5 de dezembro de 2016

No arquivo climatizado do acervo da biblioteca da Brigham Young University, na cidade de Povo, no Utah, Estados Unidos da América, existe um retrato do pintor japonês Mori Yusen onde, embora uma carta anexa endereçada ao seu pai adotivo Mori Shuho garanta que é dele, o seu rosto não é claramente reconhecível. Nascido em 1780 em Osaka, veio a falecer em 1851 desconhecido do mundo. Quando aos 10 anos é adotado, traz consigo não se sabe que memórias. Supõe-se que terá sido pintor, embora na verdade não passe disso mesmo, uma suposição. Se o supomos, isso deve-se ao grau de excelência e aperfeiçoamento da técnica do livro publicado postumamente — sessenta e oito anos depois da sua morte — por uma editora em Tokyo e graças a Yamda Geishu Do, intitulado Ha Bun Shu, um conjunto de desenhos do mar, das suas ondas, espuma, vastidão e força. Ha significa onda, Bun frase e Shu reunir, pelo que poderíamos traduzir esse título por algo como Reunir a mensagem das ondas. «Ocean inside a circle surrounded by wave foam» é o título de um desses desenhos, onde um largo oceano é focado dentro de um círculo em torno do qual a espuma se acumula. Mas este é um dos desenhos que aproveitam todo o espaço do papel. Outros desenhos apresentam poucas linhas, desenhadas cirurgicamente, pormenores de uma onda ou de um pequeno pedaço de espuma, muitos outros círculos onde o mar parece caber deixando o vazio em redor e até, num deles, uma divisão em quadradinhos. O seu trabalho parece tender para um crescente depuramento conceptual, de modo que, em alguns desenhos, as linhas começam a resultar em formas geométricas que não se confundem com as imagens e, sobretudo, não simbolizam nada, até que a certo momento o desenho ultrapassa o papel estendendo-se por três páginas, com lençóis de água que se desdobram como se desdobram os rolos de papel de seda japoneses, habitualmente usados para a pintura ou para a caligrafia. Em todos os desenhos o mar surge revolto, como se o pintor nunca tivesse visto a água lisa tal uma folha virgem. Não existe harmonia nas coisas imperturbadas, é o que Mori Yusen parece querer dizer-nos. Quantas sombras nos foram reveladas com maior simplicidade?

3 de dezembro de 2016

Quando era miúda, à vinda da escola, passava por uma casa com uma placa na entrada a dizer «Associação Columbófila» que, até ao dia em que fui convidada a lá entrar, pensei ser uma associação de historiadores aficionados relacionada com Cristóvão Colombo. Não havia quase nada lá dentro para além de uma mesa de matraquilhos e uma arca cheia de minis, por isso a visita não teve nada de memorável, a não ser que foi nesse dia que fiquei a saber que os pombos também são animais de estimação, que são treinados para ir e regressar de longas distâncias, tendo sido até utilizados na Segunda Guerra Mundial para levar mensagens codificadas, e que — facto perturbante —, uma vez treinados, indiferentes ao paradeiro do dono, nunca mais abandonam o local onde vivem. Se o dono deixa a casa os pombos lá continuam, a sobrevoar o local, aos círculos. Nunca me esqueci deste dado tão extraordinário como inútil e, sempre que viajo, quando encontro pombos a desenhar por vezes pequenos, por vezes enormes círculos no céu, procuro imediatamente a casa a que deverão pertencer, por receio que ali estejam para sempre, no ar e aos círculos, sem poder pousar. A casa onde moro hoje teve nas traseiras e durante muitos anos, as ruínas de uma outra casa, que deverá ter sido bonita por sinal, com uma retrete antiga na varanda cheia de azulejos e um pequeno jardim no piso de baixo. Junto a essa casa havia uma gaiola gigante que era uma casa de pombos. E lá andavam eles, ano após ano, sobrevoando a casa aos círculos e regressando ao final da tarde. Ora, no ano passado, para meu grande terror, fizeram obras nesta casa e deitaram a gaiola abaixo. A casa ficou bonita, moderna e branca, o jardim arrancaram-no, erva a erva. Sempre que ía à janela, procurava pelos pombos. Até que os descobri: encontraram uma ranhura entre a nova varanda e o anexo (construído no lugar da gaiola), onde se podiam abrigar do vento e da chuva. Rapidamente, o minúsculo espaço por baixo da varanda se encheu de pombos cansados de voar. Não passaram muitos dias até que o dono da nova casa descobrisse o ardil e tapasse a reentrância com plásticos e tábuas. Agora os pombos dormem dispersos e onde podem pousar, na ombreira de uma janela que não se abre, atrás de um vaso. E continuam a regressar. 
Quando me levantei, Gwendolyn já estava no seu caixão, assente nas quatro cadeiras de mogno da sala da frente. Trajava o seu vestido de noiva, guardado todos aqueles anos num baú no andar de cima, e umas luvas brancas com muitos botõezinhos de madrepérola que eu nunca tinha visto e cuja visão me trouxe lágrimas, as primeiras de sempre no presbitério. Elias estava sentado ao lado do caixão, a velar a defunta, enquanto lá fora, sozinho no celeiro vazio que rangia com o gelo, um jovem pregador auxiliar que tinha vindo de Corwen num pónei, ensaiava o sermão a fazer no dia do funeral. Elias nunca se recompôs da morte da sua mulher. Luto não é a palavra adequada ao estado em que caiu depois do seu desaparecimento, disse Austerlitz. Embora na altura, com treze anos, não o tivesse compreendido, percebo hoje que a infelicidade que cresceu dentro dele destruiu a sua fé no momento em que mais precisava dela. Quando voltei a casa, no verão seguinte, havia semanas que não era capaz de exercer o seu ministério. Ainda subiu ao púlpito mais uma vez. Abriu a Bíblia e, com voz entrecortada, como se lesse somente para si, debitou o versículo das Lamentações: He has made me dwell in darkness as those who have been long dead. Não fez o sermão. Ficou ali de pé algum tempo, a olhar por cima das cabeças da congregação paralisada de espanto com uns olhos que me pareceram os de um cego, parados. A seguir desceu lentamente do púlpito e saiu da igreja.

