Tenho muita vontade de escrever sobre as coisas que odeio. Escrever sobre aquilo que se ama é fácil, o amor traz em si uma elevação mesmo que insistamos em falar dele da maneira mais perversa e violenta. Não sei porquê, talvez porque a poesia esteja naturalmente instalada nas afinidades e a volúpia, embora escondida, seja conhecida de todos. Aquilo que odeio, contudo, não só está à mostra como pertence à mais pura vulgaridade, é banal, e é muito difícil escrever sobre isso sem soar igualmente medíocre. É como se a abjeção me arrastasse para dentro dela cada vez que a nomeio. Mas se a afasto, volto a vê-la à superfície, fala-me constantemente. Amar é raro, mas odiar? O ódio é universal, está em toda a parte, é a nossa mais íntima ligação ao mundo. E que se desengane quem pensar que na infância não temos senão sentimentos puros, virtuosos e imaculados. O ódio existe na infância de modo mais feroz do que em qualquer outra idade porque não tem contraponto, assim que nasce é inteiramente arremessado ao seu destinatário, sem perguntas, sem críticas, sem culpa. Nascemos a amar os nossos pais sem razão e impercetivelmente passamos um dia a odiá-los. Há ódios que demoram anos a formar-se, a declarar-se, muitos de que dificilmente acabamos por tomar consciência. O ódio é o trabalho de uma vida. Claro que também nos odiamos a nós próprios, às vezes mais do que qualquer outra coisa odiamo-nos a nós próprios e é nesse ódio que se baseia o nosso comportamento, todas as nossas decisões, a forma como vemos o nosso tempo, os outros, o futuro. Que material mais rico pode haver?