13 de janeiro de 2025

"A narrativa leva-me para a morte." 

Christa Wolf, Cassandra.

9 de janeiro de 2025

de manhã a luz estava bonita. um lastro de madrugada ambicioso e plúmbeo manteve-se muito tempo suspenso, fazendo a noite prolongar-se com um manto benigno e doce. não havia um fio de azul no céu. o trânsito estava compacto, parado, bloqueado como se fosse hora de ponta, que não era. abandonei a esperança de chegar a horas ao compromisso que tinha e procurei conforto na cadeira. chovia muito, havia caudais de água a correr na beira dos passeios, poças do tamanho de pequenos lagos ao ponto de ser preciso contornar a rua, e muita, muita chuva, daquela chuva que bate com força nas pedras do chão e se eleva. tanta chuva que, mais tarde, depois de caminhar umas horas, a pele das minhas botas absorveu a água deixando o interior húmido. vi nuvens ameaçadoramente baixas, redondas como um dirigível, tive a sensação de a qualquer instante irem rasgar-se no telhado da assembleia, por onde passei de autocarro. havia esta sensação voraz no ar de devastação, de catástrofe, para que a intempérie e o trânsito concorriam. enquanto o semáforo preenchia a água de reflexos vermelhos e o vento esfomeado, ansioso por as ver de ossos, arrancava às tílias as últimas folhas, do lado esquerdo, quatro homens do tamanho de gigantes, com fatos iguais brancos e azuis e com capacete, subiam lentamente, em uníssono, para cima de quatro motas alinhadas lado a lado, brancas e azuis, que tinham luzes brancas e azuis acesas. com os fatos densos e redondos, sem rosto, pareciam bonecos animados. havia uma insólita, talvez equívoca, beleza na sincronia do conjunto e no brilho aquoso das luzes, um pouco como acontece com a natação sincronizada e com as luzes de Natal. na moção arrastada do autocarro passei por eles hipnotizada, seguindo os seus ínfimos gestos com o olhar depois de se equilibrarem em cima das motas sem mais se mexerem, com as mãos cravadas à volta dos manípulos, e rodei a cabeça na sua direção até desaparecerem. só à noite percebi que, do lado direito, ia a passar um morto.

7 de janeiro de 2025

outra coincidência dos últimos tempos: revi O SOM DO NEVOEIRO e duas vezes, a primeira porque o A. conseguiu um torrent, a segunda na cinemateca. pelo meio, ficou também disponível no filmin. no dia em que descarreguei o filme, revi finalmente a cena em que ele lhe toca nas mãos e ela se entrega, deixa-se cair no abraço ardente dele e a fusão dá lugar ao nevoeiro (cuidadosamente, mantendo os limites da conveniência, ele toca-lhe na mão e depois fica quieto, é ela que não só lhe devolve o gesto, como o intensifica). depois, este fim-de-semana, vi o ALL WE IMAGINE AS LIGHT e encontrei praticamente a mesma série de fotogramas, mas no sentido inverso. parecem ser os fotogramas correspondentes à mesma realidade em duas dimensões opostas, e em que esta seria uma dimensão paralela a coexistir com a outra mas sombria, um lugar de rutura, de inconsistência, cataclismos, que pode engolir-nos, e de onde temos de nos salvar pela dureza e pela violência. uma espécie de espelho negro, como no Stranger Things: o fantasma do marido dela — o marido que já só existe na imaginação dela — pega-lhe na mão e beija-a apaixonadamente, deslizando pouco a pouco para o pulso e finalmente para o braço. ela recebe os beijos e quebra, desfaz-se a chorar. mas, quase impercetivelmente, o olhar transforma-se. a espera infindável materializada na imaginação passa a corte. vemos instalar-se uma fissura. o casal desaparece subitamente substituído pela paisagem noturna do lugar onde ela está, o mar ao fundo. ouvimo-la dizer: Stop. I don’t want to see you. Ever again.
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
(…). 

