Bloqueei o cartão do telemóvel e, enquanto procurava pelo cartão com os códigos, encontro uma carta de uma amiga com quem deixei de ter relações. Datada de 2001, a carta fala de mim e de como ela se sente próxima de mim na minha desorientação, na minha tristeza. De como gostaria de tentar tocar-me «num momento mau» (não me recordo o que aconteceu na minha vida nessa altura). Esta carta, perdida entre papéis onde não mexia há vinte anos, é um sinal de uma pessoa que não existe para mim, que não conheço. Tenho a tentação de a fechar mal a abro e reconheço a assinatura, mas uma força mórbida puxa-me e dou por mim a fazer um esforço para a ler. Sinto que o mundo para nesse momento. Estou com ela, uma vez mais. Quando termino, é como se uma dura consciência, muito viva, me tivesse apanhado: vejo a realidade como dupla, ela e o seu avesso, a vida e a sua sombra. Um pequeno momento de alegria é atravessado pela noção de que será interrompido, quem sabe se será o último. Fica um sabor confuso, uma vaga melancólica. Fecho a carta e não vejo ninguém na minha sintonia. Que animal verá assim?