Como é que a vida moderna se tornou tão solitária? Até à contemporaneidade, muito poucos seres humanos viviam sozinhos. Aos
poucos, não muito mais do que há um século atrás, isso mudou, e hoje, em
todo o mundo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, uma
percentagem que se acentua em particular nos países mais ricos. A
solidão, parece desnecessário dizer, é tóxica e terrível para a saúde.
Mas é importante manter as coisas em perspetiva. É inadequado comparar a
vulgarização da vida sozinho com a “epidemia de solidão”, que é o que os artigos dos jornais escrevem frequentemente em manchetes alarmantes.
Os ingleses têm duas palavras para se referirem a dois tipos diferentes
de solidão: loneliness — o estado negativo de estar sozinho, caracterizado pela sensação de falta — e solitude
— a solidão que se escolhe, se deseja e traz felicidade, que amplia a
consciência de si, a disponibilidade para a escuta, a criatividade, o
sentido crítico e que reduz o stress. Em português podemos traduzir a
primeira por solidão e manter a segunda, que o dicionário indica como
linguagem poética. A primeira pode ser insuportável e é um sentimento
comum e pode matar. A segunda é um sentimento benéfico, é mais raro e
transforma a vida. A sociedade conta uma história em como fazer as
coisas sozinho — comer sozinho, viajar sozinho, ser solteiro — está
diretamente associado à tristeza, estranheza e injustiça. Mas há uma
grande diferença entre a solidão e a solitude (do latim solitudĭne-).
A depressão e o suicídio foram os fatores determinantes
para que países como a Inglaterra e o Japão tenham criado os seus
Ministérios da Solidão e para que a Austrália, a Alemanha e o Canadá se
preparem para lhes seguir os passos. Mas há mais diferenças a
estabelecer quando falamos de solidão: o isolamento social é entendido
como o estado em que o contacto com os outros é mínimo ou inexistente.
Distingue-se da solidão, que é um estado subjetivo com sentimentos
negativos sobre ter um nível de contacto social inferior ao desejado.
Embora algumas definições caracterizem a solidão como uma forma de
isolamento social, outras afirmam que a solidão é uma reação emocional
ao isolamento social. Os dois conceitos não são necessariamente
coexistentes: uma pessoa pode sentir-se socialmente isolada e não se
sentir solitária. Da mesma maneira, pode estar socialmente vinculada,
mas sentir-se só.
É um fenómeno vasto e complexo. Apesar de estar
presente em todos os setores da sociedade, tendo por isso deixado de ser
um problema de velhos, a verdade é que ninguém fala de solidão. A nível
político o tema está completamente silenciado. E, no entanto, a solidão
é uma questão política. Ser solitário não é apenas estar isolado. É não
poder mostrar o seu autêntico eu. É sobre a dificuldade de encontrar
pessoas com quem possamos estabelecer uma verdadeira união, com quem
possamos partilhar a nossa angústia. Não é não ter pessoas à volta, por
perto ou à distância de uma rede social, é antes não poder comunicar-lhes
aquilo que é importante para nós. E não é apenas um sentimento de
negligência pelos mais próximos, é também um sentimento de falta de
apoio e atenção dos nossos concidadãos, do Governo e dos nossos
empregadores. A solidão é um estado pessoal, social, económico e
político.
Quando o neoliberalismo surgiu nos anos 80, impôs
implacavelmente a valorização da autonomia individual e interesse
próprio acima do interesse da comunidade e do bem comum. O
neoliberalismo é uma forma selvagem de capitalismo com ênfase na
liberdade: liberdade de escolha, mercados livres, liberdade de
interferência do Estado e dos sindicatos. O seu desenvolvimento foi
crucial na atual crise de solidão: aumentou o fosso dos rendimentos.
Criou um mundo dividido entre vencedores e fracassados, Estados
escravizados pelos mercados e uma sociedade onde temos de nos defender.
Uma sociedade onde cada um tem de cuidar de si mesmo pois mais ninguém o
fará é uma sociedade de solitários. O capitalismo neoliberal veio remodelar não só relações económicas, mas também relações pessoais. Em 1981, Margaret Tatcher dizia ao Sunday Times: “A economia é o método; o objetivo é mudar a alma e o coração.”
A solidão e o populismo de direita
também andam de mãos dadas. Foi Hannah Arendt que escreveu pela primeira
vez, no livro As origens do totalitarismo, sobre o elo entre a solidão e
a política da intolerância (sobre como pessoas isoladas reagem com
agressividade). A solidão não é de todo o único fator impulsionador do
populismo, mas é um dos mais importantes. Há atualmente diversos
estudos disponíveis sobre o papel da solidão no reforço de partidos
como o Front-National, de Le Pen, e o PVV neerlandês, por exemplo. A
participação em ações cívicas ou comunitárias reduz-se substancialmente,
há falta de amigos, etc. Num estudo feito junto dos eleitores de Trump,
a maioria das pessoas respondia ‘conto apenas comigo mesmo’. A solidão é
também o sentimento de ser tratado injustamente, de se ver abandonado
pelas instituições e incapacitado pelo Estado. A ausência de apoio das
instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais,
conduzem à obstrução da cidadania. Tal como o vazio de reconhecimento
pelos nossos concidadãos. As pessoas que sofrem descriminações raciais,
étnicas ou xenófobas sentem-se ainda mais solitárias. Bem como aquelas
que são visadas por comportamentos sexistas e que são, como sabemos, na
maioria mulheres.
