3 de outubro de 2024

Um amigo envia-me um excerto do diário de Franz Kafka, de 1915, onde ao longo de quase dois meses, entre janeiro e março, o escritor se lamenta com o flagelo da ausência da escrita. Fala de «incapacidade», de «paralisação», «impotência», de «perda» inexorável. Os seus esforços perante a página em branco são um «tormento sem fim», como se fosse um instrumento de tortura, o «tempo voa», o apetite desaparece e o medo — medo de se ter deixado consumir a sobreviver e de não voltar a conseguir reunir forças para escrever — sonda. Para agradecer ao meu amigo, na resposta, esforço-me a procurar explicar em duas frases que nos últimos tempos voltei a escrever no diário sobre aquilo que, de modo rudimentar, nomeei «falta de linguagem», e digo-lhe que, na última entrada sobre esse assunto, escrevi que a falta de linguagem era o assunto sobre o qual mais tinha escrito no diário desde que — aos dez anos, isso não disse — comecei a escrever um diário, e o motivo pelo qual — voltei a não dizer — leio os livros que leio, escolhi o curso que escolhi, tenho o trabalho que tenho e olho para trás, não para dizer o que não foi dito, mas para dar a ver o que não é dito. Podia ainda ter acrescentado que a falta de linguagem foi a razão que me tornou refém de amores desesperados e totais, mas a seguir acrescento apenas que, hoje mesmo, acordei a pensar numa frase que anotei ontem no blogue, retirada de uma entrevista de 2017 a Rachel Cusk que andei a reler. O que Cusk diz não é sobre a falta de linguagem nem sobre a ausência da escrita. É uma frase brilhante que conotei com uma teimosia pessoal que, com frequência, perturba o encontro dos meus textos com outros escritores (embora não com outros leitores): a necessidade de preencher o texto com referências. Pelo contrário, quando escrevo, tenho tendência para desprezar os acessórios da descrição e quero eliminar ou, se possível, sequer trazer, aquilo de que não compreendo a exigência no texto e a que Cusk elegantemente chama o conhecimento útil, isto é, supérfluo, a começar, com todo o zelo, pelo uso do eu, de que hoje se faz permanente elogio como se na vida não houvesse mais que fazer. Resumindo, quando escrevo não sou levada a preencher, mas sim a esvaziar. Essa tendência traz-me muitas vezes o desconsolo de descobrir que a escrita não passou a barreira, que o essencial falta. Não a linguagem utilitária, mas precisamente a outra, que perfura espaço, tempo, ar, impasses, infortúnios, alegrias, gosto, pele, carne, rios de sangue e ossos, em direção ao coração. É a busca por essa linguagem que falta que me obstina a reescrever há anos os mesmos textos, ao ponto de já me parecer ser apenas um e sempre o mesmo texto. Acrescento, então, sem consumir o tempo do meu amigo com explicações a que nada deve, que por acaso acordei a lembrar-me de uma frase que li numa entrevista. Que acordei a pensar não exatamente na frase, mas que, estando sozinha a escrever, a tentar escrever, a não conseguir escrever, a ser povoada de escrita enquanto a vida passa a curvar-me as costas, como se estivéssemos cada um no seu precipício a falar para a escarpa em face, inabordável como a nossa, ou para o vazio, as vozes corajosas dos escritores que são sinceros acompanham-me. Ao procurar o texto cortado na imagem, volto a encontrar uma dessas frases: "De vez em quando sinto uma infelicidade que quase me desmembra e, ao mesmo tempo, estou convencido da sua necessidade e da existência de um objetivo para o qual nos encaminhamos passando por todo o tipo de infelicidade." 

*

JANUARY 20: The end of writing. When will it take me up again?

JANUARY 29: Again tried to write, virtually useless.

JANUARY 30: The old incapacity. Interrupted my writing for barely ten days and already cast out. Once again prodigious efforts stand before me. You have to dive down, as it were, and sink more rapidly than that which sinks in advance of you.

FEBRUARY 7: Complete standstill. Unending torments.

MARCH 11: How time flies; another ten days and I have achieved nothing. It doesn’t come off. A page now and then is successful, but I can’t keep it up, the next day I am powerless.

