28 de julho de 2023

 

2 de julho de 2023

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó. A extremidade do lado direito da varanda dava para a Serra e para o jardim da casa dos meus bisavós paternos, de onde vinha o perfume das rosas de Santa Teresinha, das laranjeiras e da hortelã. Havia uma bilha de barro ao fundo, onde a minha avó guardava água da fonte que um senhor vinha entregar-lhe a casa todas as semanas numa carrinha de caixa aberta. «Filha, vai lá abaixo depressa que é a água!» Nesta varanda dei os meus primeiros passos. No verão, a minha avó estendia colchões de praia e aí dormíamos, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo. É das noites de verão que me chega a primeira suspeita de estar só. Noites em que a toada dos grilos era de tal modo ensurdecedora que me impedia de dormir e me levava a ir para a varanda procurar as estrelas e dar com o imperscrutável lugar negro de onde vinha o som. A amendoeira em frente parecia morrer no inverno, explodia de flores na primavera, abrigava pássaros, insetos, por vezes gatos, e dava tantas amêndoas que chegariam para alimentar a Vila inteira. Era um milagre. 

Para lá dessa amendoeira, para lá dos telhados que a rodeavam, era o caminho que fazíamos até ao Colégio, muitas oliveiras, limoeiros, trigo, roseiras e amoreiras selvagens, algumas casas e a Serra sempre ao fundo, como uma onda prestes a engolir-nos. Da varanda da casa da minha avó vi várias vezes a Serra a arder. «Cheira a fogo!», gritava a minha avó muito antes dos bombeiros fazerem soar o alarme. À distância suficientemente confortável a que estávamos, todos os vizinhos corriam de um lado para o outro, como ela, na rua, para a janela e nas suas varandas, dando aviso e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes, a cinza enchia o ar. Quando havia cinza demais ela tapava-me a boca e eu tirava-lhe a mão da minha cara. Ela não insistia. Consoante o ano, a Serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro com exatidão, é de ver pequenos fogos até certo ano, um ano em que nada se via da Serra senão chamas que arderam todo o dia, toda a noite e na manhã seguinte ainda queimavam, instalando em nós a desolação. Os adultos disseram-nos depois desse fogo que já não havia lobos na Serra. Nos dias de fogo, depois da inquietação inicial, a minha avó ficava encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele. Não dizíamos quase nada.

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol. Quando era miúda, a minha avó sentava-me na varanda nos dias de sol e mexia-me na cabeça. Dizia que tinha de ver se tinha piolhos. Por vezes também dizia que tinha de me pentear, fazer os totós ou a trança, ou que era para medir a cabeça para o gorro de lã que havia de fazer. Mas quase sempre era para ver se tinha piolhos. Mal o sol começava a aparecer em fevereiro, ela começava a procurar piolhos. As azedas surgiam de um dia para o outro e espalhavam-se na paisagem como sardas, a terra transpirava acordando lentamente da gestação, as primeiras andorinhas chegavam aos beirais das casas, os cucos apareciam e voltavam a esconder-se como salteadores furtivos, ouviam-se os melros, a amendoeira floria, em certos dias, a Serra apresentava-se inteira, com contornos lilases e sem nevoeiro, e a minha avó mandava-me para a varanda depois do almoço para procurar piolhos. Ela mandava-me ficar quieta e eu fechava os olhos. Os seus dedos grossos e macios faziam uma leve pressão no meu couro cabeludo mole e deslizavam para os lados para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia. Procurando entre a cabeleira, ela afastava as mechas e demorava-se a repetir este gesto até chegar a hora de ter de me libertar para o Colégio. 

Contornando a casa e virada para a Serra, a varanda era enorme. A extremidade do lado esquerdo dava acesso à escada que levava ao jardim, e à saída de casa. Os adultos tinham tanto medo que nos aproximássemos da escada que colocavam bilhas de gás a bloquear a passagem. Lá em baixo, o portão para a rua que acumulava camadas de tinta, agora branco, tinha um truque para ficar fechado, portanto, estava sempre aberto. Em todos os degraus da escada havia um vaso com uma planta diferente. Ela estava sempre de volta das plantas. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava e ensinava-nos a procurar bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresciam, se era pé que pegasse, se deviam ser transplantadas dos vasos para o jardim. As plantas toda a vida lhe desviaram a atenção da saudação à chegada ou à despedida das netas e foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escada sem lhes tocar, a olhar para nós com uma expressão inefável atrás dos seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou uma espécie de assombro. Não sei se é esta a palavra certa. É assombro o que sentimos quando, impotentes que somos, estamos a ver alguém desaparecer? Pergunto-me o que acontece nesses dias, às vezes poucos dias, outras vezes muitos dias. Não é possível falar sobre a inevitabilidade, o que diríamos para além de coisas absurdas? Ou vulgares. Correríamos o risco de cometer a vulgaridade de nos defendermos.

