23 de março de 2020

"I wish it need not have happened in my time", said Frodo. "So do I", said Gandalf, "and so do all who live to see such sad times. But that is not for them to decide. All we have to decide is what to do with the time that is given to us."

J. R. R. Tolkien, The Fellowship of the Ring.

22 de março de 2020

#1 dia

a última vez que fui ao supermercado, vi o segurança feliz. penso sempre no segurança quando vou ao supermercado. penso que é um dos trabalhos mais frustrantes que deve haver, sozinho e em silêncio, vigiando a banalidade, arrumando cestos para tentar ser útil, esticando as pernas entre a zona das caixas e a entrada. claro que aqui e ali haverá pequenos furtos que sejam apanhados, mas deve ser muito raro. o comum é a grande monotonia que reveste a nossa vida. neste dia, contudo, o segurança estava cá fora, à porta, com um rolo de senhas numa mão e uma garrafa de esguicho noutra. perto dele estavam umas cinco mulheres, com quem conversava animadamente. enquanto isso, distribuía as senhas pelos que chegavam, chamava números, trocava palavras amáveis com as pessoas que passavam por ele para entrar: «quer um pouco de desinfetante?». todos, de resto, eram muito cordiais. na rua, os que esperávamos, tentávamos manter os dois metros de distância física a custo, pois éramos cerca de 80. nos corpos fechados ao contacto, havia uma tentativa de descontração: a espera para entrar seria longa.
desde que estou em casa, tenho falado todos os dias com mais pessoas do que era habitual antes da quarentena. surgiu a necessidade de perguntar a todos como estão. com as pesadas consequências que isso terá, os artistas lançaram-se às redes sociais e ao live streaming. entre os solteiros organizam-se jantares por skype. a incógnita, todavia, sobre a sobrevivência daqueles que perderam ou virão a perder o seu meio de subsistência, sobre aqueles de nós que irão morrer e os que irão sobreviver, é insidiosa. estamos todos à espera do momento em que tudo irá colapsar. enquanto isso, há quem espere o melhor do futuro. há dias, uma amiga dizia-me num chat que o vírus vai mudar o mundo. segundo ela, o importante neste momento é «passar a onda» para nos adaptarmos a uma nova realidade sem carros a gasolina e em que todos trabalhamos a partir de casa. de acordo com o cenário que prevê, haverá muito menos trabalho e muitas empresas fecham, as pessoas já não voltam às fábricas e são substituídas por robôs, o que obrigará o Estado a implementar o rendimento universal. havia nela um grande entusiasmo, porventura o mesmo que contagia os grandes pensadores, aqueles que conseguem ver para lá dos próprios umbigos, entre os quais, admito, não me incluo. a imagem mais otimista que consigo vislumbrar neste momento, para além de um grande almoço com os amigos e a família, é a de uma natureza a crescer desenfreadamente nas ruas das nossas cidades, enquanto estamos em casa.

Il y a d'autres mondes, mais ils sont dans celui-ci.
Il y a d'autres vies, mais elles sont en toi.

Paul Éluard

9 de março de 2020

Ainda jovem, depressa concebeu a ideia de que um dia teria de deixar de respirar e de andar, de pensar e de comer, de dormir e de trabalhar e, tendo frequentado tanto mansardas como faustosos salões, lidado com homens de diversa índole, encontrou silenciosamente o seu próprio território, descobrindo no recolhimento um estado de felicidade próximo da perfeição.

Robert Walser, Histórias de imagens.

5 de março de 2020

Os aimarás, um povo originário da região andina da América do Sul, concebem de uma forma diferente a associação entre o tempo e o espaço. Em aimará, a palavra ‘nayra’ significa ‘passado’ mas também significa ‘à frente’, ‘à vista’. E a palavra ‘quipa’, que significa ‘futuro’, também indica ‘atrás’. Isto é, na língua aimará o passado está à frente e o futuro, atrás. Sabemos que isto reflete a sua maneira de pensar, porque também expressam esta relação usando o corpo. Os aimarás esticam os braços para trás para se referirem ao futuro e para a frente para aludirem ao passado.