MARCH 13: Lack of appetite, fear of getting back late in the evening; but above all the thought that I wrote nothing yesterday, that I keep getting farther and farther from it, and am in danger of losing everything I have laboriously achieved these past six months. Provided proof of this by writing one and a half wretched pages of a new story that I have already decided to discard… Occasionally I feel an unhappiness that almost dismembers me, and at the same time am convinced of its necessity and of the existence of a goal to which one makes one’s way by undergoing every kind of unhappiness.


26 de setembro de 2024

"Mother, I shall die before winter 
but I am afraid that I'll bloom again in this world."

Shiv Kumar Batalavi (poeta punjabi, 1937-73).

25 de setembro de 2024

Torna-se cada vez mais difícil atravessar a cidade. Ir a certos bairros, caminhar em certas ruas, é hoje para mim uma tortura, e o corredor — como aqueles corredores do Indiana Jones cujas paredes se fecham quando lá se entra — está a apertar. Não me queixo da Lisboa caótica, suja e onde há muito a fazer. Tenho saudades dessa cidade. Não suporto o ordenamento doentio das cidades da Europa do Norte ou da Suíça, onde até no outono faltam folhas caídas no chão. Lisboa foi devorada por outdoors gigantes, mupis e afins, com todo o tipo de publicidade a empresas e partidos políticos. Imagens e palavras medonhas, a competirem em agressividade, tamanho e metro quadrado ocupado umas com as outras, de forma intimidante e abjeta. Desviando o trajeto para me refugiar, entrei nos dois pequenos jardins com que me cruzei. O mesmo que se repete em toda a cidade: árvores cortadas, a relva desapareceu totalmente, bancos estragados, e, mesmo assim, conseguem permanecer como bálsamos restauradores, umas bolhas de milagre de onde não queremos sair, também elas ameaçadas. Depois, de repente, numa paragem de autocarro, dois mupis da JC Decaux que não foram vendidos decorados com a paisagem de um bosque. É uma daquelas paragens antigas. Em breve, ela não terá onde se sentar.

22 de setembro de 2024

"C'est parce que nous n'avons plus rien à cacher que nous ne pouvons plus être saisis. Devenir soi-même imperceptible, avoir défait l'amour pour devenir capable d'aimer. Avoir défait son propre moi pour être enfin seul, et rencontrer le vrai double à l'autre bout de la ligne. Passager clandestin d'un voyage immobile. Devenir comme tout le monde, mais justement ce n'est un devenir que pour celui qui sait n'être personne, n'être plus personne. Il s'est peint gris sur gris." 

Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux, pp. 241-42.

"Si le devenir-femme est le premier quantum, ou segment moléculaire, et puis les devenirs-animaux qui s'enchaînent avec lui, vers quoi se précipitent-ils tous ? Sans aucun doute, vers un devenir-imperceptible. L'imperceptible est la fin immanente du devenir, sa formule cosmique. [...] Mais que signifie devenir-imperceptible, à la fin de tous les devenirs moléculaires qui commençaient par le devenir-femme ? Devenir imperceptible veut dire beaucoup de choses. Quel rapport entre l'imperceptible (anorganique), l'indiscernable (asignifiant) et l'impersonnel (asubjectif) ? On dirait d'abord : être comme tout le monde. C'est ce que raconte Kierkegaard, dans son histoire du « chevalier de la foi », l'homme du devenir : on a beau l'observer, on ne remarque rien, un bourgeois, rien qu'un bourgeois. C'est ce que vivait Fitzgerald : à l'issue d'une vraie rupture, on arrive… vraiment à être comme tout le monde. Et ce n'est pas facile du tout, ne pas se faire remarquer. Etre inconnu, même de sa concierge et de ses voisins. Si c'est tellement difficile, être « comme » tout le monde, c'est qu'il y a une affaire de devenir. Ce n'est pas tout le monde qui devient comme tout le monde, qui fait de tout le monde un devenir. Il y faut beaucoup d'ascèse, de sobriété, d'involution créatrice : une élégance anglaise, un tissu anglais, se confondre avec les murs, éliminer le trop-perçu, le trop-à-percevoir. « Eliminer tout ce qui est déchet, mort et superfluité », plainte et grief, désir non satisfait, défense ou plaidoyer, tout ce qui enracine chacun (tout le monde) en lui-même, dans sa molarité. Car tout le monde est l'ensemble molaire, mais devenir tout le monde est une autre affaire, qui met en jeu le cosmos avec ses composantes moléculaires. Devenir tout le monde, c'est faire monde, faire un monde. A force d'éliminer, on n 'est plus qu'une ligne abstraite, ou bien une pièce de puzzle en elle-même abstraite. Et c'est en conjugant, en continuant avec d'autres lignes, d'autres pièces qu'on fait un monde, qui pourrait recouvrir le premier, comme en transparence."

