1 de julho de 2023

Atlas da Solidão


Doing the laundry.
Watching the pigeons.
Solitude is a science.

Anuradha Roy


Há um conto de Michel Tournier chamado Tristan Vox que fala de um homem — Félix Robinet — que trabalha na rádio apaixonando multidões com a sua bela voz, mas que não pode dar-se a conhecer fisicamente. Tristan Vox é o duplo de Félix Robinet que se forma através da imaginação dos ouvintes, uma imagem completamente alicerçada numa voz emitida através de circuitos de som, desde o microfone no estúdio ao aparelho de rádio em casa. Uma voz sem corpo, sem substância, sustentada pela distância e por um certo ensimesmamento. A existência de Félix Robinet fica, assim, consolidada numa personagem cuja sobrevivência só é possível à custa do distanciamento, de uma intersubjetividade completamente dilacerada e descarnada.

Em 2017, o cirurgião americano Vivek H. Murthy declarou haver uma «epidemia de solidão». Vivek Murthy era um jovem médico quando percebeu que a sua formação em medicina tinha ficado aquém das expetativas. Nada nessa formação o tinha preparado para um dos problemas de saúde mais frequentes que encontrava na sala de exames. Em 2018, o Reino Unido instaurou um Ministério da Solidão, sendo seguido pelo Japão com o Ministério para a promoção do envolvimento dinâmico de todos os cidadãos, em 2021. O Japão criou o seu Ministério porque, até outubro de 2020, morreram mais nipónicos por suicídio do que por Covid-19, registando-se uma subida de 750 suicídios face a 2019 (a primeira subida face ao ano anterior em 11 anos). Estas 750 pessoas eram jovens com menos de 18 anos e mulheres.

Como é que a vida moderna se tornou tão solitária? Até à contemporaneidade, muito poucos seres humanos viviam sozinhos. Aos poucos, não muito mais do que há um século atrás, isso mudou, e hoje, em todo o mundo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, uma percentagem que se acentua em particular nos países mais ricos. A solidão, parece desnecessário dizer, é tóxica e terrível para a saúde. Mas é importante manter as coisas em perspetiva. É inadequado comparar a vulgarização da vida sozinho com a “epidemia de solidão”, que é o que os artigos dos jornais escrevem frequentemente em manchetes alarmantes.

Os ingleses têm duas palavras para se referirem a dois tipos diferentes de solidão: loneliness — o estado negativo de estar sozinho, caracterizado pela sensação de falta — e solitude — a solidão que se escolhe, se deseja e traz felicidade, que amplia a consciência de si, a disponibilidade para a escuta, a criatividade, o sentido crítico e que reduz o stress. Em português podemos traduzir a primeira por solidão e manter a segunda, que o dicionário indica como linguagem poética. A primeira pode ser insuportável e é um sentimento comum e pode matar. A segunda é um sentimento benéfico, é mais raro e transforma a vida. A sociedade conta uma história em como fazer as coisas sozinho — comer sozinho, viajar sozinho, ser solteiro — está diretamente associado à tristeza, estranheza e injustiça. Mas há uma grande diferença entre a solidão e a solitude (do latim solitudĭne-). 

A depressão e o suicídio foram os fatores determinantes para que países como a Inglaterra e o Japão tenham criado os seus Ministérios da Solidão e para que a Austrália, a Alemanha e o Canadá se preparem para lhes seguir os passos. Mas há mais diferenças a estabelecer quando falamos de solidão: o isolamento social é entendido como o estado em que o contacto com os outros é mínimo ou inexistente. Distingue-se da solidão, que é um estado subjetivo com sentimentos negativos sobre ter um nível de contacto social inferior ao desejado. Embora algumas definições caracterizem a solidão como uma forma de isolamento social, outras afirmam que a solidão é uma reação emocional ao isolamento social. Os dois conceitos não são necessariamente coexistentes: uma pessoa pode sentir-se socialmente isolada e não se sentir solitária. Da mesma maneira, pode estar socialmente vinculada, mas sentir-se só. 