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela. Do nascer ao pôr do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz nascia e desmoronava até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a Serra e mais nada. E bastava. Nunca pude lamentar os processos de mudança, observar a mudança é o para que fui feita. A mágoa que se lhes associa, ligada ao declínio do que desaparece, conheci-a num momento isolado, transformador, ao qual é inútil regressar: o dia em que, da varanda da casa azul da minha avó, vi um mar de telhados de casas, vi que a amendoeira tinha desaparecido, que uma das metades da varanda, justamente a do lado direito, voltada para a Serra, estava agora fechada por uma divisória de imaculado alumínio branco. Percebi que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria. 

A minha avó fazia trocadilhos. «Queijo não o como nem o vejo.» «Vamos à deita que o sono está à espreita.» Cantava o Tenho dois amores do Marco Paulo ou o Recordar é viver do Vítor Espadinha enquanto fazia o almoço. E assobiava. Estava sempre a cantar e a assobiar. O rádio estava sempre ligado, um tijolo com duplo deck para cassetes em cuja antena estávamos terminantemente proibidas de tocar. O rádio antigo, que antes estava na sala de jantar, esteve anos debaixo das escadas porque, dizia a minha avó, «Tem de ir a arranjar.» Era maior que uma televisão, todo em madeira e com as colunas forradas em tecido rosa velho. Por cima do rádio novo, na cozinha, a minha avó tinha sempre um calendário da Nossa Senhora de Fátima, daqueles de arrancar os meses. Não tinha medo de me tirar os piolhos. Mandava-me ir para o sol e massajava-me a cabeça, matava um a um com os dedos. Deixava-me fazer tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. E mexer no pedal da máquina de costura Singer. Chamava-me para ver o fogo. Todos os anos, na Serra que víamos da varanda. Eu saltava para o colo dela e ficava a ver a cinza que caía à nossa volta, o fogo no horizonte ao longe. A minha avó passou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para o fogo. 

Havia fogo debaixo da camilha. Na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. Tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. Num braseiro o fogo nunca se levanta. As brasas são atiçadas, trocadas, sopradas, queimadas e nunca incendeiam. A cozinha inteira ficava quente apesar de não haver fogo, mas apenas estas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. Quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia prolongando a espera porque «tínhamos de poupar». Depois, um dia, eu chegava do Colégio e a cozinha estava quente. Todo o tempo que podia ficar ali sentada passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. Quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível espreitar através da sarja para olhar para elas. O calor queimava a cara e obrigava a fechar os olhos, tínhamos de esperar. Procurei arranjar estratégias, sempre odiei esperar, nenhuma que funcionasse. Mal finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando. 

Apesar de tudo, era rápido. Demasiado rápido. E havia sempre muitas cinzas, parecia-me sempre haver mais cinzas do que poderia ter havido carvão. As cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas numa operação difícil e melindrosa que reunia várias mãos. As vibrantes brasas acesas davam-me a sensação de fazer parte delas. Mas o misterioso carvão negro guardado no saco de papel ao lado da bilha da água ao fundo da varanda era frio, inerte, silencioso. Podia olhar para ele o tempo que quisesse e sempre que desejasse. Podia tocar-lhe ou não. Podia dar-lhe outro uso, como escrever. Intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o com o imperscrutável lugar negro de onde vinha a canção dos grilos. Quebrava pequenos pedaços às escondidas e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. Mexia nos pedaços no fundo do bolso no caminho para o Colégio e pensava que alguma coisa no coração do mundo (e em mim) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, se calhar apenas cinza. Pensava-o sem temor, pelo contrário. Não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. Ser carvão, ser brasa, ser cinza. Viver.

