"Morre tanta gente importante, é tal a procissão de necrologias ostentatórias da homenagem, que estas produzem muitas vezes o efeito contrário, o de uma unanimidade nauseante, de uma insuportável domesticação cultural daquela vida que se findou. Uma pessoa, por pudor, até hesita em levantar a mão para dizer uma coisa simples que seja, lembrar uma memória qualquer, mas, às vezes, é mesmo preciso. Pese embora a minha admiração, nunca fui próximo do Augusto M. Seabra, teremos conversado umas cinco vezes na vida, se tanto, e sem qualquer intimidade, talvez pelo caráter arisco de ambos. E, no entanto, a importância do seu gesto crítico idiossincrático, que se estendia à programação de cinema, da sua saudável curiosidade cosmopolita, sem receio da sentimentalidade (não esqueço a crítica de um concerto de Mahler em que descrevia como as lágrimas lhe escorriam pelo rosto), contrastava tanto com o reservado umbiguismo local. Houve uma altura em que as suas crónicas de distantes festivais de cinema eram como explorações de domínios estrangeiros desconhecidos, lufadas de ar fresco nestes quartos locais bafientos, promessas de contemplações por vir. Víamos na página, por exemplo, o BLUE do Derek Jarman ou o SÁTÁNTÁNGO do Béla Tarr, antes de os encontrarmos uns anos depois nas salas, algumas vezes pela mão dele. Em particular, quando o cinema contemporâneo se renovou, algures pelos anos 90 e depois, o Augusto não se ficou pela segurança assertiva de um cânone já estabelecido e tentava esboçar as suas linhas incertas, nomeadamente na atenção que dedicava ao que emergia do sudeste asiático. Tudo isto num jornal que fundou e onde gozava de uma inesperada liberdade, e que é hoje uma pálida sombra dessa gesta, pois os seus cultos descendentes, delfins escolhidos ou apropriadores, não tiveram a mesma mão ou revolta. Por vezes, apesar de algum malabarismo institucional, dava a impressão de ser colocado de lado de forma mesquinha, não aparecia onde podia, talvez por causa do seu caráter difícil de lidar. Em terra que preza sobretudo a obediência, lá ía passando entre os pingos da chuva e encontrando os seus lugares, egocêntrico quanto baste, porque não dizê-lo, mas como se os defeitos privados se transmutassem em virtudes públicas. Creio que havia nele algo verdadeiramente próximo daquilo a que alguém chamou o uso público da razão, mas numa sua forma não completamente domesticada, cultuosa das tradições e obediente, antes como uma coisa meio indomável, de quem não tinha nunca, nos seus périplos, esquecido a ligação entre a arte e a vida."