior e portanto, tal como acontece com os excrementos, havia um certo triunfo do corpo sobre o sangue libertado com os óvulos inúteis. Não estava satisfeita com a palavra prazer mas não conseguia encontrar a adequada. Parecia-lhe ainda mais desadequada agora, que lambia o sangue excrescido e sem sabor. Não teria nojo?
Quando o dedo ficou limpo descobriu um corte na raiz da unha. Surpreendeu-se então com a vergonha que tinha sentido minutos atrás, ao associar imediatamente o sangue no dedo à actividade do seu corpo. Voltou a olhar para o dedo para perceber se o sangue estava estancado. Pensou nessa actividade silenciosa, secreta, contudo de uma violência plutónica, que tinha acabado de associar a um prazer, prazer de um corpo que se liberta, prazer de se desprover de si próprio, de tudo o que o excede e aniquila. Manteve uma vez mais essa saborosa ilusão de que todos os seus gestos, todos os seus pensamentos, não eram senão terra, e que não havia entre eles espaço que os distinguisse, pois pertenciam a uma sequência orgânica, incessante e sem destino. E não tinha nojo.
26 de janeiro de 2014
24 de janeiro de 2014
INTERVIEWER: Mr. Faulkner, you were saying a while ago that you don't like interviews.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
23 de janeiro de 2014
21 de janeiro de 2014
Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do
que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram
connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.
W. G. Sebald, O Caminhante Solitário
Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.
Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.
W. G. Sebald, O Caminhante Solitário
Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.
Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.
10 de janeiro de 2014
Alors, je peux déjà raccrocher quelque chose de la schizophrénie. Je
peux dire : Bien oui, essayons de voir en quoi précisément le
schizophrène éprouve l’impression lui-même de voyager, avec tout ce que
ça implique.
Chacun, chaque fois qu’on considère ou chaque fois qu’on s’occupe de
quelque chose, on privilégie certains aspects.
Moi, forcément, quand on rencontrait la schizophrénie, nous, qu’est-ce
qu’on était amené à privilégier (?) les mille déclarations finalement des
schizophrènes, où leur problème, "ça n’est pas celui de la personne",
leur problème "ce n’est pas celui d’une structure".
Leur problème, c’est celui d’un problème, mais... qu’est-ce qui
m’emporte, et ça m’emporte aussi ? Qu’est-ce qui m’emporte et ça
m’emporte où ça ? - ben oui c’est... Bien.
Or à cet égard, moi ce qui me fascine, c’est la manière dont les
schizophrènes, ils ont affaire à quoi (?) vous comprenez, ils passent leur
temps.
C’est ça qui faisait une de nos réactions contre les éternelles coordonnées de famille de la psychanalyse. C’est que moi je n’ai jamais vu un schizophrène qui ait vraiment des problèmes familiaux, c’est même tout à fait autre chose. Enfin c’est trop facile ce que je dis parce qu’on peut toujours dire : Il y a des problèmes familiaux, mais en tout cas, au moins qu’on m’accorde qu’il ne les énonce pas et ne les vit pas comme des problème familiaux. Comment il les vit ?
C’est ça qui faisait une de nos réactions contre les éternelles coordonnées de famille de la psychanalyse. C’est que moi je n’ai jamais vu un schizophrène qui ait vraiment des problèmes familiaux, c’est même tout à fait autre chose. Enfin c’est trop facile ce que je dis parce qu’on peut toujours dire : Il y a des problèmes familiaux, mais en tout cas, au moins qu’on m’accorde qu’il ne les énonce pas et ne les vit pas comme des problème familiaux. Comment il les vit ?
Une des choses fortes il me semble, vraiment là, c’est
presque ce qui maintenant me plaît le plus quand je repense à
"L’anti-Œdipe", une des choses fortes de "L’anti-Œdipe", à mon avis et
ça, ça devrait pouvoir rester, c’est l’idée que le délire est
immédiatement investissement d’un champ social historique.
Je dis ça devrait pouvoir rester parce que c’est le type d’une idée
simple, c’est pas compliqué de dire : ben vous savez hein, qu’est-ce que
vous délirez finalement, vous délirez l’histoire et la société, c’est
pas votre famille ! Votre famille, je repense toujours au mot si
satisfaisant de Charlus, dans la "Recherche du temps perdu", quand
Charlus arrive, pince l’oreille du narrateur et lui dit : "hein ta
petite grand-mère tu t’en fous, tu t’en fous canaille ?".
D’une certaine manière on en est tous là.
Ça ne veut pas dire qu’on ne les aime pas nos grand-mères, nos pères,
nos mères, bien sûr on les aime. Mais la question c’est de savoir sous
quelle forme et en tant que quoi.
9 de janeiro de 2014
Ontem li o seguinte, escrito a 19 de Julho de 2007:
"Durante a noite tive um sonho indicador.
Sonhei que estava num piquenique, já tinha composto o meu prato e
estava a dirigir-me para uma mesa de madeira no parque e a conversar com
as pessoas muito animada e satisfeita. Nisto, encontro a minha irmã que
me começa a por mais comida no prato. Poe imensas coisas, coisas de que
eu até gostava mas não me apetecia, coisas que eu não gostava de todo também,
até que o prato ficou muito cheio, a abarrotar.