Daniel Faria

5 de janeiro de 2025

“… sinto, por fim, que sou capaz de cunhar todos os meus pensamentos em palavras.”

Virginia Woolf
Diários, 20 de abril de 1925. 

Mrs. Dalloway estava em impressão. 

4 de janeiro de 2025

"On fera filer l’allemand sur une ligne de fuite ; on se remplira de jeûne ; on arrachera à l’allemand de Prague tous les points de sous-développement qu’il veut se cacher, on le fera crier d’un cri tellement sobre et rigoureux. On en extraira l’aboiement du chien, la toux du singe et le bourdonnement du hanneton. On fera une syntaxe du cri […]. Emporter lentement, progressivement, la langue dans le désert. Se servir de la syntaxe pour crier, donner au cri une syntaxe."

Gilles Deleuze, Félix Guattari, Kafka. Pour une littérature mineure.

31 de dezembro de 2024

Tenho dois livros da Adília: o Pardais e o Dias e Dias. O Pardais é para oferecer. É o livro que mais ofereci. Um amigo a quem o ofereci começou a lê-lo aos sobrinhos à noite, para adormecer, e os sobrinhos passaram a pedir-lhe sempre que lesse esse. O Dias e Dias foi o A. que me ofereceu. É um livro com o seu nome, o que me alegra, um pequeno livro que nos acontece de forma irrevogável, luminosa, límpida. 
Os outros livros da Adília li-os por aí. Apanhei um em casa de uma amiga, numa temporada que lá passei nas férias de verão. Levava outros livros na mala, mas não lhes peguei. Era o Bandolim. Achei que esse livro me tinha encontrado como um estranho naquelas férias. Era o meu amor de verão e deixei-o entrar, liguei-me a ele com uma ternura sem condições e despedi-me dele no mesmo sítio onde o encontrei, deixando-o pousado em cima da mesa da sala. Pareceu-me rodeado de flores. Mas era só a minha imaginação. Li o Estar em casa na Biblioteca do Camões. Fui lá à procura de qualquer coisa que não podia ou não queria comprar e encontrei-o largado numa mesa. Tinha saído há pouco tempo e, apesar de já ter passado por ele, ainda não lhe tinha pegado. Andava à espreita do momento certo. Larguei o que estava a fazer e sentei-me numa mesa ao sol. Não vou com frequência a bibliotecas, mas é assim que as bibliotecas se tornam lugares imprescindíveis. Somos engolidos, pelo livro, pelo sol, pela noite. 
Às vezes, sobretudo na feira do livro, sinto-me tentada a comprar livros dela, mas desisto sempre. Olho para eles, pego neles, folheio, leio um poema ou dois, e abandono-os nas estantes e nas prateleiras numa espécie de recusa. O único livro que quero ter da Adília é o livro que o A. me ofereceu. Não porque seja o melhor, seria incapaz de eleger um. Porque são as coisas que não podem ser ditas que nos ligam. A partilha de uma simplicidade com que vemos o mundo, de gestos de carinho, da alegria entre os outros. Da sujidade da sombra, também, sem a qual nada é claro. Uma respiração. Não se pode possuir esta poesia e, se se pode, não a quero possuir. A poesia da Adília são as pessoas com quem me cruzo na rua, a quem procuro tratar com bondade. Como é a minha dor e as minhas mágoas, com que procuro ser generosa. 

30 de dezembro de 2024

Quando era criança e comecei a perguntar sobre a morte, tive a sensação que ninguém me estava a dizer a verdade. Nenhuma resposta respondia. Decidi pedir à minha mãe que me dissesse a verdade e, quando a apanhei sozinha, perguntei-lhe o que é que se sentia quando uma pessoa que nós conhecíamos morria. Estava sol, íamos de mão dada, sozinhas. A minha mãe olhou muito séria, muito alta, para mim e respondeu que era como se nos levassem uma parte. Não percebi o que ela queria dizer. Perguntei “Qual parte?” Ela continuou: “Como se te levassem uma parte do corpo.”



