Bloqueei o cartão do telemóvel e, enquanto procurava pelo cartão com os códigos, encontro uma carta de uma amiga com quem deixei de ter relações. Datada de 2001, a carta fala de mim e de como ela se sente próxima de mim na minha desorientação, na minha tristeza. De como gostaria de tentar tocar-me «num momento mau» (não me recordo o que aconteceu na minha vida nessa altura). Esta carta, perdida entre papéis onde não mexia há vinte anos, é um sinal de uma pessoa que não existe para mim, que não conheço. Tenho a tentação de a fechar mal a abro e reconheço a assinatura, mas uma força mórbida puxa-me e dou por mim a fazer um esforço para a ler. Sinto que o mundo para nesse momento. Estou com ela, uma vez mais. Quando termino, é como se uma dura consciência, muito viva, me tivesse apanhado: vejo a realidade como dupla, ela e o seu avesso, a vida e a sua sombra. Um pequeno momento de alegria é atravessado pela noção de que será interrompido, quem sabe se será o último. Fica um sabor confuso, uma vaga melancólica. Fecho a carta e não vejo ninguém na minha sintonia. Que animal verá assim?
9 de setembro de 2021
9 de agosto de 2021
Quando era pequena sentia-me orgulhosa porque a Justiça era representada como uma mulher. Havia tantos homens em todo o lado, mas a Justiça, que segura a balança e a espada — uma para equilibrar, outra para cortar — era feminina. Este orgulho confortava-me e nutri-o durante muito tempo, quando pensava na ideia de Justiça, quando passava à frente de uma destas estátuas, quando lia sobre mitologia. É muito difícil ser justo. A Justiça, quando era representada pelos gregos, tinha os olhos abertos, para poder ver tudo, todos os pormenores. Quando, mais tarde, os romanos a quiseram representar, vendaram-na. Lembro-me de ter um sentimento muito estranho quando vi uma estátua dessas pela primeira vez. Creio que se chama impotência. Apressei-me a perguntar pela razão e explicaram-me que a venda se destinava a garantir que todos são tratados por igual, sem distinção. Achei isso muito lindo. Desejei que fosse verdade e achei que a Justiça de olhos abertos não via nada. Levou-me a pensar que a imparcialidade era difícil e que, se lhe tinham colocado uma venda, era porque a Justiça era frágil, até a Justiça podia falhar. Fiquei muito triste, eu que a via de forma majestosa nestas estátuas como um ser tão poderoso, afinal talvez fosse por isso que a tivessem representado como uma mulher. Passei a vê-la como um ser alegórico, uma parábola: desejamos a sua perfeição, procuramo-la, mas ela não está ao nosso alcance. Quando já estava na escola primária, contaram-me sobre Salomão. Salomão foi um rei de Israel a quem deus deu tudo por este, num sonho, lhe ter pedido sabedoria para governar o seu povo. Durante o seu longo reinado foi visitado por representantes de todos os povos por tratar a todos por igual e por saber aplicar a Justiça e usufruiu de poder, inteligência, riqueza, glória, honra e uma vida longa. Um dia, duas prostitutas vieram ter com ele afirmando serem as duas mães de um bebé. Criando um ardil, Salomão mandou cortar o bebé em dois para que cada mãe recebesse metade e, logo, a verdadeira mãe implorou para que a criança fosse entregue à impostora. A história impressionou-me como a história do escorpião e da tartaruga me impressionava, mas esta, em lugar de me excitar, deixou-me um sabor de desalento. Não conhecia ninguém capaz de encontrar a verdade assim. Por outro lado, que teria acontecido à mãe que desejava um filho e não o tinha? Teria ele ameaçado matar o bebé se se tratasse de mulheres nobres? Também me perguntava se ele teria sido realmente capaz de cortar o bebé ao meio para encontrar a verdadeira mãe, o que teria feito caso o ardil não funcionasse. Questionava-me, obviamente, sobre a validade dos métodos. Ovídio diz que os fins justificam os meios, que resultados perfeitos podem ser fruto de ações imperfeitas. Infelizmente, estou totalmente de acordo.
12 de julho de 2021
10 de julho de 2021
15 de abril de 2021
8 de março de 2021
Eu quero foder foder foder
Eu quero foder foder / achadamente / se esta revolução / não me deixa foder até morrer / é porque não é revolução nenhuma / a revolução não se faz nas praças nem nos palácios / (essa é a revolução dos fariseus) / a revolução faz-se na casa de banho de casa / da escola / do trabalho / a revolução entre as pessoas deve ser uma troca / hoje é uma relação de poder / (mesmo no poder) / a ceifeira ceifa contente / ceifa nos tempos livres / (semana de 24×7 horas já!) / a gestora avalia a empresa pela casa de banho / e canta contente porque há alegria no trabalho / o choro da bébé não impede a mãe de se vir / a galinha brinca com a raposa / eu tenho o direito de estar triste.
Adília Lopes, Eu quero foder in Florbela Espanca Espanca.
22 de fevereiro de 2021
1 de fevereiro de 2021
hoje, abri uma janela de chat com um amigo e disse-lhe: "tenho vontade de viver". mas que difícil organizar a vontade de fazer tantas coisas e ter de trabalhar para outrem. partir, partir, sempre partir para ver mais mundo, estar mais com os outros, rir mais alto, aprender mais um passo de dança e gastá-lo até cair. não sabemos nada da vida e de nós próprios também hesito em afirmar que possamos saber alguma coisa. vamos de um lado ao outro da alegria e damos com a tristeza, de um lado ao outro da tristeza e damos com a alegria. temos íntimos exóticos devorados pelo silêncio da incerteza e da certeza e avançamos, mas não vamos a lado nenhum. estar aqui é absoluto, temos uma voz, um corpo, e as coisas respondem-nos cheias de bondade, oferecem-nos a qualidade do perigo, do inesperado, onde, como diz o poeta, me tornei hábil a cair verticalmente.
19 de janeiro de 2021
6 de janeiro de 2021
8 de outubro de 2020
O Poder de Circe
Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.
Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.
Louise Glück
1 de outubro de 2020
partout son empreinte. Elle se mesure avec la matière qu’elle métamorphose, avec la forme qu’elle transfigure. Éducatrice de l’homme, elle le multiplie dans l’espace et dans le temps."
Henri Focillon, La vie des formes.
17 de setembro de 2020
20 de agosto de 2020
There is, Kafka says, ‘plenty of hope, an infinite amount of hope–but not for us.’ There is hope always only for another– and for ‘us’ only when there is, so to speak, no ‘us,’ when ‘we’ stop being ‘ourselves’ and begin to be another. ‘Plenty of hope,’ therefore, ‘but not for us.’
Werner Hamacher, The Gesture in the Name.