6 de setembro de 2024

"Morre tanta gente importante, é tal a procissão de necrologias ostentatórias da homenagem, que estas produzem muitas vezes o efeito contrário, o de uma unanimidade nauseante, de uma insuportável domesticação cultural daquela vida que se findou. Uma pessoa, por pudor, até hesita em levantar a mão para dizer uma coisa simples que seja, lembrar uma memória qualquer, mas, às vezes, é mesmo preciso. Pese embora a minha admiração, nunca fui próximo do Augusto M. Seabra, teremos conversado umas cinco vezes na vida, se tanto, e sem qualquer intimidade, talvez pelo caráter arisco de ambos. E, no entanto, a importância do seu gesto crítico idiossincrático, que se estendia à programação de cinema, da sua saudável curiosidade cosmopolita, sem receio da sentimentalidade (não esqueço a crítica de um concerto de Mahler em que descrevia como as lágrimas lhe escorriam pelo rosto), contrastava tanto com o reservado umbiguismo local. Houve uma altura em que as suas crónicas de distantes festivais de cinema eram como explorações de domínios estrangeiros desconhecidos, lufadas de ar fresco nestes quartos locais bafientos, promessas de contemplações por vir. Víamos na página, por exemplo, o BLUE do Derek Jarman ou o SÁTÁNTÁNGO do Béla Tarr, antes de os encontrarmos uns anos depois nas salas, algumas vezes pela mão dele. Em particular, quando o cinema contemporâneo se renovou, algures pelos anos 90 e depois, o Augusto não se ficou pela segurança assertiva de um cânone já estabelecido e tentava esboçar as suas linhas incertas, nomeadamente na atenção que dedicava ao que emergia do sudeste asiático. Tudo isto num jornal que fundou e onde gozava de uma inesperada liberdade, e que é hoje uma pálida sombra dessa gesta, pois os seus cultos descendentes, delfins escolhidos ou apropriadores, não tiveram a mesma mão ou revolta. Por vezes, apesar de algum malabarismo institucional, dava a impressão de ser colocado de lado de forma mesquinha, não aparecia onde podia, talvez por causa do seu caráter difícil de lidar. Em terra que preza sobretudo a obediência, lá ía passando entre os pingos da chuva e encontrando os seus lugares, egocêntrico quanto baste, porque não dizê-lo, mas como se os defeitos privados se transmutassem em virtudes públicas. Creio que havia nele algo verdadeiramente próximo daquilo a que alguém chamou o uso público da razão, mas numa sua forma não completamente domesticada, cultuosa das tradições e obediente, antes como uma coisa meio indomável, de quem não tinha nunca, nos seus périplos, esquecido a ligação entre a arte e a vida."

André Dias

Uma ideia de programação #1: Augusto M. Seabra

"Na medida do possível, designadamente com objectos que são filmes, o nosso entusiasmo é algo que deve ser partilhado."

"... há uma outra fórmula que também sempre me marcou. É do chefe de redacção dos Cahiers desses anos, Jean Narboni. A propósito de momentos como a Mostra de Pesaro e outros, dizia: «Il y a un film, je l’ai rencontré»."

"Achava que tinha descoberto... Não gosto da expressão “descoberto”, porque parece que a coisa vem de nós, quando eles é que são importantes. Tinha encontrado um cineasta."

"Portanto, programar é um gesto de partilha, de partilha das opções próprias. E, para mim, é, de facto, a continuação do acto crítico por outros modos."

"Ao contrário do que houve há alguns anos, não existir um segundo canal da RTP que tenha responsabilidades de programação complementares às cinematografias dominantes é uma coisa que me parece grave."

"O ciclo «Diários filmados e autoretratos» do DocLisboa teve na imprensa níveis de interesse que de forma nenhuma teria se passasse isoladamente. Ou seja, nalguns aspectos era preferível que não passasse isoladamente. Tem a ver com questões de crítica. Quer dizer, sendo a crítica um acto por excelência de mediação, supõe colocar questões. E, evidentemente, ela hoje tende a desaparecer, tende a ser cada vez mais um acto de intermediação dentro de um processo de consumo. Isto anda tudo ligado."

"O cinema define-se, para além dos seus modos de produção, também pelo lugar do espectador."

