12 de setembro de 2024

“Writing only needs a reader. It doesn’t need you.”

Elena Ferrante

9 de setembro de 2024

Sonhei contigo.
Estávamos num sítio parecido com a parte de baixo da estação do oriente, mas maior e tudo branco. Tu estavas a falar com um homem e eu chegava a andar sem tocar no chão. Quando me viste, olhaste para mim e depois para os pés suspensos. A sorrir, com a tua expressão das sobrancelhas arqueadas, abraçaste-me de uma maneira perturbadoramente intensa. Quando nos deslaçámos disse-te que ia a uma loja de vinis. Tu apareceste outra vez ao meu lado, para me acompanhar, disseste que querias ouvir música comigo e acho que fomos para tua casa ou para um sítio parecido. Caminhava a levitar. Perguntei-te se tu não sabias levitar também. Tu sorriste outra vez e deste-me a mão. Mas não levitaste. Nunca disseste nada. Estavas vestido de preto, tinhas um casaco mais claro. Estavas igual a ti. Por acaso lembro-me perfeitamente de como tu estavas e de mim não. Só sei que tinha um vestido e estava descalça, os pés e o vestido imaculados, mas não sei como era. 

Sonhei contigo.
Tínhamo-nos separado há pouco tempo. Como já não acendias os meus cigarros e estavas distante, ia pedir lume a um mendigo com quem um dia tinha partilhado um muro e que me achava bonita. Muito sujas, as mãos dele tremiam. Cuspia para o isqueiro para amolecer a pedra e conseguir acendê-lo, mas o isqueiro não se acendia. Estava encardido e cheirava mal, sentado em cima do muro. Tu estavas lá ao fundo e nunca olhaste na minha direção. Isso deixou-me triste e enfurecida, mas não me levou a querer contrariar-te. Preferia estar com o meu amigo. Ainda que ninguém percebesse porque é que me sentia em paz com ele, o importante era que sentia.

Sonhei contigo na noite passada.
Estava de visita numa cidade à beira mar, as ondas cavalgavam as ruas e entravam nas casas perante a total passividade dos habitantes, entre os quais te incluías. Todos continuavam as suas vidas como se nem água houvesse. Olhei no sentido oposto das casas para a grande massa de água que invadia a golpes a cidade, e, com enorme assombro, reparei subitamente que o mar se deslocava de uma forma impossível: não para a frente, em direção a terra, mas para os lados, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se o mundo fosse o fundo de um balde que alguém havia colocado em movimento. Infelizmente era a única pessoa que sabia que aquilo era impossível. Não sabia se era o prenúncio de uma catástrofe, se o movimento tinha vindo para ficar, se ia passar. Tinha muita vontade de falar disso com alguém, mas os habitantes — e, embora não te visse, sabia que tu eras um dos habitantes daquela cidade — acreditavam que aquele era o comportamento habitual do mar, que sempre se tinha deslocado assim, para os lados. Acabei por me calar porque não valia a pena tratar como imponderável aquilo que todos viam como banal, mas também para não deixar de ver. Sentia-me a testemunha solitária de um evento impossível, extraordinário porque inviável, mas não tinha a quem o contar porque, como os outros, tu não vias o que eu via e não acreditavas em mim.

Sonhei outra vez contigo.
Saíamos de um lugar onde havia muitas árvores. Pensei que estava acordada. A dado momento, chegamos a uma casa onde entramos para descansar e deparamo-nos com uma sala branca, grande, suja e quase totalmente na escuridão, onde havia um ringue de boxe, também branco, no meio. Em cima do ringue estão um rapaz e um velho. Mal tu e eu entramos nessa sala, somos todos transformados em demónios. Cada um tem uma cor: verde, rosa, laranja e azul. Temos corpos híbridos, como as quimeras, todos diferentes, e, por cima do corpo, temos roupões de turco brancos. Subimos para o ringue. Olhamos desconfiados uns para os outros. Movemo-nos languidamente e deitamos a língua de fora como os répteis. Depois, guiados pelo velho, procuramos uma saída. Passamos portas e mais portas, nenhuma a certa, e finalmente conseguimos sair da sala por uma porta atrás da qual se encontra uma nova floresta. Acordei sem saber o que era.