W. G. Sebald, Austerlitz.

30 de novembro de 2016

que bom é ter notícias do que escrevo através daqueles dois ou três amigos que me lêem. que sentem falta, que ainda bem que voltei, quando fico temporadas mais longas sem escrever. por vezes custa-me acreditar nessas vozes tão generosas e afáveis, mas no final acredito neles. tal como a traição, que se ultrapassa no amor mas não na amizade, há um certo tipo de conforto que só os amigos trazem. ponho-me a pensar, para quem escrevo? trabalho muito pouco tempo; posso apenas dizer que se trata de uma prática constante ao longo da minha vida. primeiro apenas em diários, um ou outro artigo num jornal de província, trabalhos de faculdade, cartas, houve muitas e era das coisas que mais gostava de escrever — e de receber —, depois os blogues, as redes sociais, uma peça de teatro. em todos os registos, no entanto, mantenho quase sempre um tom pessoal, íntimo, de confidência. mesmo na ficção, há sempre uma parte inventada, ou seja, de certo modo exterior, e outra que vem da minha vida, nem que seja da minha vida mental. «escrevo só para mim», dizia no outro dia a um dos amigos que costuma ler este blogue. «é por isso que só escreves sobre ti», respondeu ele com a propriedade que lhe é característica. mas o que eu disse não era verdade. na realidade, escrevo para eles, para os dois ou três amigos que me perguntam, um pouco a medo, porque não tenho escrito. a pergunta assoma do fundo das suas vidas e tem tanto de dito como de não dito. se gostaram ou não, de repente parece tão pouco. dá-me que pensar no escreveram eles, enquanto liam.

29 de novembro de 2016

há qualquer coisa de miraculoso no amor e, no entanto, acontece a todos. as histórias do amor são todas únicas — por isso todos querem contar a sua — e ao mesmo tempo são todas a mesma história.

28 de novembro de 2016

insuficiência renal. no início pensei que fosse por me masturbar tanto. nem sabia de onde vinha a dor. hospital, médicos, perfurações, a paz. acordei de noite, sem saber localizar-me, com um gemido contínuo ao fundo da sala. talvez tivesse chegado a minha hora. não deixava nada, a minha passagem pela terra era como um fantasma cuja existência nunca se consegue provar. tanto melhor. não havia razão para ter nascido porque haveriam razões para não morrer? o cabelo caiu-me, a pele caiu-me, a vontade caiu-me e agora, na sua obscuridade, os órgãos caíam também e não havia nada que médicos, hospitais e perfurações pudessem fazer quanto a isso. a um órgão seguir-se-ia outro órgão e depois outro, até nada restar senão uma carcaça podre, também ela destinada a secar e a desfazer-se. a vida, como a morte, acontece e esse acontecimento está livre da nossa intervenção. por isso recordo hoje com mais veemência — e regularidade — o dia solarengo em que saí da escola descendo a ladeira, do que o nascimento da minha primeira filha, ou da segunda de resto. achava eu nesse dia que tudo estava a começar e que a vida seria uma sucessão de maravilhosas conquistas. não havia qualquer razão. não foi senão muito depois disso que a S. me deu a mão a caminho da aula e que o professor de matemática me distinguiu com um prémio por ter tido a nota máxima no teste. esse dia não teve nada digno de memória e, no entanto, eu recordo. o sol, a ladeira, a solidão. terá sido esse o dia mais bem vivido?

