18 de fevereiro de 2025

Darkness
Byron

I had a dream, which was not all a dream.
The bright sun was extinguish'd, and the stars
Did wander darkling in the eternal space,
Rayless, and pathless, and the icy earth
Swung blind and blackening in the moonless air;
Morn came and went—and came, and brought no day,
And men forgot their passions in the dread
Of this their desolation; and all hearts
Were chill'd into a selfish prayer for light:
And they did live by watchfires—and the thrones,
The palaces of crowned kings—the huts,
The habitations of all things which dwell,
Were burnt for beacons; cities were consum'd,
And men were gather'd round their blazing homes
To look once more into each other's face;
Happy were those who dwelt within the eye
Of the volcanos, and their mountain-torch:
A fearful hope was all the world contain'd;
Forests were set on fire—but hour by hour
They fell and faded—and the crackling trunks
Extinguish'd with a crash—and all was black.
The brows of men by the despairing light
Wore an unearthly aspect, as by fits
The flashes fell upon them; some lay down
And hid their eyes and wept; and some did rest
Their chins upon their clenched hands, and smil'd;
And others hurried to and fro, and fed
Their funeral piles with fuel, and look'd up
With mad disquietude on the dull sky,
The pall of a past world; and then again
With curses cast them down upon the dust,
And gnash'd their teeth and howl'd: the wild birds shriek'd
And, terrified, did flutter on the ground,
And flap their useless wings; the wildest brutes
Came tame and tremulous; and vipers crawl'd
And twin'd themselves among the multitude,
Hissing, but stingless—they were slain for food.
And War, which for a moment was no more,
Did glut himself again: a meal was bought
With blood, and each sate sullenly apart
Gorging himself in gloom: no love was left;
All earth was but one thought—and that was death
Immediate and inglorious; and the pang
Of famine fed upon all entrails—men
Died, and their bones were tombless as their flesh;
The meagre by the meagre were devour'd,
Even dogs assail'd their masters, all save one,
And he was faithful to a corse, and kept
The birds and beasts and famish'd men at bay,
Till hunger clung them, or the dropping dead
Lur'd their lank jaws; himself sought out no food,
But with a piteous and perpetual moan,
And a quick desolate cry, licking the hand
Which answer'd not with a caress—he died.
The crowd was famish'd by degrees; but two
Of an enormous city did survive,
And they were enemies: they met beside
The dying embers of an altar-place
Where had been heap'd a mass of holy things
For an unholy usage; they rak'd up,
And shivering scrap'd with their cold skeleton hands
The feeble ashes, and their feeble breath
Blew for a little life, and made a flame
Which was a mockery; then they lifted up
Their eyes as it grew lighter, and beheld
Each other's aspects—saw, and shriek'd, and died—
Even of their mutual hideousness they died,
Unknowing who he was upon whose brow
Famine had written Fiend. The world was void,
The populous and the powerful was a lump,
Seasonless, herbless, treeless, manless, lifeless—
A lump of death—a chaos of hard clay.
The rivers, lakes and ocean all stood still,
And nothing stirr'd within their silent depths;
Ships sailorless lay rotting on the sea,
And their masts fell down piecemeal: as they dropp'd
They slept on the abyss without a surge—
The waves were dead; the tides were in their grave,
The moon, their mistress, had expir'd before;
The winds were wither'd in the stagnant air,
And the clouds perish'd; Darkness had no need
Of aid from them—She was the Universe.

14 de fevereiro de 2025

três pessoas adotaram um gato depois de conhecer o Fausto. nunca tinham tido nenhum gato e diziam: «mas tem de ser assim como este». sentindo falta de atualização de fotografias nas redes sociais, há quem me ligue ou me envie mensagem a perguntar por ele. por ele, não por mim. os meus amigos perguntam pelo Fausto no final dos telefonemas. é curioso como, quem o conhece, passa a falar da «ligação» que temos. curioso sobretudo porque me surpreende sempre que, com toda a sua singularidade, o amor seja tão incontestável.