7 de setembro de 2024


Hiroshi Shimizu, Hachi no su no kodomotahci [Children of the Beehive], 1948.

"Gitte enfiou descuidadamente o frasco no bolso das calças de ganga e sentou-se ao lado dela. Era fascinantemente feia e cheirava a suor. Lise respondeu-lhe com um sorriso de orelha a orelha. O medo inundou o quarto como um líquido. O relógio na sala de jantar deu as oito." 

Tove Ditlevsen, Os Rostos [tradução de João Reis].
"Pessoas eram Mrs. LaGrone, Mrs. Hendricks, a Mãezinha, o reverendo Sneed, a Lillie B, e a Louise e o Rex. Os brancos não podiam ser pessoas porque tinham os pés demasiado pequenos, a pele demasiado branca e transparente e, quando andavam, não apoiavam o pé na parte da frente como fazem as pessoas: caminhavam pondo o peso nos calcanhares, como os cavalos." 

Maya Angelou, Sei porque canta o pássaro na gaiola [tradução de Tânia Ganho].

6 de setembro de 2024

“Começo o meu relato hoje, dia cinco de Novembro. Tentarei descrever tudo da forma mais exacta que me for possível. No entanto, nem sequer tenho a certeza de estarmos a cinco de Novembro. Perdi‑me na contagem dos dias ao longo do último Inverno. Também não sou capaz de indicar em que dia da semana estamos. Não creio, porém, que se trate de um dado importante. Conto apenas com escassos apontamentos. São, de facto, escassos, porque não tinha a intenção de escrever este relato. Receio agora que as minhas recordações não correspondam exactamente àquilo por que passei e que vivi.”

Marlen Haushofer, A Parede [tradução de Gilda Lopes Encarnação].

"Morre tanta gente importante, é tal a procissão de necrologias ostentatórias da homenagem, que estas produzem muitas vezes o efeito contrário, o de uma unanimidade nauseante, de uma insuportável domesticação cultural daquela vida que se findou. Uma pessoa, por pudor, até hesita em levantar a mão para dizer uma coisa simples que seja, lembrar uma memória qualquer, mas, às vezes, é mesmo preciso. Pese embora a minha admiração, nunca fui próximo do Augusto M. Seabra, teremos conversado umas cinco vezes na vida, se tanto, e sem qualquer intimidade, talvez pelo caráter arisco de ambos. E, no entanto, a importância do seu gesto crítico idiossincrático, que se estendia à programação de cinema, da sua saudável curiosidade cosmopolita, sem receio da sentimentalidade (não esqueço a crítica de um concerto de Mahler em que descrevia como as lágrimas lhe escorriam pelo rosto), contrastava tanto com o reservado umbiguismo local. Houve uma altura em que as suas crónicas de distantes festivais de cinema eram como explorações de domínios estrangeiros desconhecidos, lufadas de ar fresco nestes quartos locais bafientos, promessas de contemplações por vir. Víamos na página, por exemplo, o BLUE do Derek Jarman ou o SÁTÁNTÁNGO do Béla Tarr, antes de os encontrarmos uns anos depois nas salas, algumas vezes pela mão dele. Em particular, quando o cinema contemporâneo se renovou, algures pelos anos 90 e depois, o Augusto não se ficou pela segurança assertiva de um cânone já estabelecido e tentava esboçar as suas linhas incertas, nomeadamente na atenção que dedicava ao que emergia do sudeste asiático. Tudo isto num jornal que fundou e onde gozava de uma inesperada liberdade, e que é hoje uma pálida sombra dessa gesta, pois os seus cultos descendentes, delfins escolhidos ou apropriadores, não tiveram a mesma mão ou revolta. Por vezes, apesar de algum malabarismo institucional, dava a impressão de ser colocado de lado de forma mesquinha, não aparecia onde podia, talvez por causa do seu caráter difícil de lidar. Em terra que preza sobretudo a obediência, lá ía passando entre os pingos da chuva e encontrando os seus lugares, egocêntrico quanto baste, porque não dizê-lo, mas como se os defeitos privados se transmutassem em virtudes públicas. Creio que havia nele algo verdadeiramente próximo daquilo a que alguém chamou o uso público da razão, mas numa sua forma não completamente domesticada, cultuosa das tradições e obediente, antes como uma coisa meio indomável, de quem não tinha nunca, nos seus périplos, esquecido a ligação entre a arte e a vida."