Uma vez a minha avó levantou-se da mesa do almoço para me fazer mais pastéis de pescada (levavam ovo e salsa), comi quatorze nesse dia. Disseram-me que, quando o meu pai era jovem, ela levantava-se para lhe fazer um bife se ele não gostasse do almoço. Quando penso na minha infância, a primeira imagem que tenho é a de me forçarem a comer. O meu quotidiano era preenchido pelo asco da comida e pela recusa em comer. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, a sarja, os autocolantes de fruta, plantas e pássaros nos azulejos, tudo o que me possibilitasse fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de terminar a refeição. A comida fria acabava por ir para o lixo no meio dos gritos. Contaram-me que o meu pai era igual a mim e que tinha um truque: deitava a comida pela sanita e bebia vinagre, alguém lhe tinha contado que se o fizesse ficava magro. Achei isso genial e andei anos a tentar perceber como é que ele conseguia ir despejar a comida na sanita sem ninguém ver. Nas visitas à minha avó depois de entrar na faculdade, quando comecei a comer quatorze pastéis numa refeição, ela dizia que não percebia o que me tinha acontecido, que eu devia passar fome, e ria-se muito.

Lembro-me da minha avó dizer que «É preciso fazer um enxoval para as miúdas» e de acumular numa arca lençóis bordados, toalhas de mesa e toalhas de turco que trazia da feira. A minha mãe dizia que quando crescêssemos já não íamos gostar de nada daquilo e que havíamos de querer ter a nossa casa ao nosso gosto. Para a minha mãe, a independência de uma mulher era sagrada e nunca deixou que ninguém usurpasse a nossa. O enxoval na arca acabou por desaparecer. 

Nos longos estios em que a cidade toda saía à noite, em mangas cavas e alças, para passear no jardim e na avenida que contorna o rio, dormíamos na varanda. Comíamos gelados, crianças que nunca se tinham visto umas às outras entravam e saíam dos arbustos a correr e a rir alto sem que ninguém as mandasse calar, o café que tinha a esplanada debaixo de uma videira carregada de uvas brancas estava cheio, se chegássemos tarde não arranjávamos lugar. As velhas sentavam-se em bancos à porta de casa e ficavam a conversar até tarde, os velhos jogavam cartas e à malha. Saíamos todos juntos para passear na avenida, eu e a minha irmã, os meus pais, os meus avós, os meus tios. A seguir regressávamos a casa da minha avó e ela estendia colchões de praia na varanda. Dormíamos aí, ao relento, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo e na copa das árvores. Durante a noite, quando refrescava, os braços de alguém carregavam-me até à cama. O ar mole dessas noites que desapareceram era a imagem da felicidade. Na cidade onde nasci, no interior do país, agora as noites são desertas. Ninguém passeia, ninguém se encontra nos cafés, ninguém conversa até altas horas, as crianças ficam fechadas em casa a ver televisão ou a jogar. 

A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa que nunca mudava, ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. Os grilos que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. O que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. É por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. O que a existência tem de perecível é isto, o seu devir, tudo o resto talvez perdure. Mas a morte é inconclusiva. O rigor que se espera da morte, inclusive nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que termina: não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. Os fins são sempre remotos. Ao contrário da existência, que é aquilo que é, porquanto é, o fim é aquilo que nunca é, enquanto não é.


1 de julho de 2023

Atlas da Solidão


Doing the laundry.
Watching the pigeons.
Solitude is a science.

Anuradha Roy


Há um conto de Michel Tournier chamado Tristan Vox que fala de um homem — Félix Robinet — que trabalha na rádio apaixonando multidões com a sua bela voz, mas que não pode dar-se a conhecer fisicamente. Tristan Vox é o duplo de Félix Robinet que se forma através da imaginação dos ouvintes, uma imagem completamente alicerçada numa voz emitida através de circuitos de som, desde o microfone no estúdio ao aparelho de rádio em casa. Uma voz sem corpo, sem substância, sustentada pela distância e por um certo ensimesmamento. A existência de Félix Robinet fica, assim, consolidada numa personagem cuja sobrevivência só é possível à custa do distanciamento, de uma intersubjetividade completamente dilacerada e descarnada.

Em 2017, o cirurgião americano Vivek H. Murthy declarou haver uma «epidemia de solidão». Vivek Murthy era um jovem médico quando percebeu que a sua formação em medicina tinha ficado aquém das expetativas. Nada nessa formação o tinha preparado para um dos problemas de saúde mais frequentes que encontrava na sala de exames. Em 2018, o Reino Unido instaurou um Ministério da Solidão, sendo seguido pelo Japão com o Ministério para a promoção do envolvimento dinâmico de todos os cidadãos, em 2021. O Japão criou o seu Ministério porque, até outubro de 2020, morreram mais nipónicos por suicídio do que por Covid-19, registando-se uma subida de 750 suicídios face a 2019 (a primeira subida face ao ano anterior em 11 anos). Estas 750 pessoas eram jovens com menos de 18 anos e mulheres.