26 de janeiro de 2025

vi THE DEAD há muitos anos, mas, na altura, quando o filme acabou, tive a sensação que me escapava o principal. o vazio torna-se mais importante nesses momentos, fala sem que possamos escutar, mostra sem que possamos ver. este fim-de-semana, por causa de THE ROOM NEXT DOOR, voltei a ver o filme, e percebi que quando escrevi que para Almodóvar a bondade era o fundamental, não fui tão longe quanto poderia ter ido. THE ROOM NEXT DOOR pode bem ser um filme feito de citações, um filme homenagem, como em certos momentos parece tornar-se mais evidente. julgo que a bondade — que nele transgride o habitual —, a generosidade entre as personagens, a sua amabilidade constitutiva, é uma citação de Huston e uma bastante nostálgica. a razão para que não tenha podido compreender o filme quando, aos dezassete anos, o vi pela primeira vez, tornou-se clara: não se pode perceber esta história sem ter uma experiência do tempo e da morte.
no primeiro plano, à noite, as janelas de uma casa estão iluminadas por uma luz amarela quente e uma carruagem puxada a cavalos, conduzida por um cocheiro, passa a toda a velocidade de um lado ao outro do ecrã sobre um tapete de neve. o nome de uma cidade e uma data emergem da escuridão: Dublin, 1904. não sei porquê, pensei imediatamente em 1984. em 1984 eu tinha oito anos e adorava blusas com folhos, ténis bota brancos e as bandas desenhadas da Luluzinha, que tinham na capa uma menina de caracóis a boicotar a casota de brincadeiras dos rapazes, onde não a deixavam entrar. a Apple lançou o primeiro computador pessoal nesse ano. a Tina Turner cantava What's Love Got to Do with It e eu achava que entendia tudo e queria ser como ela. entre aquele jantar de tradição anual na casa quente com cheiro a ponche e a cera a arder, onde cada um faz, com dedicação e nervosismo, aquilo que dele é esperado, e as danças se encomendam enquanto a neve continua a cair lá fora, acontece apenas oitenta anos antes de eu pedir para ficar a ver a Noite de Cinema na televisão sozinha. o que aconteceu, perguntei-me, em tão curto período de tempo para que o mundo tenha mudado tanto?
dia 27 de janeiro é o aniversário da libertação de Auschwitz. este ano comemoram-se oitenta anos sobre a data. Shahak Shapira, um jovem judeu a viver em Berlim realizou recentemente um projeto que reunia selfies de turistas que visitavam o local com as respetivas legendas e hashtags, encontradas no Facebook, Instagram, Tinder e Grindr. todas as selfies publicadas no Yolocaust tinham sido tiradas no Memorial do Holocausto, em Berlim, e em vários campos de extermínio nazis. a primeira fotografia que Shapira publicou, mostrava um jovem a saltar sobre as lajes de betão, com a legenda “Jumping on dead Jews @ Holocaust Memorial”. numa semana o site teve mais de dois milhões de visitantes, incluindo os autores das fotografias. o autor desta escreveu a Shapiro dizendo que “The photo was meant for my friends as a joke. I am known to make out of line jokes, stupid jokes, sarcastic jokes.” depois, há cerca de um ano, uma turista foi detida pela polícia por ter feito a saudação nazi enquanto posava para as fotografias do marido junto ao portão do campo de concentração de Auschwitz. na altura com vinte e nove anos, foi acusada de promover o nazismo e multada. deu-se como culpada, mas descreveu o ato como uma brincadeira ingénua

13 de janeiro de 2025

"A narrativa leva-me para a morte." 

Christa Wolf, Cassandra.