André Dias

Uma ideia de programação #1: Augusto M. Seabra

"Na medida do possível, designadamente com objectos que são filmes, o nosso entusiasmo é algo que deve ser partilhado."

"... há uma outra fórmula que também sempre me marcou. É do chefe de redacção dos Cahiers desses anos, Jean Narboni. A propósito de momentos como a Mostra de Pesaro e outros, dizia: «Il y a un film, je l’ai rencontré»."

"Achava que tinha descoberto... Não gosto da expressão “descoberto”, porque parece que a coisa vem de nós, quando eles é que são importantes. Tinha encontrado um cineasta."

"Portanto, programar é um gesto de partilha, de partilha das opções próprias. E, para mim, é, de facto, a continuação do acto crítico por outros modos."

"Ao contrário do que houve há alguns anos, não existir um segundo canal da RTP que tenha responsabilidades de programação complementares às cinematografias dominantes é uma coisa que me parece grave."

"O ciclo «Diários filmados e autoretratos» do DocLisboa teve na imprensa níveis de interesse que de forma nenhuma teria se passasse isoladamente. Ou seja, nalguns aspectos era preferível que não passasse isoladamente. Tem a ver com questões de crítica. Quer dizer, sendo a crítica um acto por excelência de mediação, supõe colocar questões. E, evidentemente, ela hoje tende a desaparecer, tende a ser cada vez mais um acto de intermediação dentro de um processo de consumo. Isto anda tudo ligado."

"O cinema define-se, para além dos seus modos de produção, também pelo lugar do espectador."

"Por exemplo, tenho as maiores dúvidas (e isto é uma forma suave de pôr a questão) que o campo teórico genericamente considerado como o do pós-colonialismo seja hoje esteticamente operativo. Receio que, nalguns casos, se torne mesmo num paternalismo neo-colonial, por assim dizer. É exactamente o tipo de campo em que as obras surgem como demonstrações de um discurso pré-determinado."

"E especulativo não é a mesma coisa que demonstrativo. Nem que seja para se chegar à conclusão que as coisas nada tem a ver umas com as outras."

"O que gostaria era que houvessem condições para um trabalho de pensamento."

"Mas dentro deste trabalho todo, há também coisas que dão um gozo particular. E todas elas têm o seu risco particular. Mas não consigo pensar em programar sem pensar que é uma prática de riscos. (...). Acho que se põe uma ética da programação. A dimensão ética não está apenas presente nas obras em si mesmo, designadamente numa arte como o cinema, está presente num gesto de programação."

30 de agosto de 2024

Entrei na sala e estavam todos num círculo a olhar para a coisa. A coisa estava ao colo de uma das mulheres e aquela que deu à luz a coisa ofereceu-a ao homem. Mas o homem recusou pegar-lhe com um gesto da mão e virou o flanco à coisa. O homem disse: não tenho jeito, e colocou-se atrás da mulher que a tinha ao colo, olhando para a coisa. Quando disse isto, o homem ficou seco e definhou. A coisa não tinha nome. Estavam todos numa roda a olhar para ela e a passá-la de mão em mão, mas ninguém lhe queria dar um nome. Apesar de ser frágil, com sorrisos vaidosos e sem olhar uns para os outros, erguiam a coisa ao alto, pavoneavam formas originais de a segurar, nas mãos, nos braços, nas pernas, nos ombros. Se a coisa caísse, todos se quebrariam como cristal em infinitos pedaços que nunca mais voltariam a colar-se. Mas a coisa passava de mão em mão e todos riam enquanto a ofereciam sem dizer o seu nome. Estavam todos à espera que a coisa falasse, mas a coisa nada dizia e passava de mão em mão como se nada pudesse dizer. 