14 de dezembro de 2024

Martha e a morte 

Quando decido ir ao cinema ver um filme, chego de palas. Não leio nada, não quero ver o poster, o trailer, quaisquer imagens, não quero saber quem entra, quanto tempo tem, o que dizem os críticos e o povo. Para uma nefelibata treinada nas artes da distração, não é difícil, e obtenho mesmo certo gozo em, com a maior leviandade possível, passar por cima de alguma crítica que se estuda como à lei. Crítica, sem dúvida, mas depois do filme. Ainda assim, submersa em informação nas redes sociais, de que na maioria dos meses do ano não posso desligar-me por ter de trabalhar com elas, há sempre alguma coisa que levo comigo para a sala. No caso do filme O QUARTO AO LADO, de Pedro Almodóvar, sabia três coisas: havia uma paleta, o filme era sobre a eutanásia e era a primeira vez que estava a filmar com atores americanos. Presumi, a partir daquilo que conheço dos filmes dele, que não seria a perspetiva mais óbvia sobre o tema e, ao mesmo tempo, perguntava-me o que é o óbvio e porque é que nos aflige. O olhar que se torna comum, aquele que subitamente, com entusiasmo ou com fastio, todos parecemos partilhar, está em quê, onde? Almodóvar, disso ninguém duvida, é um grande cineasta. O que é que ele queria contar com esta história se a maior de todas as obviedades é a morte? Era essa a pergunta que emergia enquanto me desviava das imagens. 
Uma mulher assina livros para uma longa fila de fãs numa livraria em Nova Iorque. Ao seu lado, outra mulher, atenta, atenciosa, voluntariosa, vai para o final da fila para impedir que mais fãs se juntem enquanto a escritora termina de assinar livros para os que já lá estão. Tentada pela descrença a ver a cena como um clichê, mantenho-me impassível. A condenação dos clichês soa-me como o sinal de uma fraqueza deplorável que nos enclausura numa experiência do mundo tão soberana quanto isolada. Temos a crítica fácil, em geral. Nunca admirei tanto James Wood como quando, numa entrevista recente, afirmou que se arrependia de ter sido tão implacável nas suas recensões. Que gostaria de ter sido «mais gentil e compreensivo» em vez de «provocar tristeza na vida de alguém». Esta é realmente a verdade por detrás das coisas, qualquer tentativa de o invalidar é um instrumento de repressão. A verdade é que a amabilidade com que estas mulheres se dirigiam uma à outra me impressionava. Não porque essa amabilidade existisse e não a reconhecesse, antes — reparo nisso no momento em que as imagens se sucedem diante do meu corpo —, por ser retribuída entre elas. De certo modo, essa amabilidade é o contraponto da minha distração: o tom por vezes servil e adulador que observamos à superfície, mais nítido que o seu propósito, caía, para se revelar generosidade pura. São coisas demasiado simples, a generosidade, a gentileza, a amabilidade, e tão difíceis de praticar. A cena é apenas uma desculpa para levar esta mulher, que tem medo da morte, ao encontro de alguém que está perante a morte.
Avassaladora, a forma como os planos seguintes estão construídos, com a câmara colada ao rosto das atrizes, agride-me. Em vez de me ver puxada para dentro do ecrã, como normalmente me acontece com os bons filmes, que me absorvem como um vórtice na água, sou brutalmente empurrada para as costas da cadeira. Martha. Estou desconfortável com este nome. Além disso, a história que Martha contava, sobre a sua relação com a filha, tinha começado abruptamente, a seco, sem preâmbulo, sem preliminares, e, apesar das atrizes falarem estranhamente devagar, como se estivessem a explorar a mímica ou a soletrar, apesar, também, de ser uma história banal (adolescentes, sexo, guerra, doença mental, mãe solteira), parecia ao mesmo tempo exigir que fizesse um esforço invulgar para a seguir, que me tornasse talvez, também eu, íntima com elas. E eu não queria ser íntima ainda. Não sem preliminares. Em mim, o filme prossegue aos solavancos, por vezes suaves, por vezes bruscos, quase desajeitadamente, como se não fosse preciso contar a história para contar a história. A história era só uma desculpa. 