Como é que a vida moderna se tornou tão solitária? Até à contemporaneidade, muito poucos seres humanos viviam sozinhos. Aos poucos, não muito mais do que há um século atrás, isso mudou, e hoje, em todo o mundo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, uma percentagem que se acentua em particular nos países mais ricos. A solidão, parece desnecessário dizer, é tóxica e terrível para a saúde. Mas é importante manter as coisas em perspetiva. É inadequado comparar a vulgarização da vida sozinho com a “epidemia de solidão”, que é o que os artigos dos jornais escrevem frequentemente em manchetes alarmantes.

Os ingleses têm duas palavras para se referirem a dois tipos diferentes de solidão: loneliness — o estado negativo de estar sozinho, caracterizado pela sensação de falta — e solitude — a solidão que se escolhe, se deseja e traz felicidade, que amplia a consciência de si, a disponibilidade para a escuta, a criatividade, o sentido crítico e que reduz o stress. Em português podemos traduzir a primeira por solidão e manter a segunda, que o dicionário indica como linguagem poética. A primeira pode ser insuportável e é um sentimento comum e pode matar. A segunda é um sentimento benéfico, é mais raro e transforma a vida. A sociedade conta uma história em como fazer as coisas sozinho — comer sozinho, viajar sozinho, ser solteiro — está diretamente associado à tristeza, estranheza e injustiça. Mas há uma grande diferença entre a solidão e a solitude (do latim solitudĭne-). 

A depressão e o suicídio foram os fatores determinantes para que países como a Inglaterra e o Japão tenham criado os seus Ministérios da Solidão e para que a Austrália, a Alemanha e o Canadá se preparem para lhes seguir os passos. Mas há mais diferenças a estabelecer quando falamos de solidão: o isolamento social é entendido como o estado em que o contacto com os outros é mínimo ou inexistente. Distingue-se da solidão, que é um estado subjetivo com sentimentos negativos sobre ter um nível de contacto social inferior ao desejado. Embora algumas definições caracterizem a solidão como uma forma de isolamento social, outras afirmam que a solidão é uma reação emocional ao isolamento social. Os dois conceitos não são necessariamente coexistentes: uma pessoa pode sentir-se socialmente isolada e não se sentir solitária. Da mesma maneira, pode estar socialmente vinculada, mas sentir-se só. 

É um fenómeno vasto e complexo. Apesar de estar presente em todos os setores da sociedade, tendo por isso deixado de ser um problema de velhos, a verdade é que ninguém fala de solidão. A nível político o tema está completamente silenciado. E, no entanto, a solidão é uma questão política. Ser solitário não é apenas estar isolado. É não poder mostrar o seu autêntico eu. É sobre a dificuldade de encontrar pessoas com quem possamos estabelecer uma verdadeira união, com quem possamos partilhar a nossa angústia. Não é não ter pessoas à volta, por perto ou à distância de uma rede social, é antes não poder comunicar-lhes aquilo que é importante para nós. E não é apenas um sentimento de negligência pelos mais próximos, é também um sentimento de falta de apoio e atenção dos nossos concidadãos, do Governo e dos nossos empregadores. A solidão é um estado pessoal, social, económico e político. 

Quando o neoliberalismo surgiu nos anos 80, impôs implacavelmente a valorização da autonomia individual e interesse próprio acima do interesse da comunidade e do bem comum. O neoliberalismo é uma forma selvagem de capitalismo com ênfase na liberdade: liberdade de escolha, mercados livres, liberdade de interferência do Estado e dos sindicatos. O seu desenvolvimento foi crucial na atual crise de solidão: aumentou o fosso dos rendimentos. Criou um mundo dividido entre vencedores e fracassados, Estados escravizados pelos mercados e uma sociedade onde temos de nos defender. Uma sociedade onde cada um tem de cuidar de si mesmo pois mais ninguém o fará é uma sociedade de solitários. O capitalismo neoliberal veio remodelar não só relações económicas, mas também relações pessoais. Em 1981, Margaret Tatcher dizia ao Sunday Times: “A economia é o método; o objetivo é mudar a alma e o coração.” 