9 de janeiro de 2025

de manhã a luz estava bonita. um lastro de madrugada ambicioso e plúmbeo manteve-se muito tempo suspenso, fazendo a noite prolongar-se com um manto benigno e doce. não havia um fio de azul no céu. o trânsito estava compacto, parado, bloqueado como se fosse hora de ponta, que não era. abandonei a esperança de chegar a horas ao compromisso que tinha e procurei conforto na cadeira. chovia muito, havia caudais de água a correr na beira dos passeios, poças do tamanho de pequenos lagos ao ponto de ser preciso contornar a rua, e muita, muita chuva, daquela chuva que bate com força nas pedras do chão e se eleva. tanta chuva que, mais tarde, depois de caminhar umas horas, a pele das minhas botas absorveu a água deixando o interior húmido. vi nuvens ameaçadoramente baixas, redondas como um dirigível, tive a sensação de a qualquer instante irem rasgar-se no telhado da assembleia, por onde passei de autocarro. havia esta sensação voraz no ar de devastação, de catástrofe, para que a intempérie e o trânsito concorriam. enquanto o semáforo preenchia a água de reflexos vermelhos e o vento esfomeado, ansioso por as ver de ossos, arrancava às tílias as últimas folhas, do lado esquerdo, quatro homens do tamanho de gigantes, com fatos iguais brancos e azuis e com capacete, subiam lentamente, em uníssono, para cima de quatro motas alinhadas lado a lado, brancas e azuis, que tinham luzes brancas e azuis acesas. com os fatos densos e redondos, sem rosto, pareciam bonecos animados. havia uma insólita, talvez equívoca, beleza na sincronia do conjunto e no brilho aquoso das luzes, um pouco como acontece com a natação sincronizada e com as luzes de Natal. na moção arrastada do autocarro passei por eles hipnotizada, seguindo os seus ínfimos gestos com o olhar depois de se equilibrarem em cima das motas sem mais se mexerem, com as mãos cravadas à volta dos manípulos, e rodei a cabeça na sua direção até desaparecerem. só à noite percebi que, do lado direito, ia a passar um morto.

7 de janeiro de 2025

outra coincidência dos últimos tempos: revi O SOM DO NEVOEIRO e duas vezes, a primeira porque o A. conseguiu um torrent, a segunda na cinemateca. pelo meio, ficou também disponível no filmin. no dia em que descarreguei o filme, revi finalmente a cena em que ele lhe toca nas mãos e ela se entrega, deixa-se cair no abraço ardente dele e a fusão dá lugar ao nevoeiro (cuidadosamente, mantendo os limites da conveniência, ele toca-lhe na mão e depois fica quieto, é ela que não só lhe devolve o gesto, como o intensifica). depois, este fim-de-semana, vi o ALL WE IMAGINE AS LIGHT e encontrei praticamente a mesma série de fotogramas, mas no sentido inverso. parecem ser os fotogramas correspondentes à mesma realidade em duas dimensões opostas, e em que esta seria uma dimensão paralela a coexistir com a outra mas sombria, um lugar de rutura, de inconsistência, cataclismos, que pode engolir-nos, e de onde temos de nos salvar pela dureza e pela violência. uma espécie de espelho negro, como no Stranger Things: o fantasma do marido dela — o marido que já só existe na imaginação dela — pega-lhe na mão e beija-a apaixonadamente, deslizando pouco a pouco para o pulso e finalmente para o braço. ela recebe os beijos e quebra, desfaz-se a chorar. mas, quase impercetivelmente, o olhar transforma-se. a espera infindável materializada na imaginação passa a corte. vemos instalar-se uma fissura. o casal desaparece subitamente substituído pela paisagem noturna do lugar onde ela está, o mar ao fundo. ouvimo-la dizer: Stop. I don’t want to see you. Ever again.
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
(…). 

Daniel Faria

5 de janeiro de 2025

“… sinto, por fim, que sou capaz de cunhar todos os meus pensamentos em palavras.”

Virginia Woolf
Diários, 20 de abril de 1925. 

Mrs. Dalloway estava em impressão. 

4 de janeiro de 2025

"On fera filer l’allemand sur une ligne de fuite ; on se remplira de jeûne ; on arrachera à l’allemand de Prague tous les points de sous-développement qu’il veut se cacher, on le fera crier d’un cri tellement sobre et rigoureux. On en extraira l’aboiement du chien, la toux du singe et le bourdonnement du hanneton. On fera une syntaxe du cri […]. Emporter lentement, progressivement, la langue dans le désert. Se servir de la syntaxe pour crier, donner au cri une syntaxe."

Gilles Deleuze, Félix Guattari, Kafka. Pour une littérature mineure.