É um fenómeno vasto e complexo. Apesar de estar presente em todos os setores da sociedade, tendo por isso deixado de ser um problema de velhos, a verdade é que ninguém fala de solidão. A nível político o tema está completamente silenciado. E, no entanto, a solidão é uma questão política. Ser solitário não é apenas estar isolado. É não poder mostrar o seu autêntico eu. É sobre a dificuldade de encontrar pessoas com quem possamos estabelecer uma verdadeira união, com quem possamos partilhar a nossa angústia. Não é não ter pessoas à volta, por perto ou à distância de uma rede social, é antes não poder comunicar-lhes aquilo que é importante para nós. E não é apenas um sentimento de negligência pelos mais próximos, é também um sentimento de falta de apoio e atenção dos nossos concidadãos, do Governo e dos nossos empregadores. A solidão é um estado pessoal, social, económico e político. 

Quando o neoliberalismo surgiu nos anos 80, impôs implacavelmente a valorização da autonomia individual e interesse próprio acima do interesse da comunidade e do bem comum. O neoliberalismo é uma forma selvagem de capitalismo com ênfase na liberdade: liberdade de escolha, mercados livres, liberdade de interferência do Estado e dos sindicatos. O seu desenvolvimento foi crucial na atual crise de solidão: aumentou o fosso dos rendimentos. Criou um mundo dividido entre vencedores e fracassados, Estados escravizados pelos mercados e uma sociedade onde temos de nos defender. Uma sociedade onde cada um tem de cuidar de si mesmo pois mais ninguém o fará é uma sociedade de solitários. O capitalismo neoliberal veio remodelar não só relações económicas, mas também relações pessoais. Em 1981, Margaret Tatcher dizia ao Sunday Times: “A economia é o método; o objetivo é mudar a alma e o coração.” 

A solidão e o populismo de direita também andam de mãos dadas. Foi Hannah Arendt que escreveu pela primeira vez, no livro As origens do totalitarismo, sobre o elo entre a solidão e a política da intolerância (sobre como pessoas isoladas reagem com agressividade). A solidão não é de todo o único fator impulsionador do populismo, mas é um dos mais importantes. Há atualmente diversos estudos disponíveis sobre o papel da solidão no reforço de partidos como o Front-National, de Le Pen, e o PVV neerlandês, por exemplo. A participação em ações cívicas ou comunitárias reduz-se substancialmente, há falta de amigos, etc. Num estudo feito junto dos eleitores de Trump, a maioria das pessoas respondia ‘conto apenas comigo mesmo’. A solidão é também o sentimento de ser tratado injustamente, de se ver abandonado pelas instituições e incapacitado pelo Estado. A ausência de apoio das instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais, conduzem à obstrução da cidadania. Tal como o vazio de reconhecimento pelos nossos concidadãos. As pessoas que sofrem descriminações raciais, étnicas ou xenófobas sentem-se ainda mais solitárias. Bem como aquelas que são visadas por comportamentos sexistas e que são, como sabemos, na maioria mulheres.

E depois há as tecnologias. À medida que o nosso mundo se tem tornado cada vez mais pequeno com o aumento da conectividade através da Internet e das redes sociais, tem também vindo a tornar-se mais solitário. Porquê? Os écrãs estão a devorar a nossa capacidade de estar atento. Os smartphones tornaram-nos zangados e tribais, roubam a nossa atenção em detrito da capacidade de comunicar eficazmente e com empatia. Algoritmos avaliam capacidades cognitivas, características psicológicas, inteligência emocional e aptidões sociais e são manipulados para criar viés de rejeição ou inclusão (para dar um exemplo, a Amazon contratou uma empresa de IA que aprendeu a rejeitar CV’s de mulheres na contratação). Além disso, não percebemos como os algoritmos funcionam, a sua opacidade exacerba o nosso sentimento de impotência. E a solidão medra no vácuo criado pela impotência. Somos observados e, contudo, somos totalmente invisíveis. Ninguém está a escutar, sentimo-nos vulneráveis e sem controlo.