A solidão e o populismo de direita também andam de mãos dadas. Foi Hannah Arendt que escreveu pela primeira vez, no livro As origens do totalitarismo, sobre o elo entre a solidão e a política da intolerância (sobre como pessoas isoladas reagem com agressividade). A solidão não é de todo o único fator impulsionador do populismo, mas é um dos mais importantes. Há atualmente diversos estudos disponíveis sobre o papel da solidão no reforço de partidos como o Front-National, de Le Pen, e o PVV neerlandês, por exemplo. A participação em ações cívicas ou comunitárias reduz-se substancialmente, há falta de amigos, etc. Num estudo feito junto dos eleitores de Trump, a maioria das pessoas respondia ‘conto apenas comigo mesmo’. A solidão é também o sentimento de ser tratado injustamente, de se ver abandonado pelas instituições e incapacitado pelo Estado. A ausência de apoio das instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais, conduzem à obstrução da cidadania. Tal como o vazio de reconhecimento pelos nossos concidadãos. As pessoas que sofrem descriminações raciais, étnicas ou xenófobas sentem-se ainda mais solitárias. Bem como aquelas que são visadas por comportamentos sexistas e que são, como sabemos, na maioria mulheres.

E depois há as tecnologias. À medida que o nosso mundo se tem tornado cada vez mais pequeno com o aumento da conectividade através da Internet e das redes sociais, tem também vindo a tornar-se mais solitário. Porquê? Os écrãs estão a devorar a nossa capacidade de estar atento. Os smartphones tornaram-nos zangados e tribais, roubam a nossa atenção em detrito da capacidade de comunicar eficazmente e com empatia. Algoritmos avaliam capacidades cognitivas, características psicológicas, inteligência emocional e aptidões sociais e são manipulados para criar viés de rejeição ou inclusão (para dar um exemplo, a Amazon contratou uma empresa de IA que aprendeu a rejeitar CV’s de mulheres na contratação). Além disso, não percebemos como os algoritmos funcionam, a sua opacidade exacerba o nosso sentimento de impotência. E a solidão medra no vácuo criado pela impotência. Somos observados e, contudo, somos totalmente invisíveis. Ninguém está a escutar, sentimo-nos vulneráveis e sem controlo.

Desde 2020, as restrições para conter o vírus SARS-CoV 2 vieram agravar a situação, com elevado custo e consequências potencialmente graves para a saúde mental e física, um risco amplificado naqueles que têm doenças mentais pré-existentes. Mas perante o hodierno flagelo da felicidade, a solidão é um estigma: muitas pessoas negam que se sentem sozinhas. Vivemos no tempo mais conectado da história da humanidade e sentimo-nos isolados, esquecendo também que a solidão e a monotonia têm também um lado positivo: são essenciais para a abertura ao pensamento crítico e para a fruição da criatividade.

Como podemos passar da solidão à solitude? Um dos segredos é a conexão com a natureza. Passar tempo na natureza, sozinho, com amigos ou com a família, irá acabar com qualquer solidão e transformá-la em solitude. Além disso, passar tempo na natureza leva a uma melhor saúde geral, reduzindo os riscos de contrair inúmeras doenças. Esta é uma das razões porque é tão importante trazer a natureza para a cidade e porque cidades com falta de árvores e jardins como Lisboa, ao contrário do que algumas mensagens concentradas apenas na inovação tecnológica tentam passar, não são um exemplo para o futuro. 

Outra estratégia é usufruir de silêncio. A aceitação de si próprio vem e é potenciada de muitas maneiras através do silêncio. O silêncio pode ser incómodo, mas quando se está totalmente conectado e confortável consigo mesmo, não há nada de estranho no silêncio. Podemos começar por abandonar os auscultadores alguns minutos por dia. Por outro lado, a solidão não é apenas causada pelas circunstâncias da nossa vida privada e familiar, mas também pela forma como atualmente trabalhamos: os escritórios abertos são um exemplo de como a arquitetura se tem vindo a tornar hostil, um dos muitos fatores que tornaram o local de trabalho um espaço especialmente alienador e muitos outros aspetos destinados ao aumento da produtividade estão, afinal, a produzir o efeito contrário por nos fazerem sentir isolados.

Para que serve a solidão? Porque se torna ameaçadora? Como podemos usufruir da nossa solidão num mundo que se tornou mais veloz do que nunca? Atlas da Solidão foi um programa interdisciplinar construído para abordar o tema dos pontos de vista teórico, simbólico e prático. O programa — que incluiu conversas, um concerto, uma oficina para adolescentes, um curso online, performances, dança e uma exposição — decorreu na Appleton, em Lisboa, de 30 de março a 29 de abril de 2023.

