29 de novembro de 2023

18 de novembro de 2023

Reduzir o problema a uma questão moral inviabiliza o pensamento crítico.

O conflito dá movimento à história. Abdicar dele é abdicar de uma história possível, especialmente do que traria à nossa própria deriva.

14 de novembro de 2023

Tenho muita vontade de escrever sobre as coisas que odeio. Escrever sobre aquilo que se ama é fácil, o amor traz em si uma elevação mesmo que insistamos em falar dele da maneira mais perversa e violenta. Não sei porquê, talvez porque a poesia esteja naturalmente instalada nas afinidades e a volúpia, embora escondida, seja conhecida de todos. Aquilo que odeio, contudo, não só está à mostra como pertence à mais pura vulgaridade, é banal, e é muito difícil escrever sobre isso sem soar igualmente medíocre. É como se a abjeção me arrastasse para dentro dela cada vez que a nomeio. Mas se a afasto, volto a vê-la à superfície, fala-me constantemente. Amar é raro, mas odiar? O ódio é universal, está em toda a parte, é a nossa mais íntima ligação ao mundo. E que se desengane quem pensar que na infância não temos senão sentimentos puros, virtuosos e imaculados. O ódio existe na infância de modo mais feroz do que em qualquer outra idade porque não tem contraponto, assim que nasce é inteiramente arremessado ao seu destinatário, sem perguntas, sem críticas, sem culpa. Nascemos a amar os nossos pais sem razão e impercetivelmente passamos um dia a odiá-los. Há ódios que demoram anos a formar-se, a declarar-se, muitos de que dificilmente acabamos por tomar consciência. O ódio é o trabalho de uma vida. Claro que também nos odiamos a nós próprios, às vezes mais do que qualquer outra coisa odiamo-nos a nós próprios e é nesse ódio que se baseia o nosso comportamento, todas as nossas decisões, a forma como vemos o nosso tempo, os outros, o futuro. Que material mais rico pode haver?

13 de novembro de 2023

“Depressões pessimistas devem ser consideradas pausas criativas nas quais as forças se restabelecem. Se tivermos consciência desse facto, as depressões passarão mais depressa. Jamais devemos sentir-nos deprimidos numa depressão.”

Etty Hillesum, Cartas 1942-1943.

11 de novembro de 2023

Kiriko: Um amigo disse-me que tudo o que as garças dizem é mentira. Isto é verdade?
Garça: Não! Não é verdade! Nem tudo o que as garças dizem é mentira!
Mahito: Isso é mentira. 
Garça: Mas esta mentira é verdade!

O rapaz e a garça, Hayao Miyazaki, Studio Ghibli (2023).
«Vi o fogo memo armado a mim.»
«Nessa altura nem passei bombeiro nem passei um helicóptero nem passei nadinha. Nada.»
«Já na tenho medo do fogo. Medo de quê? Ele já na tem por onde arda. Já quemou tudo.»

Mulheres de Pedrógão Grande, reportagem RTP1, 2017.

7 de novembro de 2023

 

29 de outubro de 2023

Na altura em que as meninas começam a perceber que não há príncipes encantados, uma amiga havia iniciado um namoro que parecia ter estagnado no arranque. A minha amiga sonhava com juntar as escovas de dentes. Já ele não se percebia muito bem. Portanto, afinal não era simples. As conversas sucediam-se há meses. Não eram exatamente discussões, ou eram, mas eram discussões filosóficas. Sobre a relação, sobre o amor, sobre sexo, sobre vontades, sobre o presente e sobre o futuro, e por aí vai. Todos os dias a minha amiga me contava sobre a última conversa. Apesar de por vezes haver uma lágrima ou outra, eu achava que havia qualquer coisa de competitivo entre eles que os fazia preferir a argumentação à resolução. E perguntava-me, se tudo era um problema, o que havia de bom para levar para uma casa? Mas a minha amiga dizia-me que gostava dele, e eu queria ajudá-la a encontrar alívio para o desespero. Um dia, tinha ido dormir a casa dela, estávamos a fazer um balanço das últimas conversas. Quando digo «estávamos» refiro-me a estar a ouvir a minha amiga pensar. Jantámos, fumámos, fumámos outra vez, e mais tarde, quando fomos para a cama, ela chegava mais uma vez às conclusões de sempre, que eram uma espécie de beco sem saída. Nesse dia, quando puxámos as mantas, disse-lhe uma coisa. Disse-lhe que no próximo encontro ela esperasse pela conversa, que era sempre ele que puxava. Disse-lhe que o deixasse falar o tempo que ele quisesse sem nunca o interromper, por muito que isso lhe custasse. Disse-lhe que se mantivesse serena, sem qualquer expressão de rosto que ele pudesse considerar provocação e, sobretudo, sem reagir ao que ele tivesse para dizer. Disse-lhe que quando ele acabasse de falar lhe dissesse esta frase, voltasse as costas e viesse embora.
 
— O Dumbo voa com as orelhas.