Desde 2020, as restrições para conter o vírus SARS-CoV 2 vieram agravar a situação, com elevado custo e consequências potencialmente graves para a saúde mental e física, um risco amplificado naqueles que têm doenças mentais pré-existentes. Mas perante o hodierno flagelo da felicidade, a solidão é um estigma: muitas pessoas negam que se sentem sozinhas. Vivemos no tempo mais conectado da história da humanidade e sentimo-nos isolados, esquecendo também que a solidão e a monotonia têm também um lado positivo: são essenciais para a abertura ao pensamento crítico e para a fruição da criatividade.

Como podemos passar da solidão à solitude? Um dos segredos é a conexão com a natureza. Passar tempo na natureza, sozinho, com amigos ou com a família, irá acabar com qualquer solidão e transformá-la em solitude. Além disso, passar tempo na natureza leva a uma melhor saúde geral, reduzindo os riscos de contrair inúmeras doenças. Esta é uma das razões porque é tão importante trazer a natureza para a cidade e porque cidades com falta de árvores e jardins como Lisboa, ao contrário do que algumas mensagens concentradas apenas na inovação tecnológica tentam passar, não são um exemplo para o futuro. 

Outra estratégia é usufruir de silêncio. A aceitação de si próprio vem e é potenciada de muitas maneiras através do silêncio. O silêncio pode ser incómodo, mas quando se está totalmente conectado e confortável consigo mesmo, não há nada de estranho no silêncio. Podemos começar por abandonar os auscultadores alguns minutos por dia. Por outro lado, a solidão não é apenas causada pelas circunstâncias da nossa vida privada e familiar, mas também pela forma como atualmente trabalhamos: os escritórios abertos são um exemplo de como a arquitetura se tem vindo a tornar hostil, um dos muitos fatores que tornaram o local de trabalho um espaço especialmente alienador e muitos outros aspetos destinados ao aumento da produtividade estão, afinal, a produzir o efeito contrário por nos fazerem sentir isolados.

Para que serve a solidão? Porque se torna ameaçadora? Como podemos usufruir da nossa solidão num mundo que se tornou mais veloz do que nunca? Atlas da Solidão foi um programa interdisciplinar construído para abordar o tema dos pontos de vista teórico, simbólico e prático. O programa — que incluiu conversas, um concerto, uma oficina para adolescentes, um curso online, performances, dança e uma exposição — decorreu na Appleton, em Lisboa, de 30 de março a 29 de abril de 2023.

Programa
31 março – 29 abril: Quero um dia em que não se espere nada de mim
Exposição coletiva com obras de Bert Timmermans, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues e Pedro Lagoa

4 e 5 abril: Terra Nullius, de Paula Diogo
Caminhada-espetáculo (versão Do It Yourself criada para o Atlas da Solidão)

10 a 13 abril: Melancolia, arte e literatura, por Vrndavana Vilasini
Curso online

14 abril: Margarida Garcia e Manuel Mota
Concerto

15 abril: O mapa, por Joana Cavadas
Laboratório de expressão experimental com desenvolvimento de um objeto artístico que resultou numa publicação (14 aos 17 anos)

20 e 21 abril: Comoção, de David Marques
Dança (estreia absoluta)

28 abril: Approach and Enter, de Vânia Rovisco
Performance-instalação no âmbito da exposição

29 abril: Uma comunidade de solidões*
Conferências de encerramento com Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)


Ficha técnica
Artistas: Bert Timmermans, David Marques, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Cavadas, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues, Manuel Mota, Margarida Garcia, Paula Diogo, Pedro Lagoa, Vânia Rovisco, Vrndavana Vilasini
Conferencistas: Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia) e Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Conceção, direção artística e comunicação: Marta Rema
Produção: Ricardo Batista
Design gráfico: João M. Machado
Assessoria de imprensa: Rita Bonifácio/Paris Texas
Apoio à comunicação: Ricardo Rodrigues
Fotografia: Alípio Padilha
Vídeo: Francisca Manuel
Parceria: Appleton
Apoio à comunicação: Antena 2, Buala, Baldio, CMLisboa, Coffeepaste, Umbigo
Organização: efabula
Financiamento: República Portuguesa — Cultura / Direção-Geral das Artes


*Título inspirado no livro Sobre a ideia de uma comunidade de solitários, de Pascal Quignard, publicado no Sr. Teste.