MARTHA So you’re going to write about Dora Carrington’s insane love. 
INGRID Mhmm… and her connection to Virginia Woolf, whom Strachey also pursued romantically.
MARTHA What a group! I so admire their freedom. 
INGRID Strachey died of stomach cancer eighteen years after meeting Dora. And Dora survived him by barely two months before she shot herself in the stomach. 
INGRID She was only thirty-eight… 
MARTHA (Pensive) I’m struck by the symmetry of that kind of gesture… His stomach cancer and her shooting herself in the stomach. 
INGRID I know… it struck me too. 
MARTHA Maybe Virginia saw a kind of warning in Carrington’s death, a mirror that reflected her.
INGRID Yes. It's as if the two of them, no matter what happened, were fated. 
MARTHA Do you think I’m fated too? 
INGRID No! Of course not! I’ve never known anyone more alive than you. 

Sinto-me desconfortável. Vista. A morte eminente de Martha é um espelho e pergunto-me se todos os que estão sentados naquela sala gigante, quase cheia, se sentem assim. Certo é que, sem saber como, a intimidade entre mim e elas dá-se. E enquanto ouvimos a história, a beleza e a vida abrigam-nos. São as cores de Hopper, não só cores fortes como cores planas, primárias, cores da experiência da solidão. Toda a narrativa se apoia nelas, cada vez mais depuradas e mais lisas à medida que o fim se aproxima. Aquela que se despede limpa à volta. As casas bonitas, como ele gosta, as casas como uma segunda pele, um órgão expandido que se talha nas memórias, nos objetos que as preenchem, na luz e na obscuridade de que são feitas, e que guardam a referência matriz da nossa existência, essa voz primordial que apenas nós ouvimos e sobre a qual nos debruçamos quando atravessamos corredores, passamos de divisão em divisão, vamos à varanda, espreitamos pela janela ou nos sentamos numa sala vazia. Como uma nave ou um arquivo, as casas têm a dimensão de quem lá mora, e na sua voz resiste um rumor de vida para lá do silêncio que todos os dias nos traz a morte. O crepúsculo banha a paisagem para lá da janela, a cor de uma jarra de flores refulge, neve cor-de-rosa cai, e a aparição prodigiosa das coisas surge, uma ideia, um impulso. 
E de repente, tudo muda. 
Num único plano, do rosto introspetivo de Martha, o filme é transferido para a esfera do inominável. Uma sombra infiltra-se e obscurece inteiramente esse rosto branco e luminoso que vê neve rosa cair e se maravilha enquanto recorda uma passagem de um livro como se só agora a pudesse compreender. A noite chega. A partir daqui, o mais importante não é a morte. A morte é uma evidência que oferece contornos ao vivo. Como numa pintura de Turner, com toda a sua luminosidade e aparente quietude, vemos na natureza uma imagem do que outrora foi e já se desfez. Uma imagem de destruição assoma onde o que vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína: não estará lá, não está lá. Aquilo que vemos é já pó. 

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.

The Dead, James Joyce (1914).