24 de outubro de 2023

"On dirait d'abord : être comme tout le monde. C'est ce que raconte Kierkegaard dans son histoire de « chevalier de la foi », l'homme du devenir : on a beau l'observer, on ne remarque rien, un bourgeois, rien qu'un bourgeois. C'est ce que vivait Fitzgerald : à l'issue d'une vraie rupture, on arrive... vraiment à être comme tout le monde. Et ce n'est pas facile du tout, ne pas se faire remarquer. Etre inconnu, même de sa concierge et de ses voisins. Si c'est tellement difficile, « être » comme tout le monde, c'est qu'il y a une affaire de devenir. Ce n'est pas tout le monde qui devient comme tout le monde, qui fait de tout le monde un devenir. Il y faut beaucoup d'ascèse, de sobriété, d'involution créatrice : une élégance anglaise, un tissu anglais, se confondre avec les murs, éliminer le trop-perçu, le trop-à-percevoir. « Eliminer tout ce qui est déchet, mort et superfluité », plainte et grief, désir non satisfait, défense ou plaidoyer, tout ce qui enracine chacun (tout le monde) en lui-même, dans sa molarité. Car tout le monde est l'ensemble molaire, mais devenir tout le monde est une autre affaire, qui met en jeu le cosmos avec ses composantes moléculaires. Devenir tout le monde, c'est faire monde, faire un monde. A force d'éliminer, on n'est plus qu'une ligne abstraite, ou bien une pièce de puzzle en elle-même abstraite. Et c'est en conjugant, en continuant avec d'autres lignes, d'autres pièces qu'on fait un monde, qui pourrait recouvrir le premier, comme en transparence. L'élégance animale, le poisson-camoufleur, le clandestin : il est parcouru de lignes abstraites qui ne ressemblent à rien, et qui ne suivent même pas ses divisions organiques ; mais ainsi désorganisé, désarticulé, il fait monde avec les lignes d'un rocher, du sable, et des plantes, pour devenir imperceptible."

Deleuze e Guattari, Mille Plateaux.
A recusa de não poder recusar 


Rosamunda: A minha voz. A minha voz. A minha voz. A minha voz. Não diz nada. 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela III, Rosamunda.


Com o ainda magro espaço que a pulso têm vindo a conquistar, as mulheres estão a forçar a reavaliação e a expansão dos cânones literários através da legitimação de géneros antes considerados «não-literários», de que a literatura infantil, diários, cartas, a auto-ficção, entre outros, são exemplos. A consciência inegável de que a literatura se mostra, se faz nestes textos, é ao mesmo tempo um indício sobre a literatura ela própria: a sua incompletude imanente reclama-se de uma liberdade total e implica a alienação de todos os poderes opressores. A criação é anarquista. Violenta, apocalíptica e amoral, a escrita das mulheres parece tender para um entendimento — ou uma busca — da suspensão do juízo moral. Não obstante a exposição de aspetos próprios da realidade feminina ser reiteradamente considerada de mau gosto, a legitimidade da sua arte assenta naquilo que é autêntico no seu mundo e não naquilo que é convencional, lógico ou sequer lícito, bem como na indelével força de algo que está na raiz do seu trabalho: o reconhecimento da excecionalidade de ter uma voz. Aquilo que exemplos como Rachel Cusk, Elena Ferrante e Annie Ernaux, mas também Forough Farrokhzad ou Tove Ditlevsen parecem demonstrar é que em relação ou não, pobres ou ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. A escrita é a nossa recusa de não poder recusar. 

Sexta-feira, 27 de outubro, Universidade do Porto.

22 de outubro de 2023

10 giugno

Io sono una forza del Passato.
Solo nella tradizione è il mio amore.
Vengo dai ruderi, dalle chiese,
dalle pale d’altare, dai borghi
abbandonati sugli Appennini o le Prealpi,
dove sono vissuti i fratelli.

Giro per la Tuscolana come un pazzo,
per l’Appia come un cane senza padrone.
O guardo i crepuscoli, le mattine
su Roma, sulla Ciociaria, sul mondo,
come i primi atti della Dopostoria,
cui io assisto, per privilegio d’anagrafe,
dall’orlo estremo di qualche età
sepolta. Mostruoso è chi è nato
dalle viscere di una donna morta.

E io, feto adulto, mi aggiro
più moderno di ogni moderno
a cercare fratelli che non sono più.


Eu sou uma força do Passado.
Só na tradição reside o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
dos retábulos, das aldeias
abandonadas dos Apeninos ou dos Pré-Alpes,
onde viviam os irmãos.

Deambulo pela Tusculana como um louco,
pela Ápia como um cão vadio.
Ou contemplo os crepúsculos, as manhãs a crescer
sobre Roma, sobre a Ciociaria, sobre o mundo,
como os primeiros actos da Pós-História,
que, por privilégio de biografia, observo
a partir dos confins de uma qualquer época
sepulta. Monstruoso é quem nasce
das entranhas de uma mulher morta.

E eu, feto adulto, vagueio
mais moderno do que qualquer moderno,
em busca de irmãos que já não existem.

Pier Paolo Pasolini (1962).