"Por exemplo, tenho as maiores dúvidas (e isto é uma forma suave de pôr a questão) que o campo teórico genericamente considerado como o do pós-colonialismo seja hoje esteticamente operativo. Receio que, nalguns casos, se torne mesmo num paternalismo neo-colonial, por assim dizer. É exactamente o tipo de campo em que as obras surgem como demonstrações de um discurso pré-determinado."

"E especulativo não é a mesma coisa que demonstrativo. Nem que seja para se chegar à conclusão que as coisas nada tem a ver umas com as outras."

"O que gostaria era que houvessem condições para um trabalho de pensamento."

"Mas dentro deste trabalho todo, há também coisas que dão um gozo particular. E todas elas têm o seu risco particular. Mas não consigo pensar em programar sem pensar que é uma prática de riscos. (...). Acho que se põe uma ética da programação. A dimensão ética não está apenas presente nas obras em si mesmo, designadamente numa arte como o cinema, está presente num gesto de programação."

30 de agosto de 2024

Entrei na sala e estavam todos num círculo a olhar para a coisa. A coisa estava ao colo de uma das mulheres e aquela que deu à luz a coisa ofereceu-a ao homem. Mas o homem recusou pegar-lhe com um gesto da mão e virou o flanco à coisa. O homem disse: não tenho jeito, e colocou-se atrás da mulher que a tinha ao colo, olhando para a coisa. Quando disse isto, o homem ficou seco e definhou. A coisa não tinha nome. Estavam todos numa roda a olhar para ela e a passá-la de mão em mão, mas ninguém lhe queria dar um nome. Apesar de ser frágil, com sorrisos vaidosos e sem olhar uns para os outros, erguiam a coisa ao alto, pavoneavam formas originais de a segurar, nas mãos, nos braços, nas pernas, nos ombros. Se a coisa caísse, todos se quebrariam como cristal em infinitos pedaços que nunca mais voltariam a colar-se. Mas a coisa passava de mão em mão e todos riam enquanto a ofereciam sem dizer o seu nome. Estavam todos à espera que a coisa falasse, mas a coisa nada dizia e passava de mão em mão como se nada pudesse dizer. 

28 de agosto de 2024

Quando éramos crianças comíamos flores. Elas apareciam e nós começávamos a demorar mais tempo a chegar a casa. Estávamos atentas às flores que podíamos comer, que sabíamos distinguir das que eram «venenosas», e que pendiam para o passeio de arbustos em quintais inacessíveis ou nasciam em bermas de estrada. Nem tudo na flor era comestível e os adultos ensinavam-nos o que e como as devíamos comer. As azedas eram as mais comuns. Apareciam logo em fevereiro, enchendo os campos de primaveras precoces, que cobriam de amarelo-pálido. Cortávamos o caule para as arrancar sem raiz e, desprezando a flor, mascávamos sem engolir um líquido ácido e transparente, quase desagradável, mas viciante, como a cola. De todas as flores que se seguiam a essas, primavera dentro, as minhas preferidas eram umas flores cor-de-laranja em forma de trompete, com umas antenas cor-de-rosa no interior. Nasciam já em cima do verão de uma espécie de trepadeira que pendia nos muros um pouco por toda a parte. Tínhamos de esperar que estivessem «maduras» para as apanhar, ou seja, grandes e quando o tom do cor-de-laranja se tornava escuro, quase vermelho. Nelas escondia-se uma espécie de mel, tão doce que estavam sempre cheias de formigas que havia que expulsar antes de sorver, com cuidado, para não danificar as pétalas que albergavam o licor. Soprávamos as formigas no silêncio cúmplice de quem está prestes a partilhar uma iguaria. Depois bebíamos como de um copo e, porque o prazer era curto, arrancávamos outra logo a seguir. Comíamos essas flores com voracidade e com pena de não conseguirmos chegar às mais altas uma vez colhidas as que conseguíamos alcançar. Comer flores era o que mais gostava de fazer na rua. Achava que estava a ser iniciada numa ciência secreta destinada aos sábios e aos alquimistas, o clube onde eu queria entrar para conhecer aquilo que, sendo invisível, na terra, na água, no ar e nas pessoas, mas também nos livros, onde exatamente tudo acontecia, fazia viver. Por isso quando íamos ao restaurante chinês, a Lisboa, escolhia a sobremesa que era uma flor, a flor que vinha do misterioso Oriente: uma flor cor-de-rosa, grande como uma magnólia, que os meus olhos enfeitiçados viam chegar em cima de um tabuleiro, no centro de uma pequena malga de cerâmica branca como uma nuvem. Sei que algures alguma criança continua a comer flores. Mas os adultos que continuam a ensiná-las são quem admiro. Quem se dedica a explicar-lhes minuciosamente como se faz para soprar as formigas e não danificar a flor, a que arbustos se pode subir e quais os que quebram apesar de parecerem bom apoio, como não devemos arrancar flores dos passeios, encharcadas de urina, mas apenas dos campos ou de lugares altos, que flores devemos escolher e aquelas em que não devemos sequer tocar, como os cardos-de-leite, cheios de espinhos, ou as papoilas, que morrem mal as arrancamos. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Uma proposta