A neve de Joyce e a vida, ainda, nos pormenores: os rostos de PERSONA, a fotografia das mulheres de luto, o rosto jovem daquela que vai morrer. O lenço de Louise Bourgeois na parede: «I've been to hell and back. And let me tell you, it was wonderful.» Mas também o Buster Keaton a ser perseguido por uma multidão de mulheres num filme que, apesar de não conhecer, imagino uma multidão de mulheres a desaprovar. E também: «Vamos ver mais um.» O que toma forma a partir das cenas seguintes é a comunhão entre estas duas mulheres, a profunda transformação de uma em benefício da outra, desprovendo-se de si própria. Como é algo muito mais dilacerante, muito mais cáustico do que a angústia, o desgosto ou a inquietação: a alegria. Não se pode perder uma única oportunidade pela alegria, e Almodóvar sabe-o. 
Há uma grande lição neste filme. Perante a guerra — e o cancro é uma guerra —, perante o neoliberalismo, a ascensão da extrema-direita, perante a manipulação, a obsessão panfletária absolutista que, ao invés de mobilizar, paralisa, a bondade é decisiva. É com ela que Almodóvar nos quer agredir neste filme, sem preliminares, por ser algo que já devíamos saber, uma lição que já devíamos ter aprendido. As pessoas que acompanhamos neste filme estão abertas umas às outras, da assistente na livraria à rececionista no ginásio e ao treinador, como ao amante comum que, embora depositário de uma pesada impiedade de consciência, em nada, rigorosamente nada, falha a estas duas mulheres. A bondade, a generosidade, a gentileza, a amabilidade. A amizade. Coisas demasiado simples, difíceis de praticar num mundo de tantos egos, que podem ser a resposta para se encontrar alguma espécie de redenção. Estar em paz não significa fazer tudo certo. Com todos os nossos erros, pode-se morrer de lábios vermelhos, sem medo de nos olharmos de frente. Difíceis, também, porque essa é uma prática sem fim para a qual não há recompensa imediata, visível. Talvez seja essa a razão, só agora me ocorre, para que o próprio filme não chegue ao fim, mas a uma reconciliação para a história que ouvimos no início e de que ficamos sem saber o desfecho: através de Ingrid — que, não tendo estado no quarto ao lado, esteve presente —, Michele, a filha de Martha, apazigua o seu conflito com a mãe e deixa de a ver como uma adversária. Em nós, os mortos continuam a viver. A vida continua.

10 de dezembro de 2024

30 de novembro de 2024

Tenho andado a ouvir Zeca. Normalmente logo pela manhã, ainda a luz, disfarçada de fria, sobe timidamente da sombra e se imiscui no bolor dos telhados e nas rugas do rio. É como varrer destroços da lareira. Alto, nítido, radiante, fica só o lume.

25 de novembro de 2024

"Muito do que penso é resultado de conversas."

Susan Sontag

6 de novembro de 2024

"Era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava."

Étienne de la Boétie, Discurso da servidão voluntária.

3 de novembro de 2024




Anatomia de uma solidão. 
Akiko Sugiyama (Ineko Arima), Crepúsculo em Tóquio, Yasujirō Ozu (1957).

22 de outubro de 2024

"Es como si el personaje, en lugar de actuar motivado por una serie de causas razonadas por él, lo hiciera obedeciendo a una suerte de máquina de actuar, que es el relato mismo. En suma, diríamos que esto no es realista, con lo que nos revelamos a nosotros mismos que definimos el realismo por la identificación sicológica con los personajes, no la mera identificación con el prójimo, que podemos sentir en la realidad, sino precisamente la que vuelve realidad vicaria al personaje y con ello lo extrae del mecanismo del relato en el que vivía. "

"Hay un verso, una declaración de programa poético de un poeta argentino, Edgar Bayley, que dice: “es infinita esta riqueza abandonada”. Ahí hay algo de nostalgia o de impotencia. La magia, por definición, nos ofrece el mundo entero, en toda su inagotable riqueza, pero esa riqueza se despliega en un desierto y atravesarlo es lento, engorroso, interminable y, sobre todo, dolorosamente parcial. Da la impresión de que esa riqueza queda abandonada, porque una vida no alcanza para gastarla, ni dos, ni mil."

César Aira 
[trazido pelo A.].