E depois há as tecnologias. À medida que o nosso mundo se
tem tornado cada vez mais pequeno com o aumento da conectividade através
da Internet e das redes sociais, tem também vindo a tornar-se mais
solitário. Porquê? Os écrãs estão a devorar a nossa capacidade de estar atento. Os smartphones tornaram-nos zangados e tribais, roubam a nossa
atenção em detrito da capacidade de comunicar eficazmente e com
empatia. Algoritmos avaliam capacidades cognitivas, características
psicológicas, inteligência emocional e aptidões sociais e são
manipulados para criar viés de rejeição ou inclusão (para dar um
exemplo, a Amazon contratou uma empresa de IA que aprendeu a rejeitar
CV’s de mulheres na contratação). Além disso, não percebemos como os
algoritmos funcionam, a sua opacidade exacerba o nosso sentimento de impotência. E a solidão medra no vácuo criado pela impotência. Somos observados e, contudo, somos totalmente invisíveis. Ninguém está a escutar, sentimo-nos vulneráveis e sem controlo.
Desde 2020, as restrições para conter o vírus SARS-CoV 2 vieram agravar a situação, com elevado custo e consequências potencialmente graves para a saúde mental e física, um risco amplificado naqueles que têm doenças mentais pré-existentes. Mas perante o hodierno flagelo da felicidade, a solidão é um estigma: muitas pessoas negam que se sentem sozinhas. Vivemos no tempo mais conectado da história da humanidade e sentimo-nos isolados, esquecendo também que a solidão e a monotonia têm também um lado positivo: são essenciais para a abertura ao pensamento crítico e para a fruição da criatividade.
Como podemos passar da solidão à solitude? Um dos segredos é a conexão com a natureza. Passar tempo na natureza, sozinho, com
amigos ou com a família, irá acabar com qualquer solidão e transformá-la
em solitude. Além disso, passar tempo na natureza leva a uma melhor
saúde geral, reduzindo os riscos de contrair inúmeras doenças. Esta é
uma das razões porque é tão
importante trazer a natureza para a cidade e
porque cidades com falta de árvores e jardins como Lisboa, ao contrário
do que algumas mensagens concentradas apenas na inovação tecnológica
tentam passar, não são um exemplo para o futuro.
Outra estratégia é
usufruir de silêncio. A aceitação de si próprio vem e é potenciada de
muitas maneiras através do silêncio. O silêncio pode ser incómodo, mas
quando se está totalmente conectado e confortável consigo mesmo, não há
nada de estranho no silêncio. Podemos começar por abandonar os
auscultadores alguns minutos por dia. Por outro lado, a solidão não é
apenas causada pelas circunstâncias da nossa vida privada e familiar,
mas também pela forma como atualmente trabalhamos: os escritórios
abertos são um exemplo de como a arquitetura se tem vindo a tornar
hostil, um dos muitos fatores que tornaram o local de trabalho um espaço
especialmente alienador e muitos outros aspetos destinados ao aumento
da produtividade estão, afinal, a produzir o efeito contrário por nos
fazerem sentir isolados.
Para que serve a solidão? Porque se torna ameaçadora? Como podemos usufruir da nossa solidão num mundo que se tornou mais veloz do que nunca?
Atlas da Solidão foi um programa interdisciplinar construído para abordar o tema dos pontos de vista teórico, simbólico e prático. O programa — que incluiu conversas, um concerto, uma oficina para adolescentes, um curso online, performances, dança e uma exposição — decorreu na
Appleton, em Lisboa, de 30 de março a 29 de abril de 2023.
Programa
31 março – 29 abril:
Quero um dia em que não se espere nada de mimExposição coletiva com obras de Bert Timmermans, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues e Pedro Lagoa
4 e 5 abril:
Terra Nullius, de Paula Diogo
Caminhada-espetáculo (versão Do It Yourself criada para o Atlas da Solidão)
10 a 13 abril: Melancolia, arte e literatura, por Vrndavana Vilasini
Curso online
14 abril: Margarida Garcia e Manuel Mota
Concerto
15 abril: O mapa, por Joana Cavadas
Laboratório de expressão experimental com desenvolvimento de um objeto artístico que resultou numa publicação (14 aos 17 anos)
20 e 21 abril: Comoção, de David Marques
Dança (estreia absoluta)
28 abril: Approach and Enter, de Vânia Rovisco
Performance-instalação no âmbito da exposição
29 abril:
Uma comunidade de solidões*
Conferências de encerramento com Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Ficha técnica
Artistas: Bert Timmermans, David Marques, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Cavadas, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues, Manuel Mota, Margarida Garcia, Paula Diogo, Pedro Lagoa, Vânia Rovisco, Vrndavana Vilasini
Conferencistas: Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia) e Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Conceção, direção artística e comunicação: Marta Rema
Produção: Ricardo Batista
Design gráfico: João M. Machado
Assessoria de imprensa: Rita Bonifácio/Paris Texas
Apoio à comunicação: Ricardo Rodrigues
Fotografia: Alípio Padilha
Vídeo: Francisca Manuel
Parceria: Appleton
Apoio à comunicação: Antena 2, Buala, Baldio, CMLisboa, Coffeepaste, Umbigo
Organização: efabula
Financiamento: República Portuguesa — Cultura / Direção-Geral das Artes
*Título inspirado no livro
Sobre a ideia de uma comunidade de solitários, de Pascal Quignard, publicado no
Sr. Teste.
Duane Michals, The Human Condition, 6 impressões em folha de gelatina de prata com texto manuscrito, cada fotografia 12,8 x 17,8 cm.