Duane Michals, The Human Condition, 6 impressões em folha de gelatina de prata com texto manuscrito, cada fotografia 12,8 x 17,8 cm.

26 de maio de 2023

“Oh overrunning river driven by the force of love. Flow to us flow to us!”

Forough Farrokhzad

22 de maio de 2023

O filme começa e penso:
 
quando morrer, vou ter tantas saudades de estar viva.

20 de maio de 2023

Ontem, numa festa, alguém falou de alguém e a seguir disse a palavra Kyiv. Os meus amigos eram músicos, uma delas contava a história de um músico com quem tocou recentemente na Alemanha que, de forma totalmente arbitrária e por uma questão de sorte, havia conseguido não ser deportado para a Ucrânia e tinha entrado no corredor dos pedidos de proteção nacional para residência e asilo. A sorte de ser um refugiado neste momento ao invés de integrar à força o exército ucraniano e a enorme estranheza de ouvir essa palavra hoje, fazendo eco de épocas terríveis que mantêm sobre nós a sinistra ameaça de voltarem a acontecer. «Mas é difícil», a minha amiga baixou a voz como se a angústia a asfixiasse. «Como é que voltas?» E, de maneira estranha, todos percebíamos como o regresso daquela pessoa ao seu país seria, senão impossível, sem dúvida complicado. Que sustentava a família inteira através da música a partir da Alemanha, continuou, mas que não podia vê-los. Que ele também percebia como alguém que está a ser atacado há tantos anos pode querer defender o seu país. Que os russos na Alemanha iam aos concertos dele e lhe declaravam a sua solidariedade. «Esses também vivem escondidos», repliquei, e a minha amiga corroborou vividamente a ideia sublinhando a sua existência. «Ele falou disso tudo», e o murmúrio da guerra na sua voz chegava aos meus ouvidos numa festa com música tecno em Lisboa onde as guerras que nos dividem são contra as hordas de turistas e a falta de habitação, onde, longe do terror da preservação da vida, assistimos ao naufrágio da cidade que todos procuram e a outros exílios. «Este sítio vai desaparecer», ouvi dizer várias vezes durante a noite a pessoas diferentes sobre o local onde nos encontrávamos, uma coletividade com um salão de festas, um palco, um bar, onde havíamos entrado atalhando caminho através de um restaurante de comida indiana com três funcionários, mas apenas uma mesa e música alta que, descubro também, está aberto há menos de um mês. No caminho até casa, pouco tempo depois, misturava-me com as filas de franceses que regressavam aos hotéis com os rostos acabados, com asiáticos da Índia com medo de olhar para mim e asiáticos da China indiferentes à minha passagem, grupos de nórdicos, ingleses e americanos bêbedos abraçados a gritar e a cantar, intermináveis filas de carros a apitar uns aos outros parados na Baixa e no Bairro Alto embora fosse pouco antes da uma da manhã, mulheres cuja puberdade me inquietou de salto alto e vestidos curtos brilhantes a saltar por cima dos buracos das obras, polícias a pares ou em batalhões. No elétrico mais luzes, mais turistas, turistas que tiram fotografias de dentro, turistas que tiram fotografias de fora. Ninguém a manifestar a sua solidariedade.

13 de maio de 2023

Só se consegue perceber como é que uma pessoa consegue passar uma vida num palco a cantar a mesma canção ao longo de 20, 30, 40 anos e ainda se divertir ou emocionar — ter tesão, como com acerto dizem os brasileiros —, quando nós próprios cantamos. Uma voz é uma relação com o infinito através do que em nós é transitório, um corpo, subitamente transformado num animal que seduz o cosmos.

7 de maio de 2023

“Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.”