28 de agosto de 2024

Quando éramos crianças comíamos flores. Elas apareciam e nós começávamos a demorar mais tempo a chegar a casa. Estávamos atentas às flores que podíamos comer, que sabíamos distinguir das que eram «venenosas», e que pendiam para o passeio de arbustos em quintais inacessíveis ou nasciam em bermas de estrada. Nem tudo na flor era comestível e os adultos ensinavam-nos o que e como as devíamos comer. As azedas eram as mais comuns. Apareciam logo em fevereiro, enchendo os campos de primaveras precoces, que cobriam de amarelo-pálido. Cortávamos o caule para as arrancar sem raiz e, desprezando a flor, mascávamos sem engolir um líquido ácido e transparente, quase desagradável, mas viciante, como a cola. De todas as flores que se seguiam a essas, primavera dentro, as minhas preferidas eram umas flores cor-de-laranja em forma de trompete, com umas antenas cor-de-rosa no interior. Nasciam já em cima do verão de uma espécie de trepadeira que pendia nos muros um pouco por toda a parte. Tínhamos de esperar que estivessem «maduras» para as apanhar, ou seja, grandes e quando o tom do cor-de-laranja se tornava escuro, quase vermelho. Nelas escondia-se uma espécie de mel, tão doce que estavam sempre cheias de formigas que havia que expulsar antes de sorver, com cuidado, para não danificar as pétalas que albergavam o licor. Soprávamos as formigas no silêncio cúmplice de quem está prestes a partilhar uma iguaria. Depois bebíamos como de um copo e, porque o prazer era curto, arrancávamos outra logo a seguir. Comíamos essas flores com voracidade e com pena de não conseguirmos chegar às mais altas uma vez colhidas as que conseguíamos alcançar. Comer flores era o que mais gostava de fazer na rua. Achava que estava a ser iniciada numa ciência secreta destinada aos sábios e aos alquimistas, o clube onde eu queria entrar para conhecer aquilo que, sendo invisível, na terra, na água, no ar e nas pessoas, mas também nos livros, onde exatamente tudo acontecia, fazia viver. Por isso quando íamos ao restaurante chinês, a Lisboa, escolhia a sobremesa que era uma flor, a flor que vinha do misterioso Oriente: uma flor cor-de-rosa, grande como uma magnólia, que os meus olhos enfeitiçados viam chegar em cima de um tabuleiro, no centro de uma pequena malga de cerâmica branca como uma nuvem. Sei que algures alguma criança continua a comer flores. Mas os adultos que continuam a ensiná-las são quem admiro. Quem se dedica a explicar-lhes minuciosamente como se faz para soprar as formigas e não danificar a flor, a que arbustos se pode subir e quais os que quebram apesar de parecerem bom apoio, como não devemos arrancar flores dos passeios, encharcadas de urina, mas apenas dos campos ou de lugares altos, que flores devemos escolher e aquelas em que não devemos sequer tocar, como os cardos-de-leite, cheios de espinhos, ou as papoilas, que morrem mal as arrancamos. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Uma proposta

escrever pouco mas escrever bem
mas que ninguém saiba como
se define o que é bem
e o que é pouco
e o que é escrever. 

Mariano Blatt 

22 de agosto de 2024

"Fact is like clay. You shape it to your own ends."