Idem, ibidem, pp. 342-43, que já havia citado parcialmente aqui, e ambos enviados há muito tempo pelo A.

20 de setembro de 2024

"Truth is stranger than fiction, but it is because fiction is obliged to stick to possibilities. Truth isn't."

Mark Twain

17 de setembro de 2024

“(…) lies form a substantial part of who we are.”

Javier Cercas

12 de setembro de 2024

“Writing only needs a reader. It doesn’t need you.”

Elena Ferrante

9 de setembro de 2024

Sonhei contigo.
Estávamos num sítio parecido com a parte de baixo da estação do oriente, mas maior e tudo branco. Tu estavas a falar com um homem e eu chegava a andar sem tocar no chão. Quando me viste, olhaste para mim e depois para os pés suspensos. A sorrir, com a tua expressão das sobrancelhas arqueadas, abraçaste-me de uma maneira perturbadoramente intensa. Quando nos deslaçámos disse-te que ia a uma loja de vinis. Tu apareceste outra vez ao meu lado, para me acompanhar, disseste que querias ouvir música comigo e acho que fomos para tua casa ou para um sítio parecido. Caminhava a levitar. Perguntei-te se tu não sabias levitar também. Tu sorriste outra vez e deste-me a mão. Mas não levitaste. Nunca disseste nada. Estavas vestido de preto, tinhas um casaco mais claro. Estavas igual a ti. Por acaso lembro-me perfeitamente de como tu estavas e de mim não. Só sei que tinha um vestido e estava descalça, os pés e o vestido imaculados, mas não sei como era. 

Sonhei contigo.
Tínhamo-nos separado há pouco tempo. Como já não acendias os meus cigarros e estavas distante, ia pedir lume a um mendigo com quem um dia tinha partilhado um muro e que me achava bonita. Muito sujas, as mãos dele tremiam. Cuspia para o isqueiro para amolecer a pedra e conseguir acendê-lo, mas o isqueiro não se acendia. Estava encardido e cheirava mal, sentado em cima do muro. Tu estavas lá ao fundo e nunca olhaste na minha direção. Isso deixou-me triste e enfurecida, mas não me levou a querer contrariar-te. Preferia estar com o meu amigo. Ainda que ninguém percebesse porque é que me sentia em paz com ele, o importante era que sentia.

Sonhei contigo na noite passada.
Estava de visita numa cidade à beira mar, as ondas cavalgavam as ruas e entravam nas casas perante a total passividade dos habitantes, entre os quais te incluías. Todos continuavam as suas vidas como se nem água houvesse. Olhei no sentido oposto das casas para a grande massa de água que invadia a golpes a cidade, e, com enorme assombro, reparei subitamente que o mar se deslocava de uma forma impossível: não para a frente, em direção a terra, mas para os lados, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se o mundo fosse o fundo de um balde que alguém havia colocado em movimento. Infelizmente era a única pessoa que sabia que aquilo era impossível. Não sabia se era o prenúncio de uma catástrofe, se o movimento tinha vindo para ficar, se ia passar. Tinha muita vontade de falar disso com alguém, mas os habitantes — e, embora não te visse, sabia que tu eras um dos habitantes daquela cidade — acreditavam que aquele era o comportamento habitual do mar, que sempre se tinha deslocado assim, para os lados. Acabei por me calar porque não valia a pena tratar como imponderável aquilo que todos viam como banal, mas também para não deixar de ver. Sentia-me a testemunha solitária de um evento impossível, extraordinário porque inviável, mas não tinha a quem o contar porque, como os outros, tu não vias o que eu via e não acreditavas em mim.

