O colosso
"Em relação a esta distância, não tínhamos considerado nem a linguagem nem o silêncio. Eram irrelevantes, não lhe diziam respeito. Na verdade, eram da nossa mãe: usava-os como instrumentos de terror. Com a morte do nosso corpo, havia a promessa da libertação desses instrumentos. Era estranho pensar que, apesar de a lacuna dentro dos nossos corpos continuar por preencher, já podíamos recorrer à linguagem e ao silêncio. Antes, não havia silêncio que não fosse agressão, nem linguagem que não fosse uma tentativa de condenar e controlar. Em face do silêncio, fomos invadidos pelo pânico do abandono; a linguagem parecia uma espécie de mal, capaz de desestabilizar a realidade."
Desfile, Rachel Cusk
[p. 121]
Tenho vontade de escrever sobre o último livro da Cusk, como que para assinalar um marco nas minhas leituras, mas não sei como fazê-lo sem frases que, ao contrário das que ela escreve, irão parecer absurdas, pueris e imprecisas. Gostaria de escrever sobre o sentimento de proximidade que as grandes obras proporcionam aos seus leitores, mas apercebo-me que esse é um sentimento individual e, como a fé, provavelmente intransmissível. Resisti várias vezes a este livro, primeiro na língua original, depois em português, língua em que acabei por ler na tradução de Alda Rodrigues. A primeira página sugeria uma continuidade com Segunda Casa, e o terror perante uma história que voltasse ao tema da sujeição feminina e da opressão masculina impedia-me de continuar, sobretudo num momento em que o trabalho me asfixiava. A minha relação com este livro começou aí: nessa asfixia, nessa resistência, nesse terror, perguntava-me sobre as suas raízes, constatando com tristeza que, embora hoje mais segura, nunca estarei livre delas. Nunca estaremos, deveria dizer. Por isso, e poderão assinalar que é a primeira ingenuidade que aqui escrevo, comecei a ler o livro de maneira a terminá-lo ontem, dia em que se comemoraram os 50 anos da implementação do Dia Internacional das Mulheres.
Este desfile de G(énios) inflamados, de elucubrações filosóficas, de abstrações solipsistas que se mostram cruciais na definição e na sustentação da identidade, de paisagens e horizontes amplos como de espaços íntimos e reservados, tomou tempo — não uso a palavra tomar de maneira inocente — a revelar a sua matriz e foi apenas na frase que aqui cito, a dezassete páginas do fim, que vi o livro. É um desfile construído com as grandes questões filosóficas, como a liberdade, a morte, o mal, o corpo, a verdade, descritas a partir da existência humana e daquilo que a define de modo mais formal: a divisão, ou a fusão, entre o mundo material e o da mente, entre visível e invisível, acidente e essência, no qual a memória se assume como uma figura magistral, tão dominadora na face em que se dá em plenitude, como terrível na face que a completa, uma carência de onde parece nascer o mal. E também as questões da psicanálise: o pai e a mãe, os arquétipos da violência, o conflito, o inconsciente, o ego, o amor, a infância, e, entre racional e irracional, o intelecto. As correntes ligam-se, avolumam-se, passam, criam belas imagens, personificam-se, e o barulho que fazem ao passar perdura, empurrando as paredes do cérebro para fora, não para as ampliar, mas para manter em silêncio o que dele poderia nascer.
Comecei por dizer que gostaria de escrever sobre um sentimento de proximidade com este livro, mas que não poderei fazê-lo sem dizer coisas ingénuas. Não se trata da proximidade avassaladora que temos com os russos, com Shakespeare, ou com algumas obras da literatura moderna, de Kafka a Ernaux. É, aliás, algo que me parece ser impossível acontecer diante destas páginas muitas vezes exasperantes, aborrecidas e alienantes, onde o labor persistente da escrita e a sua teia construída numa paciente composição de remendos, retoques, tempo e repetição, aparecem às claras. É antes uma proximidade de abismo como a que se tem com o violador ou com o pai e a mãe. Parece por vezes intrusiva, como os sustos. Os momentos vão-se somando a esparsas até o desfile terminar, num ritmo cada vez maior à medida que nos aproximamos do final. E no entanto, como se o meu segredo tivesse sido desenterrado e descoberto, em várias páginas, tenho a tentação ridícula de olhar para trás para confirmar se é de mim que as páginas estão a falar.
A perturbadora aridez da amálgama rendilhada e repetitiva dos códigos binários afunda-nos sem esperança? De onde retirar um sentido da realidade aleatória que nos agride ou daquela que testemunhamos? Como preservar nos nossos íntimos sujos e desarrumados, atolhados de lixo, onde tanto foi negado, um lugar onde seja possível criar? E como, entre tantos espelhos que apenas refletem outros espelhos, não enlouquecer? Através da história. A perversão, a fealdade, a loucura, bem como a pureza e a esperança, passam a fazer parte da história.
"Os poucos trilhos eram sinuosos e indiretos, raramente conduzindo ao que parecia inequivocamente mais à frente. Desviavam-se para algures, fútil ou secretamente. Havia mistério nas sombras serpenteantes das ravinas arborizadas e nos canaviais que ondulavam nas planícies à beira-mar; nas colinas, as formas vagas dos descomunais pedregulhos brancos pareciam contemplar insistentemente as glaciais águas azuis. Por trás, elevava-se a montanha, com o seu irregular cume branco arrojando-se insensatamente para o céu. As suas superfícies brancas e prateadas erguiam-se, nuas e inexpugnáveis, numa forma colossal, não inclinada mas cubóide, composta de um sem-número de facetas nestas superfícies retilíneas e faiscantes. A estradinha esburacada pela encosta, rumo ao vale seguinte, serpenteando e voltando a serpentear na descida, através de fendas de vazio arborizado. As cabras permaneciam imóveis nos ramos retorcidos das oliveiras, entre o estardalhaço das cigarras. As canas faziam um som sibilante quando percorridas pelos ventos. O calor estridente desgastava a terra e o céu, tornando-os sem sentido, e sempre, ao longe, permanecia a montanha ilegível, com uma autoridade violenta que era visível de todos os lados." [p. 41]