John Gregory Dunne

13 de agosto de 2024

"Sus libros se nos aparecen como emanaciones de un sistema más amplio. Con todos los grandes escritores sucede lo mismo, pero en la mayoría ese mecanismo es virtual; en él fue real. Imaginemos que hubiera seguido con exclusividad el camino de las artes plásticas, del dibujo, o de la actuación. Supongamos, y es muy fácil suponerlo, que aun así hubiera seguido siendo Copi, el mismísimo Copi. En ese caso podemos imaginarnos que sus relatos existirían igual, en un estado que podríamos llamar “imaginario”. Serían algo así como “guiones” de otros gestos, estallarían en un punto, en un relámpago del pensamiento o de la vida. Ahí tocamos una condición propia de la literatura, una suerte de vacilación ontológica. No importa que la obra exista o no. No hay falacia más persistente y destructiva en el discurso sobre las artes que ésa de la importancia. El arte no es importante, ni siquiera es necesario; por el contrario, oscila en el borde de no ser, y las más de las veces, cuando más grande es, se esfuma. Supongamos el sistema-Copi en un Copi que no hubiera escrito una línea, ni dibujado un cuadrito, ni actuado, ni nada. Todo el sistema, con los rasgos que estamos tratando de discernir en él (la miniaturización, la velocidad, etc.) existirían lo mismo en un señor que viviera de la fortuna familiar o fuera diplomático o traficante de drogas. No existiría en su mente como una promesa incumplida (no se trata de fracaso o de ocio o de falta de realización), sino en ciertos gestos, en ciertas circunstancias, en lo que defectuosamente llamamos el Destino, en la superficie de su cuerpo y de su empleo del tiempo... Su tía paralítica no se habría transformado en la Mujer Sentada, porque no habría mujer sentada (aunque estaría la de Picasso), pero sí se habría transformado en la función que es la Mujer Sentada, y habría sido igualmente operativa en esa forma. Parece un ejercicio inútil de la fantasía, y seguramente lo es. Pero vale la pena pensarlo a la inversa: posar la vista en alguien cualquiera, no importa lo vulgar y anodino que sea, e imaginarse el sistema del que es soporte único e intransferible. Es un ejercicio de la fantasía igual de inútil, pero mucho más difícil, y nos da una idea, un atisbo, de lo que pudo querer decir Lautréamont: “La poesía debe ser hecha por todos, no por uno”. ¿Podemos imaginarnos ese mundo, de una inagotable riqueza literaria? Su mero planteo sirve para aminorar la “importancia” de la literatura. Más todavía: ese mundo excesivo, esa plétora barroca, es el único objeto que puede tener la literatura. En esta dirección nos alejamos de la consideración “material” del texto o la obra de arte en general. Ese tipo de crítica me parece errónea y nefasta. La literatura es una actividad fantasmática, sin materialidad alguna. ¿Qué clase de materia es la que podría no haber existido?"

Não sei de onde é, mas felizmente li, porque o A. publicou.

10 de agosto de 2024

Pouco após ter somado quarenta anos fui aprender a nadar. Apercebendo-se dos maus tratos do professor de natação que tive por volta dos seis anos, a maioria das mães retirou os filhos da aula e, depois do êxito insólito de ver os adultos confirmar que o que estava a acontecer era tão mau como eu achava, não voltei a querer aprender e ganhei um medo exagerado à água. Por um lado, a água era intimidante. Diziam que era perigosa, imprevisível. Que podia afogar-me. Que tinha de a respeitar. Por outro lado, não sabia nadar. Não tinha qualquer controlo corporal dentro de uma massa de água, de que acabava sempre a engolir grandes golfadas. Extremamente magra (a minha alcunha na escola era Olívia Palito), a força da água, no mar ou no rio, ganhava sempre. Quando, aos nove anos, se descobriu que era surda de um ouvido, e o médico aconselhou a não mergulhar ou frequentar a piscina, cheia de cloro, a sentença estava dada. Se na infância me senti aliviada por não ter de aprender a nadar, com os anos, para minha grande admiração, a impossibilidade de me movimentar dentro de água com à-vontade e segurança foi perfilando um desgosto profundo que me deixava desolada a cada vez que via água e, quanto mais longe ficava do professor de natação, melhor chegava à constatação surpreendente de que adoro água. A visão da água passou a ser um chamamento. Nos filmes, admirava os nadadores de longas distâncias que se salvam de prisões e de ilhas a nado e os namorados que se afastavam ao largo da costa para finalmente se entregarem um ao outro, longe dos olhares. Estive fascinada pelos saltos para a água, pela natação sincronizada, pelo mergulho, pelo pólo aquático e, claro, pela natação. Os corpos modelados, a aptidão em executar certas acrobacias, a elegância com que certos movimentos eram realizados, apesar de exigirem o emprego de uma força extraordinária, pertenciam ao domínio do ininteligível. Quando fiz quarenta anos, decidi que não morria sem saber nadar e inscrevi-me numas aulas para iniciantes na piscina do bairro. Todas as semanas lá ia eu, orgulhosíssima, com a minha touca, os óculos e o fato de banho de natação, nadar com crianças escoltadas por pais demasiado preocupados. Comecei sem saber praticamente nada e no final do ano sabia nadar a crawl e a bruços, conseguindo mesmo fazer a piscina toda duas ou três vezes. A apoteose chegou quando nadei no mar a primeira vez. Há um sentimento de compensação em perder o medo que não há em mais nada na vida.