Marguerite Yourcenar

4 de maio de 2023

Eu tenho 47 anos e nunca ganhei €1.000,00 nem nunca recebi um subsídio de férias inteiro, respondi. A audiência devolveu um silêncio pesado e embaraçado ao meu rosto impassível. Era a resposta à lamentação de um dos amigos com quem conversava sobre um aumento no salário de pouco mais de €230,00 nos últimos 5 anos. Mas tens casa própria, não é? e Mas tens uma casa tua, não é?, perguntaram ao mesmo tempo. A minha amiga, que acaba de comprar uma casa e se prepara para concluir um doutoramento, foi a primeira a arrancar com a frase de forma peremptória, atirando os ombros para trás e as mãos para os lados do corpo, como se estivesse a dizer também «Para tudo», embora, provavelmente sem que ela soubesse, o terror nos olhos se sobrepusesse ao leve sorriso que acompanhava o gesto engraçado. O meu rosto impassível voltou a responder e as cores abandonaram os deles. Felizmente as soluções começaram logo a aparecer. Mas tu podes fazer um doutoramento e ter uma bolsa. São quatro anos. Não queres?, era novamente a minha amiga a falar. Pois!, disse o meu amigo, que parecia achar a ideia inequivocamente adequada. Vocês trabalham 8 horas?, perguntei. 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de sono, essa grande conquista de 100 anos!, respondeu o meu amigo, que é evangelista do PCP. Sim, respondi. Mas vocês trabalham 8 horas? A minha amiga levantou o pé e pousou-o no banco ao nosso lado, apoiando os braços sobre a perna. Olhou para o lado, para fora da conversa, e respondeu que tinha estado a trabalhar no fim-de-semana. O meu amigo anuiu rapidamente que, de facto, trabalha muito mais do que 8 horas, muito, muito mais. Um pouco a medo, pois não saberia o que dizer se me respondessem que era a única pessoa no mundo nessa situação, prossegui: Eu sento-me à secretária às 9H00 e termino pelas 20H00 com uma pausa de 20 minutos para almoçar. A seguir vais estudar ou escrever? Os meus amigos olharam de soslaio um para o outro, discretamente para o chão, e decidiram atenuar o seu desalento. Então és pobre!, disse o meu amigo e, seguido pela minha amiga, abraçou-me com pancadinhas afáveis nas costas rindo alto e elogiando a minha gargalhada única e a beleza física que mantinha aos 47 anos. Como seria possível de outra maneira? Devolvi-lhes um sorriso nipónico e acompanhei-os ao mudarem de assunto. Ao voltar para casa, revia na minha memória esta conversa e estes gestos quando me lembrei de outra amiga que, um dia, encontrando-me a trabalhar atrás do balcão de uma loja após ter passado por um momento de exposição pública por ter estado, havia pouco tempo, ligada a um importante projeto artístico, me disse, igualmente estarrecida, ao transferir dinheiro da carteira dela para a minha mão para pagar o que lá tinha ido comprar, que depois de ter feito certos trabalhos, já não podia fazer trabalhos destes. Não percebi logo o que ela queria dizer, fiquei perplexa e senti-me ofendida, perguntei porquê. É desprestigiante, respondeu. A custo disfarcei uma gargalhada monumental no momento, mas não parei de pensar naquilo nos dias a seguir, creio que cheguei mesmo a escrever sobre isso na altura num caderno qualquer. O que é preciso para que alguém possa dizer-nos uma coisa destas, um sentimento de profunda amizade ou o opróbrio ignaro e pateta do privilégio? E porque me tinha sentido ofendida, com quê? Porque, perante o que confere prestígio, o esforço gigantesco que cada uma das coisas que faço exige é invisível e, por isso, insignificante. O insignificante e o essencial estavam ao contrário, como diz o poeta, o primeiro sempre a ameaçar o segundo. Construí por esses dias intermináveis e dilacerantes discursos sobre a vida das pessoas como eu, que tinham contas para pagar, famílias sem recursos, histórias de abuso e violência, doenças incapacitantes pelo meio e solidão, ao contrário da minha amiga ao lado de quem caminhava nas manifestações e que, aos 20 e poucos anos, vendia a primeira casa, oferecida pelos pais, para ir viajar. Enquanto esta história antiga se misturava com a conversa de hoje e com pensamentos sobre a relação entre o prazer e a partilha genuína de intimidade, lembrei-me do amigo que talvez me entendesse e da sua frase categórica cuja limpidez me aturdiu: Preferia não me comover comigo próprio. O que importa é depararmo-nos com a beleza e saber vê-la, não é?


 
Forough Farrokhzad, A Casa é Negra (1963).

