22 de novembro de 2016

I usually solve problems by letting them devour me.

Franz Kafka

11 de novembro de 2016

9 de novembro de 2016

Dar um passo não é sinal de ter chegado à meta, é sinal de querer percorrer a estrada.

6 de novembro de 2016

visto anos depois, incompreensível e assustador, o desenho parecia-lhe o resultado de um espírito demente. lembrava-se de o ter feito, depois de uma sesta num fim de tarde de primavera, mas nada mais. quis acreditar que não fora ele realmente a fazer aquilo e não podia. com repulsa, quis deitá-lo fora imediatamente e no entanto hesitava. aliás, não conseguia deixar de o observar. qualquer coisa, porventura o que nele havia de obsessivo e enigmático, deflagrava aos seus olhos como algo obscuramente belo. procurou recordar-se. tinha-o encontrado por acaso entre papéis desarrumados e sabia que era o desenho do que tinha visto num sonho. sabia que o tinha feito, a carvão, mal tinha acordado. mas não se lembrava do sonho e rever os seus elementos transpostos para o papel não o ajudava a lembrar-se. e teria isso ajudado a convencê-lo de que não era louco? a evidência, parecia-lhe, estava diante dos seus olhos, e não podia negá-lo. não sabia, de facto. com fita-cola, afixou o desenho na parede. seria o único assim? a ideia alarmou-o. mais alguém poderia ter visto um desenho daquela época e até tê-lo guardado. podia estar intacto, algures. porém, como a sua inquietação era inconfessável, nunca iria descobrir. nos dias seguintes, o desenho e as suas formas não lhe saíram da cabeça. uma enorme sombra projetava-se de um monólito no centro, sobre o qual estava um espelho com um corredor e uma porta. diversos animais rodeavam a peça central, como que em movimento, e uma mão saía de um deles. apesar de desenhada toscamente, não sabia porquê, essa mão parecia-lhe real, como se pudesse tocá-lo, e era nela que mais refletia. que espécie de loucura teria produzido aquela mão para que fulgurasse no canto de uma folha de papel, olhando-o? que espécie de loucura, enfim, a via olhá-lo? havia muito que a suspeita de que encontrava doente tinha surgido e agora não podia mais recalcar essa dúvida. permanecia secreta, contudo, a doença que o corroía e que, por vezes a muito custo, conseguia ainda esconder. eram sobretudo os pequenos detalhes que mais lhe causavam esforço. havia de chegar o dia em que deixaria de conseguir esconder-se e a doença tomaria por fim lugar. nos últimos anos tinha adquirido asco pelos espelhos e pensava agora se isso se devia a esse sonho antigo. a imagem que lhe devolviam era demasiado nítida para que pudesse suportá-la. fosse como fosse, dizia-se vários dias depois, mais do que a demência, era a beleza que se manifestava. seria louco talvez, mas entre as ranhuras do mundo ela surgia, pequena, sem valia nem propósito. e ele via.
Assassine os seus entes queridos.

Stephen King, Escrever.

3 de novembro de 2016

Espinosa, segundo Alain, mestre da alegria, mostra que «não é porque me aqueço que estou contente, mas é porque estou contente que me aqueço», isto é, só há uma maneira de resistir ao frio, é ficar contente que ele venha (como parece extravagante uma tal compreensão numa época em que tudo o que ventos, marés, temperaturas nos trazem é submetido às mós dos pequenos sistemas de finalidades).

Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.

31 de outubro de 2016

"Já ninguém gosta de arte contemporânea. Eu só quero ver Monet.", dizia-me ontem uma amiga. O conceptualismo evoluiu para uma abstração excessiva que só o próprio autor pode decifrar: e ainda assim nada revelar ou acrescentar. Pelo menos no que diz respeito aos artistas portugueses, o pedantismo intelectual sobrepôs-se à atividade criativa, deixando a arte no esgoto, como uma matéria inútil. Passarão muitas dezenas de anos até que volte a aparecer um artista que rompa com o estado de coisas atual, pelo menos no que diz respeito à criação. No que se refere aos comportamentos e, enfim, ao caráter, tenho sérias dúvidas que venha a haver alguma alteração. O caráter das pessoas que trabalham em arte contemporânea em Portugal, define-se pelo mercado.