escrever pouco mas escrever bem
mas que ninguém saiba como
se define o que é bem
e o que é pouco
e o que é escrever. 

Mariano Blatt 

22 de agosto de 2024

"Fact is like clay. You shape it to your own ends."

John Gregory Dunne

13 de agosto de 2024

"Sus libros se nos aparecen como emanaciones de un sistema más amplio. Con todos los grandes escritores sucede lo mismo, pero en la mayoría ese mecanismo es virtual; en él fue real. Imaginemos que hubiera seguido con exclusividad el camino de las artes plásticas, del dibujo, o de la actuación. Supongamos, y es muy fácil suponerlo, que aun así hubiera seguido siendo Copi, el mismísimo Copi. En ese caso podemos imaginarnos que sus relatos existirían igual, en un estado que podríamos llamar “imaginario”. Serían algo así como “guiones” de otros gestos, estallarían en un punto, en un relámpago del pensamiento o de la vida. Ahí tocamos una condición propia de la literatura, una suerte de vacilación ontológica. No importa que la obra exista o no. No hay falacia más persistente y destructiva en el discurso sobre las artes que ésa de la importancia. El arte no es importante, ni siquiera es necesario; por el contrario, oscila en el borde de no ser, y las más de las veces, cuando más grande es, se esfuma. Supongamos el sistema-Copi en un Copi que no hubiera escrito una línea, ni dibujado un cuadrito, ni actuado, ni nada. Todo el sistema, con los rasgos que estamos tratando de discernir en él (la miniaturización, la velocidad, etc.) existirían lo mismo en un señor que viviera de la fortuna familiar o fuera diplomático o traficante de drogas. No existiría en su mente como una promesa incumplida (no se trata de fracaso o de ocio o de falta de realización), sino en ciertos gestos, en ciertas circunstancias, en lo que defectuosamente llamamos el Destino, en la superficie de su cuerpo y de su empleo del tiempo... Su tía paralítica no se habría transformado en la Mujer Sentada, porque no habría mujer sentada (aunque estaría la de Picasso), pero sí se habría transformado en la función que es la Mujer Sentada, y habría sido igualmente operativa en esa forma. Parece un ejercicio inútil de la fantasía, y seguramente lo es. Pero vale la pena pensarlo a la inversa: posar la vista en alguien cualquiera, no importa lo vulgar y anodino que sea, e imaginarse el sistema del que es soporte único e intransferible. Es un ejercicio de la fantasía igual de inútil, pero mucho más difícil, y nos da una idea, un atisbo, de lo que pudo querer decir Lautréamont: “La poesía debe ser hecha por todos, no por uno”. ¿Podemos imaginarnos ese mundo, de una inagotable riqueza literaria? Su mero planteo sirve para aminorar la “importancia” de la literatura. Más todavía: ese mundo excesivo, esa plétora barroca, es el único objeto que puede tener la literatura. En esta dirección nos alejamos de la consideración “material” del texto o la obra de arte en general. Ese tipo de crítica me parece errónea y nefasta. La literatura es una actividad fantasmática, sin materialidad alguna. ¿Qué clase de materia es la que podría no haber existido?"

Não sei de onde é, mas felizmente li, porque o A. publicou.