Não quis dizer nada por medo de a
magoar ou ofender. Quando ela acabou, toda contente por me ter enchido o
prato, fui-me sentar na mesa de madeira a olhar para aquela pilha de
comida com asco.
Acordei aflita e imediatamente surgiu esta frase na minha cabeça: «Não ponhas no teu prato mais do que és capaz de comer.»".
Podia ter sido ontem à noite.
Podia ter sido ontem à noite.
8 de janeiro de 2014
6 de janeiro de 2014
No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:
- Está bem. Então fazemos uma experiência, vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e quando tiveres tomado banho conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um 'statement'. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava sobretudo que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa.
Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Tive a tentação de me esconder. Não o fiz. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos, face à realidade com que me confrontava, que era peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
- Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
- Está bem. Então fazemos uma experiência, vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e quando tiveres tomado banho conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um 'statement'. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava sobretudo que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa.
Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Tive a tentação de me esconder. Não o fiz. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos, face à realidade com que me confrontava, que era peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
- Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
13 de dezembro de 2013
No último Verão, enquanto fumava um cigarro à janela com um amigo a casa de quem tinha ido jantar, vimos numa varanda abaixo dessa janela dois adolescentes a namorar. Era uma noite de Sábado, um rumor de vozes, vindas de dentro da casa onde eles estavam, distinguia-se entre a música e o som do calor. Estavam sentados num banco de alpendre em madeira, de costas voltadas para o vazio. Ele procurava convencê-la, ela procurava dizer-lhe como não era preciso convencê-la. Houve poucos gestos verdadeiramente transgressores entre eles, mas houve o suficiente para que eu e o meu amigo ficássemos à janela a ver o folhetim e para que eu percebesse finalmente que dentro da casa não estavam adultos. O meu amigo disse «Temos de falar baixo para que eles não nos vejam e fiquem com vergonha».
A princípio, pensei que não me tinha dado conta imediatamente do que estava a ver, e que por isso tinha ficado. Pensei ainda que talvez observasse por divertimento, por estar a ver de fora e com distância o que me aconteceu a mim há apenas alguns anos atrás. Também pensei que fosse uma estratégia oportunista, e pretender estar a usar a intimidade de outrem como um auxiliar de memória. E pensei que talvez fosse aquilo ser adulto, talvez fosse aquilo o tempo, se nele houver algum privilégio. Foi depois, quando o meu amigo disse aquela frase, que comecei a aperceber-me que a minha satisfação em poder observá-los secretamente não estava ligada a nada. É certo que podia distinguir entre os ardis, o desejo e o pudor sem ser afectada por eles. Mas o que nós observávamos era a possibilidade do amor estar a nascer naquele momento. Fosse esse o caso, o que éramos, eu e o meu amigo? Queria que todos os seus gestos e palavras pudessem estar a ser gravados em mim, como uma memória, porventura decisiva, mas não apenas para eles. A satisfação que sentia era indecorosa, partilhada e insaciável.
Da varanda deles após o vazio e da nossa janela, via-se Lisboa, ao fundo o rio, a ponte, à direita um ou dois palácios, algumas nuvens numa noite muito quente, pouco silêncio. Mas só eu e o meu amigo víamos o horizonte da cidade. Os dois adolescentes viam a pele. Viam o que viam mesmo quando desviavam o olhar um do outro. Um chorrilho de palavras procurava a absorção dos seus ritmos. Eu e o meu amigo víamos a possibilidade e não conseguíamos desviar o olhar.
A princípio, pensei que não me tinha dado conta imediatamente do que estava a ver, e que por isso tinha ficado. Pensei ainda que talvez observasse por divertimento, por estar a ver de fora e com distância o que me aconteceu a mim há apenas alguns anos atrás. Também pensei que fosse uma estratégia oportunista, e pretender estar a usar a intimidade de outrem como um auxiliar de memória. E pensei que talvez fosse aquilo ser adulto, talvez fosse aquilo o tempo, se nele houver algum privilégio. Foi depois, quando o meu amigo disse aquela frase, que comecei a aperceber-me que a minha satisfação em poder observá-los secretamente não estava ligada a nada. É certo que podia distinguir entre os ardis, o desejo e o pudor sem ser afectada por eles. Mas o que nós observávamos era a possibilidade do amor estar a nascer naquele momento. Fosse esse o caso, o que éramos, eu e o meu amigo? Queria que todos os seus gestos e palavras pudessem estar a ser gravados em mim, como uma memória, porventura decisiva, mas não apenas para eles. A satisfação que sentia era indecorosa, partilhada e insaciável.
Da varanda deles após o vazio e da nossa janela, via-se Lisboa, ao fundo o rio, a ponte, à direita um ou dois palácios, algumas nuvens numa noite muito quente, pouco silêncio. Mas só eu e o meu amigo víamos o horizonte da cidade. Os dois adolescentes viam a pele. Viam o que viam mesmo quando desviavam o olhar um do outro. Um chorrilho de palavras procurava a absorção dos seus ritmos. Eu e o meu amigo víamos a possibilidade e não conseguíamos desviar o olhar.
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