Programa
31 março – 29 abril: Quero um dia em que não se espere nada de mim
Exposição coletiva com obras de Bert Timmermans, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues e Pedro Lagoa

4 e 5 abril: Terra Nullius, de Paula Diogo
Caminhada-espetáculo (versão Do It Yourself criada para o Atlas da Solidão)

10 a 13 abril: Melancolia, arte e literatura, por Vrndavana Vilasini
Curso online

14 abril: Margarida Garcia e Manuel Mota
Concerto

15 abril: O mapa, por Joana Cavadas
Laboratório de expressão experimental com desenvolvimento de um objeto artístico que resultou numa publicação (14 aos 17 anos)

20 e 21 abril: Comoção, de David Marques
Dança (estreia absoluta)

28 abril: Approach and Enter, de Vânia Rovisco
Performance-instalação no âmbito da exposição

29 abril: Uma comunidade de solidões*
Conferências de encerramento com Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)


Ficha técnica
Artistas: Bert Timmermans, David Marques, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Cavadas, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues, Manuel Mota, Margarida Garcia, Paula Diogo, Pedro Lagoa, Vânia Rovisco, Vrndavana Vilasini
Conferencistas: Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia) e Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Conceção, direção artística e comunicação: Marta Rema
Produção: Ricardo Batista
Design gráfico: João M. Machado
Assessoria de imprensa: Rita Bonifácio/Paris Texas
Apoio à comunicação: Ricardo Rodrigues
Fotografia: Alípio Padilha
Vídeo: Francisca Manuel
Parceria: Appleton
Apoio à comunicação: Antena 2, Buala, Baldio, CMLisboa, Coffeepaste, Umbigo
Organização: efabula
Financiamento: República Portuguesa — Cultura / Direção-Geral das Artes


*Título inspirado no livro Sobre a ideia de uma comunidade de solitários, de Pascal Quignard, publicado no Sr. Teste.


Duane Michals, The Human Condition, 6 impressões em folha de gelatina de prata com texto manuscrito, cada fotografia 12,8 x 17,8 cm.

26 de maio de 2023

“Oh overrunning river driven by the force of love. Flow to us flow to us!”

Forough Farrokhzad

22 de maio de 2023

O filme começa e penso:
 
quando morrer, vou ter tantas saudades de estar viva.

20 de maio de 2023

Ontem, numa festa, alguém falou de alguém e a seguir disse a palavra Kyiv. Os meus amigos eram músicos, uma delas contava a história de um músico com quem tocou recentemente na Alemanha que, de forma totalmente arbitrária e por uma questão de sorte, havia conseguido não ser deportado para a Ucrânia e tinha entrado no corredor dos pedidos de proteção nacional para residência e asilo. A sorte de ser um refugiado neste momento ao invés de integrar à força o exército ucraniano e a enorme estranheza de ouvir essa palavra hoje, fazendo eco de épocas terríveis que mantêm sobre nós a sinistra ameaça de voltarem a acontecer. «Mas é difícil», a minha amiga baixou a voz como se a angústia a asfixiasse. «Como é que voltas?» E, de maneira estranha, todos percebíamos como o regresso daquela pessoa ao seu país seria, senão impossível, sem dúvida complicado. Que sustentava a família inteira através da música a partir da Alemanha, continuou, mas que não podia vê-los. Que ele também percebia como alguém que está a ser atacado há tantos anos pode querer defender o seu país. Que os russos na Alemanha iam aos concertos dele e lhe declaravam a sua solidariedade. «Esses também vivem escondidos», repliquei, e a minha amiga corroborou vividamente a ideia sublinhando a sua existência. «Ele falou disso tudo», e o murmúrio da guerra na sua voz chegava aos meus ouvidos numa festa com música tecno em Lisboa onde as guerras que nos dividem são contra as hordas de turistas e a falta de habitação, onde, longe do terror da preservação da vida, assistimos ao naufrágio da cidade que todos procuram e a outros exílios. «Este sítio vai desaparecer», ouvi dizer várias vezes durante a noite a pessoas diferentes sobre o local onde nos encontrávamos, uma coletividade com um salão de festas, um palco, um bar, onde havíamos entrado atalhando caminho através de um restaurante de comida indiana com três funcionários, mas apenas uma mesa e música alta que, descubro também, está aberto há menos de um mês. No caminho até casa, pouco tempo depois, misturava-me com as filas de franceses que regressavam aos hotéis com os rostos acabados, com asiáticos da Índia com medo de olhar para mim e asiáticos da China indiferentes à minha passagem, grupos de nórdicos, ingleses e americanos bêbedos abraçados a gritar e a cantar, intermináveis filas de carros a apitar uns aos outros parados na Baixa e no Bairro Alto embora fosse pouco antes da uma da manhã, mulheres cuja puberdade me inquietou de salto alto e vestidos curtos brilhantes a saltar por cima dos buracos das obras, polícias a pares ou em batalhões. No elétrico mais luzes, mais turistas, turistas que tiram fotografias de dentro, turistas que tiram fotografias de fora. Ninguém a manifestar a sua solidariedade.