31 de dezembro de 2024

Tenho dois livros da Adília: o Pardais e o Dias e Dias. O Pardais é para oferecer. É o livro que mais ofereci. Um amigo a quem o ofereci começou a lê-lo aos sobrinhos à noite, para adormecer, e os sobrinhos passaram a pedir-lhe sempre que lesse esse. O Dias e Dias foi o A. que me ofereceu. É um livro com o seu nome, o que me alegra, um pequeno livro que nos acontece de forma irrevogável, luminosa, límpida. 
Os outros livros da Adília li-os por aí. Apanhei um em casa de uma amiga, numa temporada que lá passei nas férias de verão. Levava outros livros na mala, mas não lhes peguei. Era o Bandolim. Achei que esse livro me tinha encontrado como um estranho naquelas férias. Era o meu amor de verão e deixei-o entrar, liguei-me a ele com uma ternura sem condições e despedi-me dele no mesmo sítio onde o encontrei, deixando-o pousado em cima da mesa da sala. Pareceu-me rodeado de flores. Mas era só a minha imaginação. Li o Estar em casa na Biblioteca do Camões. Fui lá à procura de qualquer coisa que não podia ou não queria comprar e encontrei-o largado numa mesa. Tinha saído há pouco tempo e, apesar de já ter passado por ele, ainda não lhe tinha pegado. Andava à espreita do momento certo. Larguei o que estava a fazer e sentei-me numa mesa ao sol. Não vou com frequência a bibliotecas, mas é assim que as bibliotecas se tornam lugares imprescindíveis. Somos engolidos, pelo livro, pelo sol, pela noite. 
Às vezes, sobretudo na feira do livro, sinto-me tentada a comprar livros dela, mas desisto sempre. Olho para eles, pego neles, folheio, leio um poema ou dois, e abandono-os nas estantes e nas prateleiras numa espécie de recusa. O único livro que quero ter da Adília é o livro que o A. me ofereceu. Não porque seja o melhor, seria incapaz de eleger um. Porque são as coisas que não podem ser ditas que nos ligam. A partilha de uma simplicidade com que vemos o mundo, de gestos de carinho, da alegria entre os outros. Da sujidade da sombra, também, sem a qual nada é claro. Uma respiração. Não se pode possuir esta poesia e, se se pode, não a quero possuir. A poesia da Adília são as pessoas com quem me cruzo na rua, a quem procuro tratar com bondade. Como é a minha dor e as minhas mágoas, com que procuro ser generosa. 

30 de dezembro de 2024

Quando era criança e comecei a perguntar sobre a morte, tive a sensação que ninguém me estava a dizer a verdade. Nenhuma resposta respondia. Decidi pedir à minha mãe que me dissesse a verdade e, quando a apanhei sozinha, perguntei-lhe o que é que se sentia quando uma pessoa que nós conhecíamos morria. Estava sol, íamos de mão dada, sozinhas. A minha mãe olhou muito séria, muito alta, para mim e respondeu que era como se nos levassem uma parte. Não percebi o que ela queria dizer. Perguntei “Qual parte?” Ela continuou: “Como se te levassem uma parte do corpo.”