30 de outubro de 2016

T. vai à varanda e de lá vê o espaço cheio de libélulas que, como um comboio infinito, não param de passar. atónita, fica imóvel, algumas passam perto do seu nariz, outras longe, do outro lado da rua, e entre umas e outras há pouco espaço vazio. passam rapidamente, para onde vão?, pensa, e porque passam pelo meio das ruas da cidade? horas depois, as libélulas continuam ainda o seu périplo. depois de ir à cozinha várias vezes espreitar pela janela para ver se desse lado da casa também vê alguma, T. senta-se na varanda a observá-las. uma urtiga cresce esplendorosamente num vaso e noutro erva, já muito alta. um pequeno verde, uma ilusão de campo, como se fosse o suficiente, pensa. as libélulas não podem escapar à sua viagem para outro continente tal como eu, aqui e agora na minha varanda, não posso escapar à minha solidão. ambas são inexoráveis. depois T. levanta-se, fecha a porta que dá para a varanda e entra em casa. o voo das libélulas resiste, não lá fora perante o seu olhar, mas como recordação. há neste mundo libélulas que, sem hesitação, encontram acordo para se agruparem e atravessar continentes, passando pelo meio das ruas de uma cidade. a alegria e a perfeição dessa recordação ombreava a da sua existência, também ela um périplo silencioso.

28 de outubro de 2016

LOST, LOST, LOST, Jonas Mekas (1976).

27 de outubro de 2016

Os puristas detestam ouvir isto e negá-lo-ão mesmo na hora da sua morte, mas é verdade. A linguagem nem sempre tem de usar gravata e sapatos de atacadores. O objecto da ficção não é a correcção gramatical, mas sim acolher bem o leitor e depois contar-lhe uma história... Fazendo-o esquecer-se, sempre que possível, de que está a lê-la.

Stephen King, Escrever.

25 de outubro de 2016

Começa pelo seguinte: ponha a secretária no canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se porque motivo ela não está no meio da sala. A vida não é um sistema de suporte da arte. É o contrário.

Stephen King, Escrever.
a minha relação com a fotografia começou por ser familiar. ver álbuns era uma coisa que se fazia, tal como ver televisão ou ouvir histórias. depois, quando o meu pai saiu de casa (era ele quem tirava as fotografias), os álbuns começaram a desaparecer. a certa altura, tive interesse em experimentar ser eu própria a fotografar e pedi-lhe uma câmara. era manual, da Nikon. estraguei-a ao tentar fotografar à noite. seja como for, a minha paixão não se desenvolveu. era giro experimentar várias técnicas para tentar chegar àquele ou a outro fim e ser sempre surpreendida pelo resultado (era disso que eu mais gostava), mas nenhum sujeito nem nenhum assunto me capturou. continuava sempre a perguntar-me «o que é que queres fazer?» e nunca obtive resposta. enfim, a câmara estragou-se, guardei-a algures e já não sei dela. senti falta de fotografar muitas vezes, com aquela máquina em particular, pesada e robusta, que tinha uma lente que me obedecia sem falhar. o que falhava era outra coisa qualquer, eu não sabia o quê, mas estava em mim. até que, já andava eu na faculdade, descobri a Francesca Woodman. foi um choque. não sei quanto tempo passei entre as fotografias dela, mas comecei a estudá-las, procurando os títulos respetivos e procurando construir a linha cronológica em que tinham sido tiradas. com isso fui dar à linha cronológica da sua própria vida. novo choque. não me entrava na cabeça que pudesse ocorrer a uma pessoa com um talento daquela dimensão um desejo de morte. já não me recordo de quase nada da sua biografia, que um dia soube contar de fio a pavio, à exceção de que ocupava aquelas casas em ruínas — alugava-as, fazia delas a sua própria morada —, e ali vivia enquanto se fotografava. saber isso causou-me uma impressão muito forte porque eu não tinha nada assim. nada tão urgente.
a chegada da internet foi fundamental para o meu contacto com a fotografia. já não era só o Gageiro, do livro que havia lá em casa, mas um mundo infinito de fotógrafos que a preto e branco ou a cores exploravam o instrumento. há, de facto, fotografias muito belas. e há, de facto, fotografias para tudo. contudo, e apenas agora posso dizê-lo, nunca uma fotografia me causou um impacto comparável a estar diante de um Van Gogh, de um Munch, de um Rembrandt, de um Zurbarán, de um Turner, de um Fra Angelico, de um Francis Bacon, por exemplo. mesmo que séculos nos separem, a pintura continua a ter mais camadas e, como se um túnel entre nós se abrisse, o seu silêncio é mais eloquente.

15 de outubro de 2016

para onde desapareceu a minha alegria? resplandecente, surgia sem mancha e contagiava todo o o universo. agora a ansiedade e o medo substituem-na, o pragmatismo da existência contaminou-me e a alegria surge como uma ameaça, cheia de sinais de alarme. gostaria de nascer outra vez, diz a mulher finalmente a envelhecer. tudo ficou cheio de palavras: que fiz eu?