Sonhei outra vez contigo.
Saíamos de um lugar onde havia muitas árvores. Pensei que estava acordada. A dado momento, chegamos a uma casa onde entramos para descansar e deparamo-nos com uma sala branca, grande, suja e quase totalmente na escuridão, onde havia um ringue de boxe, também branco, no meio. Em cima do ringue estão um rapaz e um velho. Mal tu e eu entramos nessa sala, somos todos transformados em demónios. Cada um tem uma cor: verde, rosa, laranja e azul. Temos corpos híbridos, como as quimeras, todos diferentes, e, por cima do corpo, temos roupões de turco brancos. Subimos para o ringue. Olhamos desconfiados uns para os outros. Movemo-nos languidamente e deitamos a língua de fora como os répteis. Depois, guiados pelo velho, procuramos uma saída. Passamos portas e mais portas, nenhuma a certa, e finalmente conseguimos sair da sala por uma porta atrás da qual se encontra uma nova floresta. Acordei sem saber o que era.

7 de setembro de 2024


Hiroshi Shimizu, Hachi no su no kodomotahci [Children of the Beehive], 1948.

"Gitte enfiou descuidadamente o frasco no bolso das calças de ganga e sentou-se ao lado dela. Era fascinantemente feia e cheirava a suor. Lise respondeu-lhe com um sorriso de orelha a orelha. O medo inundou o quarto como um líquido. O relógio na sala de jantar deu as oito." 

Tove Ditlevsen, Os Rostos [tradução de João Reis].
"Pessoas eram Mrs. LaGrone, Mrs. Hendricks, a Mãezinha, o reverendo Sneed, a Lillie B, e a Louise e o Rex. Os brancos não podiam ser pessoas porque tinham os pés demasiado pequenos, a pele demasiado branca e transparente e, quando andavam, não apoiavam o pé na parte da frente como fazem as pessoas: caminhavam pondo o peso nos calcanhares, como os cavalos." 

Maya Angelou, Sei porque canta o pássaro na gaiola [tradução de Tânia Ganho].

6 de setembro de 2024

“Começo o meu relato hoje, dia cinco de Novembro. Tentarei descrever tudo da forma mais exacta que me for possível. No entanto, nem sequer tenho a certeza de estarmos a cinco de Novembro. Perdi‑me na contagem dos dias ao longo do último Inverno. Também não sou capaz de indicar em que dia da semana estamos. Não creio, porém, que se trate de um dado importante. Conto apenas com escassos apontamentos. São, de facto, escassos, porque não tinha a intenção de escrever este relato. Receio agora que as minhas recordações não correspondam exactamente àquilo por que passei e que vivi.”

Marlen Haushofer, A Parede [tradução de Gilda Lopes Encarnação].