10 de agosto de 2024

Pouco após ter somado quarenta anos fui aprender a nadar. Apercebendo-se dos maus tratos do professor de natação que tive por volta dos seis anos, a maioria das mães retirou os filhos da aula e, depois do êxito insólito de ver os adultos confirmar que o que estava a acontecer era tão mau como eu achava, não voltei a querer aprender e ganhei um medo exagerado à água. Por um lado, a água era intimidante. Diziam que era perigosa, imprevisível. Que podia afogar-me. Que tinha de a respeitar. Por outro lado, não sabia nadar. Não tinha qualquer controlo corporal dentro de uma massa de água, de que acabava sempre a engolir grandes golfadas. Extremamente magra (a minha alcunha na escola era Olívia Palito), a força da água, no mar ou no rio, ganhava sempre. Quando, aos nove anos, se descobriu que era surda de um ouvido, e o médico aconselhou a não mergulhar ou frequentar a piscina, cheia de cloro, a sentença estava dada. Se na infância me senti aliviada por não ter de aprender a nadar, com os anos, para minha grande admiração, a impossibilidade de me movimentar dentro de água com à-vontade e segurança foi perfilando um desgosto profundo que me deixava desolada a cada vez que via água e, quanto mais longe ficava do professor de natação, melhor chegava à constatação surpreendente de que adoro água. A visão da água passou a ser um chamamento. Nos filmes, admirava os nadadores de longas distâncias que se salvam de prisões e de ilhas a nado e os namorados que se afastavam ao largo da costa para finalmente se entregarem um ao outro, longe dos olhares. Estive fascinada pelos saltos para a água, pela natação sincronizada, pelo mergulho, pelo pólo aquático e, claro, pela natação. Os corpos modelados, a aptidão em executar certas acrobacias, a elegância com que certos movimentos eram realizados, apesar de exigirem o emprego de uma força extraordinária, pertenciam ao domínio do ininteligível. Quando fiz quarenta anos, decidi que não morria sem saber nadar e inscrevi-me numas aulas para iniciantes na piscina do bairro. Todas as semanas lá ia eu, orgulhosíssima, com a minha touca, os óculos e o fato de banho de natação, nadar com crianças escoltadas por pais demasiado preocupados. Comecei sem saber praticamente nada e no final do ano sabia nadar a crawl e a bruços, conseguindo mesmo fazer a piscina toda duas ou três vezes. A apoteose chegou quando nadei no mar a primeira vez. Há um sentimento de compensação em perder o medo que não há em mais nada na vida.

24 de julho de 2024

Amedeo recebe uma carta de uma antiga amante, Simone Thiroux, estudante de medicina, que o informa do seu regresso ao Canadá e de ter dado à luz um filho, de que ele é pai. Amedeo nunca reconhece a criança. Diz que encontrou o seu grande e verdadeiro amor em Jeanne Hébuterne, uma pintora em ascensão com quem se muda para a Provença na primavera, depois de ela engravidar. A 29 de novembro de 1918, Jeanne dá à luz uma menina e regista-a sozinha: "Giovanna Hébuterne, pai desconhecido." No final de junho de 1919, descobre-se novamente grávida e diz a Amedeo, que lhe responde: "Não temos sorte!" É rejeitada pela família por querer estar com ele. Um ano depois, é o frio glacial do início de janeiro. Amedeo regressou de uma longa noite de absinto e drogas. Estão trancados no estúdio, escondidos, sem nenhuma visita durante uma semana. Amedeo delira de febre e ressaca e Jeanne desenha-se convulsivamente a si própria. Não têm carvão nem água. Quase não têm comida, comem sardinhas em lata. Grávida de nove meses, Jeanne desce até ao pátio nas traseiras do estúdio e carrega água do poço para casa enquanto Amedeo delira ou dorme. Quando Manuel aparece e vê a cena, envia Amedeo para ser internado e leva Jeanne para o Hotel de Nice, no boulevard Montparnasse. Amedeo morre sete dias depois no hospital. Informado da morte do seu irmão, Giuseppe telegrafa a Moïse: "Enterra-o como um príncipe". No dia seguinte, Manuel dá a notícia a Jeanne e leva-a ao hospital para ver Amedeo. Jeanne aproxima-se e olha para ele durante muito tempo. Depois, corta uma mecha de cabelo, coloca-o sobre o peito de Amedeo e sai sem dizer uma palavra. Prestes a entrar em trabalho de parto, os pais consentem em recebê-la, e Jeanne regressa ao bairro do Panthéon, onde nasceu. Fica a dormir no seu quarto, no quinto andar, vigiada pelo irmão André. Às três da manhã, com o irmão adormecido à beira da cama, abre a janela voltada para o pátio da rua Amyot, volta-se de costas e atira-se. Os corpos de Jeanne e do bebé são recolhidos por um operário que os transporta de volta ao quarto ao quinto andar, onde André lhe fecha a porta. Com a ajuda de um carrinho, o operário leva-os para o estúdio, onde a zeladora diz que Jeanne não é uma inquilina oficial e se recusa a recebê-los. O operário caminha sem rumo pela cidade. Encontra a polícia, que lhe ordena que leve os corpos de volta ao estúdio e mostra à zeladora uma ordem para os receber. Jeanne e o bebé ficam aí abandonados durante toda a manhã. Uma amiga de Jeanne da Academia Colarossi, Chantal Quenneville, e Jeanne Léger, vão até ao ateliê. Léger vai buscar uma enfermeira para os limpar e vestir. Os pais de Jeanne decidem enterrá-los no cemitério de Bagneux. A cerimónia é no dia seguinte, às escondidas e sem ninguém, o mesmo dia em que Amedeo vai a enterrar no Père Lachaise numa cerimónia que se transforma num estrondoso acontecimento público com centenas de amigos, amantes e admiradores. Giovanna, a filha do casal, então com quatorze meses, é levada para Livorno, a cidade onde Amedeo havia nascido. Educada pela avó Eugénie Garsin-Modigliani, e pela tia, Margherita Modigliani, cresce a ouvir falar sobretudo do seu pai. Nove anos depois, o seu tio convence os pais de Jeanne a juntar os seus restos mortais aos do príncipe de Montparnasse.