Mariano Sigman, A vida secreta da mente.

27 de fevereiro de 2020

Quando tinha cerca de 9 anos, numa brincadeira com o meu pai e com a minha irmã, descobri que afinal, como sempre tinha acreditado, não ouvia como os outros. Nos dias a seguir, foi-me dito que era surda de um ouvido de nascença, havendo forte probabilidade de vir a ficar completamente surda mais tarde. Foi num desses dias que coloquei pela primeira vez a pergunta “O que é o silêncio?”. Com o tempo, o questionamento divergiu para outras perguntas. “O que é o silêncio para um surdo” passou a “O que é o silêncio para um mudo” e percebi que há muitas perspetivas sobre o silêncio, nomeadamente a de ser uma forma de comunicação não verbal importantíssima. Pergunto-me pois qual é a sua relação com a linguagem. Se nasceu com o espaço e o tempo. Porque é tão importante para a religião. Qual é o seu papel na criação. E, como no Atmosphere dos Joy Division, quando é que pode ser perigoso. 
Parte integrante do programa As coisas fundadas no silêncio, as conferências dos dias 3 e 4 de março, que terão lugar no Pequeno Auditório da Culturgest, vão andar em torno destas questões. Doze oradores de áreas das ciências naturais, humanas e das artes, fazem uma análise crítica sobre o significado do silêncio a partir dos seus corpos de trabalho, investigação e criação. As suas diferentes abordagens em diálogo, constitui uma oportunidade e um desafio para pessoas que normalmente não se encontram. 

Jonas Mekas, As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty.

22 de fevereiro de 2020

Oh, se fôssemos índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o pescoço e a cabeça.

Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.

16 de fevereiro de 2020

There is nothing at all to be done about it;
There is nothing to do about anything.
And now it is nearly time for the News;
We must listen to the Weather Report
And the international catastrophes.

T.S. Eliot, The Family Reunion.

5 de fevereiro de 2020

A CHILD'S AMAZE

SILENT and amazed, even when a little boy,
I remember I heard the preacher every Sunday put God in his
statements,
As contending against some being or influence.


Walt Whitman

4 de fevereiro de 2020

Saio do autocarro e dou um passo em direção ao meu bairro, cheio de árvores, pequenos jardins e canteiros por estes dias de sol já a rebentar de verde, tanto, que a fila de jacarandás da avenida se encheu de folhas — ainda em janeiro. Um cheiro primaveril atinge-me com uma pancada e os meus passos tornam-se mais lentos e mais prazerosos. Enquanto caminho, descubro em mim uma felicidade, autónoma e inviolável como uma galáxia, cujas razões desconheço. A serenidade das ruas nesta hora crepuscular penetra-me sem que o possa impedir e nem dos meus mortos sinto falta, pois tudo está vivo em mim.

24 de janeiro de 2020

INTERVIEWER: Mr. Faulkner, you were saying a while ago that you don't like interviews.

WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.

21 de janeiro de 2020

O olhar vago dos velhos nas fotografias perturba-me e, ao mesmo tempo, alegra-me. Para onde olham? O que veem? Parecem ausentes e, contudo, correspondem ao momento. Para além do desajuste às exigências da vida, essa vagueza — imagino eu com ingenuidade — é a possibilidade de encontrar outra vida, outra história, como as que uma criança encontra nas sombras. Apetece-me defendê-los dos bolos de aniversário cheios de velas, da violência das perguntas que se repetem, sempre as mesmas, da Cristina Ferreira e dos dias cinzentos, sem ninguém. Mas talvez eles não precisem de defesa. Talvez as velas, as perguntas e a Cristina Ferreira preencham uma cavidade que entretanto se mostrou oca.

18 de janeiro de 2020

O luto sobrepõe-se à melancolia.

*

Há que dirigir-se ao outro fora da subordinação de qualquer eficácia.

*

É necessário falar a sua própria linguagem. Isto é um problema político.

*

São os murmúrios do mundo que nos sustentam.

*

Nunca se procura o que se encontra.

11 de janeiro de 2020

(...) 14 de janeiro

todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).

Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu".  E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.