Estávamos num sítio parecido com a parte de baixo da estação do oriente, mas maior e tudo branco. Tu estavas a falar com um homem e eu chegava a andar sem tocar no chão. Quando me viste, olhaste para mim e depois para os pés suspensos. A sorrir, com a tua expressão das sobrancelhas arqueadas, abraçaste-me de uma maneira perturbadoramente intensa. Quando nos deslaçámos disse-te que ia a uma loja de vinis. Tu apareceste outra vez ao meu lado, para me acompanhar, disseste que querias ouvir música comigo e acho que fomos para tua casa ou para um sítio parecido. Caminhava a levitar. Perguntei-te se tu não sabias levitar também. Tu sorriste outra vez e deste-me a mão. Mas não levitaste. Nunca disseste nada. Estavas vestido de preto, tinhas um casaco mais claro. Estavas igual a ti. Por acaso lembro-me perfeitamente de como tu estavas e de mim não. Só sei que tinha um vestido e estava descalça, os pés e o vestido imaculados, mas não sei como era.
Sonhei contigo.
Tínhamo-nos separado há pouco tempo. Como já não acendias os meus cigarros e estavas distante, ia pedir lume a um mendigo com quem um dia tinha partilhado um muro e que me achava bonita. Muito sujas, as mãos dele tremiam. Cuspia para o isqueiro para amolecer a pedra e conseguir acendê-lo, mas o isqueiro não se acendia. Estava encardido e cheirava mal, sentado em cima do muro. Tu estavas lá ao fundo e nunca olhaste na minha direção. Isso deixou-me triste e enfurecida, mas não me levou a querer contrariar-te. Preferia estar com o meu amigo. Ainda que ninguém percebesse porque é que me sentia em paz com ele, o importante era que sentia.
Sonhei contigo na noite passada.
Estava de visita numa cidade à beira mar, as ondas cavalgavam as ruas e entravam nas casas perante a total passividade dos habitantes, entre os quais te incluías. Todos continuavam as suas vidas como se nem água houvesse. Olhei no sentido oposto das casas para a grande massa de água que invadia a golpes a cidade, e, com enorme assombro, reparei subitamente que o mar se deslocava de uma forma impossível: não para a frente, em direção a terra, mas para os lados, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se o mundo fosse o fundo de um balde que alguém havia colocado em movimento. Infelizmente era a única pessoa que sabia que aquilo era impossível. Não sabia se era o prenúncio de uma catástrofe, se o movimento tinha vindo para ficar, se ia passar. Tinha muita vontade de falar disso com alguém, mas os habitantes — e, embora não te visse, sabia que tu eras um dos habitantes daquela cidade — acreditavam que aquele era o comportamento habitual do mar, que sempre se tinha deslocado assim, para os lados. Acabei por me calar porque não valia a pena tratar como imponderável aquilo que todos viam como banal, mas também para não deixar de ver. Sentia-me a testemunha solitária de um evento impossível, extraordinário porque inviável, mas não tinha a quem o contar porque, como os outros, tu não vias o que eu via e não acreditavas em mim.
Sonhei outra vez contigo.
Saíamos de um lugar onde havia muitas árvores. Pensei que estava acordada. A dado momento, chegamos a uma casa onde entramos para descansar e deparamo-nos com uma sala branca, grande, suja e quase totalmente na escuridão, onde havia um ringue de boxe, também branco, no meio. Em cima do ringue estão um rapaz e um velho. Mal tu e eu entramos nessa sala, somos todos transformados em demónios. Cada um tem uma cor: verde, rosa, laranja e azul. Temos corpos híbridos, como as quimeras, todos diferentes, e, por cima do corpo, temos roupões de turco brancos. Subimos para o ringue. Olhamos desconfiados uns para os outros. Movemo-nos languidamente e deitamos a língua de fora como os répteis. Depois, guiados pelo velho, procuramos uma saída. Passamos portas e mais portas, nenhuma a certa, e finalmente conseguimos sair da sala por uma porta atrás da qual se encontra uma nova floresta. Acordei sem saber o que era.