13 de maio de 2023

Só se consegue perceber como é que uma pessoa consegue passar uma vida num palco a cantar a mesma canção ao longo de 20, 30, 40 anos e ainda se divertir ou emocionar — ter tesão, como com acerto dizem os brasileiros —, quando nós próprios cantamos. Uma voz é uma relação com o infinito através do que em nós é transitório, um corpo, subitamente transformado num animal que seduz o cosmos.

7 de maio de 2023

“Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.”

Marguerite Yourcenar

4 de maio de 2023

Eu tenho 47 anos e nunca ganhei €1.000,00 nem nunca recebi um subsídio de férias inteiro, respondi. A audiência devolveu um silêncio pesado e embaraçado ao meu rosto impassível. Era a resposta à lamentação de um dos amigos com quem conversava sobre um aumento no salário de pouco mais de €230,00 nos últimos 5 anos. Mas tens casa própria, não é? e Mas tens uma casa tua, não é?, perguntaram ao mesmo tempo. A minha amiga, que acaba de comprar uma casa e se prepara para concluir um doutoramento, foi a primeira a arrancar com a frase de forma peremptória, atirando os ombros para trás e as mãos para os lados do corpo, como se estivesse a dizer também «Para tudo», embora, provavelmente sem que ela soubesse, o terror nos olhos se sobrepusesse ao leve sorriso que acompanhava o gesto engraçado. O meu rosto impassível voltou a responder e as cores abandonaram os deles. Felizmente as soluções começaram logo a aparecer. Mas tu podes fazer um doutoramento e ter uma bolsa. São quatro anos. Não queres?, era novamente a minha amiga a falar. Pois!, disse o meu amigo, que parecia achar a ideia inequivocamente adequada. Vocês trabalham 8 horas?, perguntei. 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de sono, essa grande conquista de 100 anos!, respondeu o meu amigo, que é evangelista do PCP. Sim, respondi. Mas vocês trabalham 8 horas? A minha amiga levantou o pé e pousou-o no banco ao nosso lado, apoiando os braços sobre a perna. Olhou para o lado, para fora da conversa, e respondeu que tinha estado a trabalhar no fim-de-semana. O meu amigo anuiu rapidamente que, de facto, trabalha muito mais do que 8 horas, muito, muito mais. Um pouco a medo, pois não saberia o que dizer se me respondessem que era a única pessoa no mundo nessa situação, prossegui: Eu sento-me à secretária às 9H00 e termino pelas 20H00 com uma pausa de 20 minutos para almoçar. A seguir vais estudar ou escrever? Os meus amigos olharam de soslaio um para o outro, discretamente para o chão, e decidiram atenuar o seu desalento. Então és pobre!, disse o meu amigo e, seguido pela minha amiga, abraçou-me com pancadinhas afáveis nas costas rindo alto e elogiando a minha gargalhada única e a beleza física que mantinha aos 47 anos. Como seria possível de outra maneira? Devolvi-lhes um sorriso nipónico e acompanhei-os ao mudarem de assunto. Ao voltar para casa, revia na minha memória esta conversa e estes gestos quando me lembrei de outra amiga que, um dia, encontrando-me a trabalhar atrás do balcão de uma loja após ter passado por um momento de exposição pública por ter estado, havia pouco tempo, ligada a um importante projeto artístico, me disse, igualmente estarrecida, ao transferir dinheiro da carteira dela para a minha mão para pagar o que lá tinha ido comprar, que depois de ter feito certos trabalhos, já não podia fazer trabalhos destes. Não percebi logo o que ela queria dizer, fiquei perplexa e senti-me ofendida, perguntei porquê. É desprestigiante, respondeu. A custo disfarcei uma gargalhada monumental no momento, mas não parei de pensar naquilo nos dias a seguir, creio que cheguei mesmo a escrever sobre isso na altura num caderno qualquer. O que é preciso para que alguém possa dizer-nos uma coisa destas, um sentimento de profunda amizade ou o opróbrio ignaro e pateta do privilégio? E porque me tinha sentido ofendida, com quê? Porque, perante o que confere prestígio, o esforço gigantesco que cada uma das coisas que faço exige é invisível e, por isso, insignificante. O insignificante e o essencial estavam ao contrário, como diz o poeta, o primeiro sempre a ameaçar o segundo. Construí por esses dias intermináveis e dilacerantes discursos sobre a vida das pessoas como eu, que tinham contas para pagar, famílias sem recursos, histórias de abuso e violência, doenças incapacitantes pelo meio e solidão, ao contrário da minha amiga ao lado de quem caminhava nas manifestações e que, aos 20 e poucos anos, vendia a primeira casa, oferecida pelos pais, para ir viajar. Enquanto esta história antiga se misturava com a conversa de hoje e com pensamentos sobre a relação entre o prazer e a partilha genuína de intimidade, lembrei-me do amigo que talvez me entendesse e da sua frase categórica cuja limpidez me aturdiu: Preferia não me comover comigo próprio. O que importa é depararmo-nos com a beleza e saber vê-la, não é?