24 de novembro de 2016

foi a muito custo que me tornei melhor ouvinte e melhor observadora do que participante. o silêncio é de ouro, bem se diz, e agora, na grande maioria das vezes, é ele que me defende de me tornar uma aberração aos olhos daqueles que verdadeiramente o são.

23 de novembro de 2016

nunca fui ao cemitério visitar a campa de alguém, nem no dia de finados nem noutro qualquer. visitar ossadas tornadas anónimas é um ato esvaziado de significado para mim e assim os meus mortos sobrevivem na memória que guardo deles, em pequenos gestos e expressões que por vezes irrompem ao longo de um dia, como vultos. em contrapartida, a romaria de quem visita os cemitérios fascina-me. as suas campas, jazigos e ciprestes, possuem para mim, que desconheço a razão de se cunhar a morte com uma vida além dela, e por pretenderem insistir na individuação, um mistério inabalável. na verdade, na minha perspetiva, uma vala comum faria mais sentido. sem dúvida por isso, as capelas mortuárias que se enchem de pessoas nos velórios ansiosas por saberem da vida uns dos outros, as flores frescas deixadas nas campas, as orações e as conversas à beira delas recordando o morto, os epitáfios pouco ou mais elogiosos, impressionam-me tanto quanto a mais rara das obras-primas.

22 de novembro de 2016

I usually solve problems by letting them devour me.

Franz Kafka

11 de novembro de 2016

9 de novembro de 2016

Dar um passo não é sinal de ter chegado à meta, é sinal de querer percorrer a estrada.

6 de novembro de 2016

visto anos depois, incompreensível e assustador, o desenho parecia-lhe o resultado de um espírito demente. lembrava-se de o ter feito, depois de uma sesta num fim de tarde de primavera, mas nada mais. quis acreditar que não fora ele realmente a fazer aquilo e não podia. com repulsa, quis deitá-lo fora imediatamente e no entanto hesitava. aliás, não conseguia deixar de o observar. qualquer coisa, porventura o que nele havia de obsessivo e enigmático, deflagrava aos seus olhos como algo obscuramente belo. procurou recordar-se. tinha-o encontrado por acaso entre papéis desarrumados e sabia que era o desenho do que tinha visto num sonho. sabia que o tinha feito, a carvão, mal tinha acordado. mas não se lembrava do sonho e rever os seus elementos transpostos para o papel não o ajudava a lembrar-se. e teria isso ajudado a convencê-lo de que não era louco? a evidência, parecia-lhe, estava diante dos seus olhos, e não podia negá-lo. não sabia, de facto. com fita-cola, afixou o desenho na parede. seria o único assim? a ideia alarmou-o. mais alguém poderia ter visto um desenho daquela época e até tê-lo guardado. podia estar intacto, algures. porém, como a sua inquietação era inconfessável, nunca iria descobrir. nos dias seguintes, o desenho e as suas formas não lhe saíram da cabeça. uma enorme sombra projetava-se de um monólito no centro, sobre o qual estava um espelho com um corredor e uma porta. diversos animais rodeavam a peça central, como que em movimento, e uma mão saía de um deles. apesar de desenhada toscamente, não sabia porquê, essa mão parecia-lhe real, como se pudesse tocá-lo, e era nela que mais refletia. que espécie de loucura teria produzido aquela mão para que fulgurasse no canto de uma folha de papel, olhando-o? que espécie de loucura, enfim, a via olhá-lo? havia muito que a suspeita de que encontrava doente tinha surgido e agora não podia mais recalcar essa dúvida. permanecia secreta, contudo, a doença que o corroía e que, por vezes a muito custo, conseguia ainda esconder. eram sobretudo os pequenos detalhes que mais lhe causavam esforço. havia de chegar o dia em que deixaria de conseguir esconder-se e a doença tomaria por fim lugar. nos últimos anos tinha adquirido asco pelos espelhos e pensava agora se isso se devia a esse sonho antigo. a imagem que lhe devolviam era demasiado nítida para que pudesse suportá-la. fosse como fosse, dizia-se vários dias depois, mais do que a demência, era a beleza que se manifestava. seria louco talvez, mas entre as ranhuras do mundo ela surgia, pequena, sem valia nem propósito. e ele via.
Assassine os seus entes queridos.

Stephen King, Escrever.