14 de dezembro de 2024

Martha e a morte 

Quando decido ir ao cinema ver um filme, chego de palas. Não leio nada, não quero ver o poster, o trailer, quaisquer imagens, não quero saber quem entra, quanto tempo tem, o que dizem os críticos e o povo. Para uma nefelibata treinada nas artes da distração, não é difícil, e obtenho mesmo certo gozo em, com a maior leviandade possível, passar por cima de alguma crítica que se estuda como à lei. Crítica, sem dúvida, mas depois do filme. Ainda assim, submersa em informação nas redes sociais, de que na maioria dos meses do ano não posso desligar-me por ter de trabalhar com elas, há sempre alguma coisa que levo comigo para a sala. No caso do filme O QUARTO AO LADO, de Pedro Almodóvar, sabia três coisas: havia uma paleta, o filme era sobre a eutanásia e era a primeira vez que estava a filmar com atores americanos. Presumi, a partir daquilo que conheço dos filmes dele, que não seria a perspetiva mais óbvia sobre o tema e, ao mesmo tempo, perguntava-me o que é o óbvio e porque é que nos aflige. O olhar que se torna comum, aquele que subitamente, com entusiasmo ou com fastio, todos parecemos partilhar, está em quê, onde? Almodóvar, disso ninguém duvida, é um grande cineasta. O que é que ele queria contar com esta história se a maior de todas as obviedades é a morte? Era essa a pergunta que emergia enquanto me desviava das imagens. 
Uma mulher assina livros para uma longa fila de fãs numa livraria em Nova Iorque. Ao seu lado, outra mulher, atenta, atenciosa, voluntariosa, vai para o final da fila para impedir que mais fãs se juntem enquanto a escritora termina de assinar livros para os que já lá estão. Tentada pela descrença a ver a cena como um clichê, mantenho-me impassível. A condenação dos clichês soa-me como o sinal de uma fraqueza deplorável que nos enclausura numa experiência do mundo tão soberana quanto isolada. Temos a crítica fácil, em geral. Nunca admirei tanto James Wood como quando, numa entrevista recente, afirmou que se arrependia de ter sido tão implacável nas suas recensões. Que gostaria de ter sido «mais gentil e compreensivo» em vez de «provocar tristeza na vida de alguém». Esta é realmente a verdade por detrás das coisas, qualquer tentativa de o invalidar é um instrumento de repressão. A verdade é que a amabilidade com que estas mulheres se dirigiam uma à outra me impressionava. Não porque essa amabilidade existisse e não a reconhecesse, antes — reparo nisso no momento em que as imagens se sucedem diante do meu corpo —, por ser retribuída entre elas. De certo modo, essa amabilidade é o contraponto da minha distração: o tom por vezes servil e adulador que observamos à superfície, mais nítido que o seu propósito, caía, para se revelar generosidade pura. São coisas demasiado simples, a generosidade, a gentileza, a amabilidade, e tão difíceis de praticar. A cena é apenas uma desculpa para levar esta mulher, que tem medo da morte, ao encontro de alguém que está perante a morte.
Avassaladora, a forma como os planos seguintes estão construídos, com a câmara colada ao rosto das atrizes, agride-me. Em vez de me ver puxada para dentro do ecrã, como normalmente me acontece com os bons filmes, que me absorvem como um vórtice na água, sou brutalmente empurrada para as costas da cadeira. Martha. Estou desconfortável com este nome. Além disso, a história que Martha contava, sobre a sua relação com a filha, tinha começado abruptamente, a seco, sem preâmbulo, sem preliminares, e, apesar das atrizes falarem estranhamente devagar, como se estivessem a explorar a mímica ou a soletrar, apesar, também, de ser uma história banal (adolescentes, sexo, guerra, doença mental, mãe solteira), parecia ao mesmo tempo exigir que fizesse um esforço invulgar para a seguir, que me tornasse talvez, também eu, íntima com elas. E eu não queria ser íntima ainda. Não sem preliminares. Em mim, o filme prossegue aos solavancos, por vezes suaves, por vezes bruscos, quase desajeitadamente, como se não fosse preciso contar a história para contar a história. A história era só uma desculpa. 

MARTHA So you’re going to write about Dora Carrington’s insane love. 
INGRID Mhmm… and her connection to Virginia Woolf, whom Strachey also pursued romantically.
MARTHA What a group! I so admire their freedom. 
INGRID Strachey died of stomach cancer eighteen years after meeting Dora. And Dora survived him by barely two months before she shot herself in the stomach. 
INGRID She was only thirty-eight… 
MARTHA (Pensive) I’m struck by the symmetry of that kind of gesture… His stomach cancer and her shooting herself in the stomach. 
INGRID I know… it struck me too. 
MARTHA Maybe Virginia saw a kind of warning in Carrington’s death, a mirror that reflected her.
INGRID Yes. It's as if the two of them, no matter what happened, were fated. 
MARTHA Do you think I’m fated too? 
INGRID No! Of course not! I’ve never known anyone more alive than you. 