18 de julho de 2024





Texto para a exposição individual da minha talentosa amiga Fritz Simoneta
No ecomuseu de Pitões das Júnias até dia 15 de agosto. 

11 de julho de 2024

Faz hoje dez anos que desapareceu mais uma árvore no meu bairro. Do jardim do pátio do Palácio do Machadinho, feito pelo Ribeiro Telles, onde funcionou em tempos o departamento cultural da Câmara Municipal de Lisboa e estão a finalizar as obras que o transformará em mais um condomínio de luxo. Era a última árvore da rua do Quelhas no sentido de quem desce. Não sei que árvore era. Tinha o tronco e os ramos cinzentos, quase brancos, pequenas folhas prateadas e uns círculos mais escuros no tronco. Muito alta, alta como um cipreste, ficava no meio de um pátio que nas últimas décadas se destinava a estacionamento. De minha casa, na rua oposta, via-lhe a copa sempre cheia de pássaros. No dia anterior ao corte bloquearam os lugares de estacionamento da rua do Quelhas. Suspeitei, fui perguntar. O segurança revelou o motivo, seria no dia seguinte às 8:00, a árvore ameaçava cair, já não se encontrava ninguém com quem pudesse falar sobre isso. Em casa, enviei mais um email à Junta e à BRIPA a solicitar o envio dos relatórios da avaliação fitossanitária, estabilidade biomecânica e risco de rutura e a evocar os motivos de sempre: as autoridades são obrigadas a justificar as razões invocadas para o abate, o abate tem de ser justificado com relatório fitossanitário e deve ser usada a norma de Granada para fazer a compensação, que não indica que a uma árvore abatida deve corresponder uma árvore plantada, indo muito além disso (Lei 59/2021). Termino sempre a recordar que, em Portugal, o abate de árvores sem motivos válidos é ilegal. No dia seguinte, vi o tronco cortado e foi a última vez que a vi. Um defeito no espaço-tempo fez-me hoje erguer os olhos para a ver quando descia a rua mergulhada nos meus pensamentos. Por um instante, esqueci-me destes dez anos, esqueci-me que ela tinha desaparecido. Fui com a cabeça pesada como chumbo para casa, a pender sobre o alcatrão como se um íman a chamasse. Nos passos que me restaram até chegar, percebi que o corte destas árvores, sem tumulto, sem que rios de dinheiro sejam gastos a salvá-las, sem comoção, é a medida da minha posição política no mundo.

Jean-Honoré Fragonard, s/d.

6 de julho de 2024

10:00AM and there are no more shadows on the street. the light makes it blind. absolute luminosity, time without limits, without forms, without sin. dissolution brings happiness.

29 de junho de 2024

Certos dias, a manhã leva o dia todo sem passar.

PARSIFAL: 
I scarcely tread, 
yet seem already to have come far.
 
GURNEMANZ: 
You see, my son, 
time here becomes space.

Parsifal, Richard Wagner [levou vinte e cinco anos a ser escrita e estreou em Bayreuth, no dia 26 de julho de 1882].