2 de maio de 2023

“Nous vivons dans un monde plutôt désagréable, où non seulement les gens, mais les pouvoirs établis ont intérêt à nous communiquer des affects tristes. La tristesse, les affects tristes sont tous ceux qui diminuent notre puissance d’agir. Les pouvoirs établis ont besoin de nos tristesses pour faire de nous des esclaves. Le tyran, le prêtre, les preneurs d’âmes, ont besoin de nous persuader que la vie est dure et lourde. Les pouvoirs ont moins besoin de nous réprimer que de nous angoisser, ou, comme dit Virilio, d’administrer et d’organiser nos petites terreurs intimes. La longue plainte universelle qu’est la vie… On a beau dire « dansons », on est pas bien gai. On a beau dire « quel malheur la mort », il aurait fallu vivre pour avoir quelque chose à perdre. Les malades, de l’âme autant que du corps, ne nous lâcheront pas, vampires, tant qu’ils ne nous auront pas communiqué leur névrose et leur angoisse, leur castration bien-aimée, le ressentiment contre la vie, l’immonde contagion. Tout est affaire de sang. Ce n’est pas facile d’être un homme libre : fuir la peste, organiser les rencontres, augmenter la puissance d’agir, s’affecter de joie, multiplier les affects qui expriment un maximum d’affirmation. Faire du corps une puissance qui ne se réduit pas à l’organisme, faire de la pensée une puissance qui ne se réduit pas à la conscience.”

Gilles Deleuze, Dialogues, com Claire Parnet.

8 de abril de 2023

12 de março de 2023

O primeiro rosto, mostras ao mundo.
O segundo rosto, mostras aos amigos íntimos e à família.
O terceiro rosto, nunca mostras a ninguém.
 
Provérbio japonês
Em Fraggle Rock as pessoas que tinham um problema iam consultar um sábio monte de lixo. Para lá chegar, tinham de atravessar um assustador túnel escuro e ultrapassar um gigante mau. Depois o lixo levantava-se como uma montanha. Era aterrador e ao mesmo tempo extraordinário. O monte de lixo começava a mexer-se lentamente, primeiro como lava a borbulhar e finalmente erguia-se, imponente. Era tão insólito que eu não conseguia tirar os olhos do ecrã e estava sempre ansiosa para voltar a ver. “Outra vez!” O monte de lixo resolvia sempre os problemas e era muito sábio. "The trashy is all!", não sei como é que traduziam isto, mas era isso que eu percebia: tudo era lixo. O lixo era uma forma suprema de vida porque recebia toda a vida, era a vida a transformar-se, em decomposição, a devir. Já era adulta quando percebi que o monte de lixo era uma senhora, quando eu via o Fraggle Rock não era nem um senhor nem uma senhora, era lixo. Mas mal ouvia as perguntas das personagens porque tinha uma ânsia visceral de lhe fazer eu própria as minhas perguntas. Um comboio de perguntas a entrar uma após a outra na minha cabeça, mal uma se formulava, já outras duas estavam a meio de se definir. Entre elas, enquanto via o monte de lixo demonstrar a sua sapiência, interrogava-me se teria coragem de atravessar aquele túnel tão comprido e tão escuro. Interrogava-me se, uma vez lá, o monte de lixo a levantar-se, de que eu tinha muito medo, não seria intimidante ao ponto de me emudecer. Não conseguir perguntar nada. De que tinha eu medo se também tinha tanta vontade de falar com ele? Tinha medo de uma coisa que passa de invisível a visível diante dos meus olhos. Tinha medo de estar a olhar para uma coisa e não ver o que lá estava. Tinha medo de estar a olhar e não ver as coisas maravilhosas que estavam à frente do meu nariz.  


3 de março de 2023

todos sabem 
que o fogo
recebe tudo
e
não devolve nada

Inês Francisco Jacob, Sair de cena

22 de fevereiro de 2023

Uma mulher escreveu-me o seguinte depois de ler o texto Uma mão de homem:
 
"Eu tenho mãos de agricultora e já com artroses e, às vezes, quando estou nas caixas do supermercado, olho deliciada para as unhas das moças que atendem e imagino que, se o mundo acabar à unhaca, eu também aí vou estar, do lado dos perdedores."