28 de agosto de 2024

Quando éramos crianças comíamos flores. Elas apareciam e nós começávamos a demorar mais tempo a chegar a casa. Estávamos atentas às flores que podíamos comer, que sabíamos distinguir das que eram «venenosas», e que pendiam para o passeio de arbustos em quintais inacessíveis ou nasciam em bermas de estrada. Nem tudo na flor era comestível e os adultos ensinavam-nos o que e como as devíamos comer. As azedas eram as mais comuns. Apareciam logo em fevereiro, enchendo os campos de primaveras precoces, que cobriam de amarelo-pálido. Cortávamos o caule para as arrancar sem raiz e, desprezando a flor, mascávamos sem engolir um líquido ácido e transparente, quase desagradável, mas viciante, como a cola. De todas as flores que se seguiam a essas, primavera dentro, as minhas preferidas eram umas flores cor-de-laranja em forma de trompete, com umas antenas cor-de-rosa no interior. Nasciam já em cima do verão de uma espécie de trepadeira que pendia nos muros um pouco por toda a parte. Tínhamos de esperar que estivessem «maduras» para as apanhar, ou seja, grandes e quando o tom do cor-de-laranja se tornava escuro, quase vermelho. Nelas escondia-se uma espécie de mel, tão doce que estavam sempre cheias de formigas que havia que expulsar antes de sorver, com cuidado, para não danificar as pétalas que albergavam o licor. Soprávamos as formigas no silêncio cúmplice de quem está prestes a partilhar uma iguaria. Depois bebíamos como de um copo e, porque o prazer era curto, arrancávamos outra logo a seguir. Comíamos essas flores com voracidade e com pena de não conseguirmos chegar às mais altas uma vez colhidas as que conseguíamos alcançar. Comer flores era o que mais gostava de fazer na rua. Achava que estava a ser iniciada numa ciência secreta destinada aos sábios e aos alquimistas, o clube onde eu queria entrar para conhecer aquilo que, sendo invisível, na terra, na água, no ar e nas pessoas, mas também nos livros, fazia viver. Por isso quando íamos ao restaurante chinês, a Lisboa, escolhia a sobremesa que era uma flor, a flor que vinha do misterioso Oriente: uma flor cor-de-rosa, grande como uma magnólia, que os meus olhos enfeitiçados viam chegar em cima de um tabuleiro, no centro de uma pequena malga de cerâmica branca como uma nuvem. Sei que algures alguma criança continua a comer flores. Mas os adultos que continuam a ensiná-las são quem admiro. Quem se dedica a explicar-lhes minuciosamente como se faz para soprar as formigas e não danificar a flor, a que arbustos se pode subir e quais os que quebram apesar de parecerem bom apoio, como não devemos arrancar flores dos passeios, encharcadas de urina, mas apenas dos campos ou de lugares altos, que flores devemos escolher e aquelas em que não devemos sequer tocar, como os cardos-de-leite, cheios de espinhos, ou as papoilas, que morrem mal as arrancamos. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.