 
Forough Farrokhzad, A Casa é Negra (1963).

2 de maio de 2023

“Nous vivons dans un monde plutôt désagréable, où non seulement les gens, mais les pouvoirs établis ont intérêt à nous communiquer des affects tristes. La tristesse, les affects tristes sont tous ceux qui diminuent notre puissance d’agir. Les pouvoirs établis ont besoin de nos tristesses pour faire de nous des esclaves. Le tyran, le prêtre, les preneurs d’âmes, ont besoin de nous persuader que la vie est dure et lourde. Les pouvoirs ont moins besoin de nous réprimer que de nous angoisser, ou, comme dit Virilio, d’administrer et d’organiser nos petites terreurs intimes. La longue plainte universelle qu’est la vie… On a beau dire « dansons », on est pas bien gai. On a beau dire « quel malheur la mort », il aurait fallu vivre pour avoir quelque chose à perdre. Les malades, de l’âme autant que du corps, ne nous lâcheront pas, vampires, tant qu’ils ne nous auront pas communiqué leur névrose et leur angoisse, leur castration bien-aimée, le ressentiment contre la vie, l’immonde contagion. Tout est affaire de sang. Ce n’est pas facile d’être un homme libre : fuir la peste, organiser les rencontres, augmenter la puissance d’agir, s’affecter de joie, multiplier les affects qui expriment un maximum d’affirmation. Faire du corps une puissance qui ne se réduit pas à l’organisme, faire de la pensée une puissance qui ne se réduit pas à la conscience.”

Gilles Deleuze, Dialogues, com Claire Parnet.

8 de abril de 2023

12 de março de 2023

O primeiro rosto, mostras ao mundo.
O segundo rosto, mostras aos amigos íntimos e à família.
O terceiro rosto, nunca mostras a ninguém.
 
Provérbio japonês
Em Fraggle Rock as pessoas que tinham um problema iam consultar um sábio monte de lixo. Para lá chegar, tinham de atravessar um assustador túnel escuro e ultrapassar um gigante mau. Depois o lixo levantava-se como uma montanha. Era aterrador e ao mesmo tempo extraordinário. O monte de lixo começava a mexer-se lentamente, primeiro como lava a borbulhar e finalmente erguia-se, imponente. Era tão insólito que eu não conseguia tirar os olhos do ecrã e estava sempre ansiosa para voltar a ver. “Outra vez!” O monte de lixo resolvia sempre os problemas e era muito sábio. "The trashy is all!", não sei como é que traduziam isto, mas era isso que eu percebia: tudo era lixo. O lixo era uma forma suprema de vida porque recebia toda a vida, era a vida a transformar-se, em decomposição, a devir. Já era adulta quando percebi que o monte de lixo era uma senhora, quando eu via o Fraggle Rock não era nem um senhor nem uma senhora, era lixo. Mas mal ouvia as perguntas das personagens porque tinha uma ânsia visceral de lhe fazer eu própria as minhas perguntas. Um comboio de perguntas a entrar uma após a outra na minha cabeça, mal uma se formulava, já outras duas estavam a meio de se definir. Entre elas, enquanto via o monte de lixo demonstrar a sua sapiência, interrogava-me se teria coragem de atravessar aquele túnel tão comprido e tão escuro. Interrogava-me se, uma vez lá, o monte de lixo a levantar-se, de que eu tinha muito medo, não seria intimidante ao ponto de me emudecer. Não conseguir perguntar nada. De que tinha eu medo se também tinha tanta vontade de falar com ele? Tinha medo de uma coisa que passa de invisível a visível diante dos meus olhos. Tinha medo de estar a olhar para uma coisa e não ver o que lá estava. Tinha medo de estar a olhar e não ver as coisas maravilhosas que estavam à frente do meu nariz.