9 de janeiro de 2025

de manhã a luz estava bonita. um lastro de madrugada ambicioso e plúmbeo manteve-se muito tempo suspenso, fazendo a noite prolongar-se com um manto benigno e doce. não havia um fio de azul no céu. o trânsito estava compacto, parado, bloqueado como se fosse hora de ponta, que não era. abandonei a esperança de chegar a horas ao compromisso que tinha e procurei conforto na cadeira. chovia muito, havia caudais de água a correr na beira dos passeios, poças do tamanho de pequenos lagos ao ponto de ser preciso contornar a rua, e muita, muita chuva, daquela chuva que bate com força nas pedras do chão e se eleva. tanta chuva que, mais tarde, depois de caminhar umas horas, a pele das minhas botas absorveu a água deixando o interior húmido. vi nuvens ameaçadoramente baixas, redondas como um dirigível, tive a sensação de a qualquer instante irem rasgar-se no telhado da assembleia, por onde passei de autocarro. havia esta sensação voraz no ar de devastação, de catástrofe, para que a intempérie e o trânsito concorriam. enquanto o semáforo preenchia a água de reflexos vermelhos e o vento esfomeado, ansioso por as ver de ossos, arrancava às tílias as últimas folhas, do lado esquerdo, quatro homens do tamanho de gigantes, com fatos iguais brancos e azuis e com capacete, subiam lentamente, em uníssono, para cima de quatro motas alinhadas lado a lado, brancas e azuis, que tinham luzes brancas e azuis acesas. com os fatos densos e redondos, sem rosto, pareciam bonecos animados. havia uma insólita, talvez equívoca, beleza na sincronia do conjunto e no brilho aquoso das luzes, um pouco como acontece com a natação sincronizada e com as luzes de Natal. na moção arrastada do autocarro passei por eles hipnotizada, seguindo os seus ínfimos gestos com o olhar depois de se equilibrarem em cima das motas sem mais se mexerem, com as mãos cravadas à volta dos manípulos, e rodei a cabeça na sua direção até desaparecerem. só à noite percebi que, do lado direito, ia a passar um morto.