Sinto-me desconfortável. Vista. A morte eminente de Martha é um espelho e pergunto-me se todos os que estão sentados naquela sala gigante, quase cheia, se sentem assim. Certo é que, sem saber como, a intimidade entre mim e elas dá-se. E enquanto ouvimos a história, a beleza e a vida abrigam-nos. São as cores de Hopper, não só cores fortes como cores planas, primárias, cores da experiência da solidão. Toda a narrativa se apoia nelas, cada vez mais depuradas e mais lisas à medida que o fim se aproxima. Aquela que se despede limpa à volta. As casas bonitas, como ele gosta, as casas como uma segunda pele, um órgão expandido que se talha nas memórias, nos objetos que as preenchem, na luz e na obscuridade de que são feitas, e que guardam a referência matriz da nossa existência, essa voz primordial que apenas nós ouvimos e sobre a qual nos debruçamos quando atravessamos corredores, passamos de divisão em divisão, vamos à varanda, espreitamos pela janela ou nos sentamos numa sala vazia. Como uma nave ou um arquivo, as casas têm a dimensão de quem lá mora, e na sua voz resiste um rumor de vida para lá do silêncio que todos os dias nos traz a morte. O crepúsculo banha a paisagem para lá da janela, a cor de uma jarra de flores refulge, neve cor-de-rosa cai, e a aparição prodigiosa das coisas surge, uma ideia, um impulso. 
E de repente, tudo muda. 
Num único plano, do rosto introspetivo de Martha, o filme é transferido para a esfera do inominável. Uma sombra infiltra-se e obscurece inteiramente esse rosto branco e luminoso que vê neve rosa cair e se maravilha enquanto recorda uma passagem de um livro como se só agora a pudesse compreender. A noite chega. A partir daqui, o mais importante não é a morte. A morte é uma evidência que oferece contornos ao vivo. Como numa pintura de Turner, com toda a sua luminosidade e aparente quietude, vemos na natureza uma imagem do que outrora foi e já se desfez. Uma imagem de destruição assoma onde o que vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína: não estará lá, não está lá. Aquilo que vemos é já pó. 

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.

The Dead, James Joyce (1914).

A neve de Joyce e a vida, ainda, nos pormenores: os rostos de PERSONA, a fotografia das mulheres de luto, o rosto jovem daquela que vai morrer. O lenço de Louise Bourgeois na parede: «I've been to hell and back. And let me tell you, it was wonderful.» Mas também o Buster Keaton a ser perseguido por uma multidão de mulheres num filme que, apesar de não conhecer, imagino uma multidão de mulheres a desaprovar. E também: «Vamos ver mais um.» O que toma forma a partir das cenas seguintes é a comunhão entre estas duas mulheres, a profunda transformação de uma em benefício da outra, desprovendo-se de si própria. Como é algo muito mais dilacerante, muito mais cáustico do que a angústia, o desgosto ou a inquietação: a alegria. Não se pode perder uma única oportunidade pela alegria, e Almodóvar sabe-o. 
Há uma grande lição neste filme. Perante a guerra — e o cancro é uma guerra —, perante o neoliberalismo, a ascensão da extrema-direita, perante a manipulação, a obsessão panfletária absolutista que, ao invés de mobilizar, paralisa, a bondade é decisiva. É com ela que Almodóvar nos quer agredir neste filme, sem preliminares, por ser algo que já devíamos saber, uma lição que já devíamos ter aprendido. As pessoas que acompanhamos neste filme estão abertas umas às outras, da assistente na livraria à rececionista no ginásio e ao treinador, como ao amante comum que, embora depositário de uma pesada impiedade de consciência, em nada, rigorosamente nada, falha a estas duas mulheres. A bondade, a generosidade, a gentileza, a amabilidade. A amizade. Coisas demasiado simples, difíceis de praticar num mundo de tantos egos, que podem ser a resposta para se encontrar alguma espécie de redenção. Estar em paz não significa fazer tudo certo. Com todos os nossos erros, pode-se morrer de lábios vermelhos, sem medo de nos olharmos de frente. Difíceis, também, porque essa é uma prática sem fim para a qual não há recompensa imediata, visível. Talvez seja essa a razão, só agora me ocorre, para que o próprio filme não chegue ao fim, mas a uma reconciliação para a história que ouvimos no início e de que ficamos sem saber o desfecho: através de Ingrid — que, não tendo estado no quarto ao lado, esteve presente —, Michele, a filha de Martha, apazigua o seu conflito com a mãe e deixa de a ver como uma adversária. Em nós, os mortos continuam a viver. A vida continua.

10 de dezembro de 2024

30 de novembro de 2024

Tenho andado a ouvir Zeca. Normalmente logo pela manhã, ainda a luz, disfarçada de fria, sobe timidamente da sombra e se imiscui no bolor dos telhados e nas rugas do rio. É como varrer destroços da lareira. Alto, nítido, radiante, fica só o lume.

25 de novembro de 2024

"Muito do que penso é resultado de conversas."

Susan Sontag