"Morre tanta gente importante, é tal a procissão de necrologias ostentatórias da homenagem, que estas produzem muitas vezes o efeito contrário, o de uma unanimidade nauseante, de uma insuportável domesticação cultural daquela vida que se findou. Uma pessoa, por pudor, até hesita em levantar a mão para dizer uma coisa simples que seja, lembrar uma memória qualquer, mas, às vezes, é mesmo preciso. Pese embora a minha admiração, nunca fui próximo do Augusto M. Seabra, teremos conversado umas cinco vezes na vida, se tanto, e sem qualquer intimidade, talvez pelo caráter arisco de ambos. E, no entanto, a importância do seu gesto crítico idiossincrático, que se estendia à programação de cinema, da sua saudável curiosidade cosmopolita, sem receio da sentimentalidade (não esqueço a crítica de um concerto de Mahler em que descrevia como as lágrimas lhe escorriam pelo rosto), contrastava tanto com o reservado umbiguismo local. Houve uma altura em que as suas crónicas de distantes festivais de cinema eram como explorações de domínios estrangeiros desconhecidos, lufadas de ar fresco nestes quartos locais bafientos, promessas de contemplações por vir. Víamos na página, por exemplo, o BLUE do Derek Jarman ou o SÁTÁNTÁNGO do Béla Tarr, antes de os encontrarmos uns anos depois nas salas, algumas vezes pela mão dele. Em particular, quando o cinema contemporâneo se renovou, algures pelos anos 90 e depois, o Augusto não se ficou pela segurança assertiva de um cânone já estabelecido e tentava esboçar as suas linhas incertas, nomeadamente na atenção que dedicava ao que emergia do sudeste asiático. Tudo isto num jornal que fundou e onde gozava de uma inesperada liberdade, e que é hoje uma pálida sombra dessa gesta, pois os seus cultos descendentes, delfins escolhidos ou apropriadores, não tiveram a mesma mão ou revolta. Por vezes, apesar de algum malabarismo institucional, dava a impressão de ser colocado de lado de forma mesquinha, não aparecia onde podia, talvez por causa do seu caráter difícil de lidar. Em terra que preza sobretudo a obediência, lá ía passando entre os pingos da chuva e encontrando os seus lugares, egocêntrico quanto baste, porque não dizê-lo, mas como se os defeitos privados se transmutassem em virtudes públicas. Creio que havia nele algo verdadeiramente próximo daquilo a que alguém chamou o uso público da razão, mas numa sua forma não completamente domesticada, cultuosa das tradições e obediente, antes como uma coisa meio indomável, de quem não tinha nunca, nos seus périplos, esquecido a ligação entre a arte e a vida."

André Dias

Uma ideia de programação #1: Augusto M. Seabra

"Na medida do possível, designadamente com objectos que são filmes, o nosso entusiasmo é algo que deve ser partilhado."

"... há uma outra fórmula que também sempre me marcou. É do chefe de redacção dos Cahiers desses anos, Jean Narboni. A propósito de momentos como a Mostra de Pesaro e outros, dizia: «Il y a un film, je l’ai rencontré»."

"Achava que tinha descoberto... Não gosto da expressão “descoberto”, porque parece que a coisa vem de nós, quando eles é que são importantes. Tinha encontrado um cineasta."

"Portanto, programar é um gesto de partilha, de partilha das opções próprias. E, para mim, é, de facto, a continuação do acto crítico por outros modos."

"Ao contrário do que houve há alguns anos, não existir um segundo canal da RTP que tenha responsabilidades de programação complementares às cinematografias dominantes é uma coisa que me parece grave."

"O ciclo «Diários filmados e autoretratos» do DocLisboa teve na imprensa níveis de interesse que de forma nenhuma teria se passasse isoladamente. Ou seja, nalguns aspectos era preferível que não passasse isoladamente. Tem a ver com questões de crítica. Quer dizer, sendo a crítica um acto por excelência de mediação, supõe colocar questões. E, evidentemente, ela hoje tende a desaparecer, tende a ser cada vez mais um acto de intermediação dentro de um processo de consumo. Isto anda tudo ligado."

"O cinema define-se, para além dos seus modos de produção, também pelo lugar do espectador."

"Por exemplo, tenho as maiores dúvidas (e isto é uma forma suave de pôr a questão) que o campo teórico genericamente considerado como o do pós-colonialismo seja hoje esteticamente operativo. Receio que, nalguns casos, se torne mesmo num paternalismo neo-colonial, por assim dizer. É exactamente o tipo de campo em que as obras surgem como demonstrações de um discurso pré-determinado."

"E especulativo não é a mesma coisa que demonstrativo. Nem que seja para se chegar à conclusão que as coisas nada tem a ver umas com as outras."

"O que gostaria era que houvessem condições para um trabalho de pensamento."

"Mas dentro deste trabalho todo, há também coisas que dão um gozo particular. E todas elas têm o seu risco particular. Mas não consigo pensar em programar sem pensar que é uma prática de riscos. (...). Acho que se põe uma ética da programação. A dimensão ética não está apenas presente nas obras em si mesmo, designadamente numa arte como o cinema, está presente num gesto de programação."