18 de outubro de 2015

passei por um casal de mendigos a foder na entrada de um prédio. estavam tapados com um saco cama, ela praticamente imóvel, parecia morta, tinha a mão de fora da coberta, suja. ele estava todo lá dentro e os movimentos eram visíveis. passei numa direção e vi isto, voltei a passar na direção oposta e ele já lá não estava. ela continuava imóvel e tapada, mas tinha mudado de posição, deitou-se de barriga para baixo. não dava para perceber se ele iria voltar, o lugar que ocupava anteriormente estava agora a descoberto, mas também nunca dá, não é?

17 de outubro de 2015

15 de outubro de 2015

para o A., que me dá bons conselhos.

"ouve", disse-me o rapaz, "silêncio". eu: "não". como se de propósito, o operário exclamou "é meu filho!". pela primeira vez tive saudades de Marrocos. o meu pai, sozinho, com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo nas mãos. "e depois porra?", perguntei. um amigo veio buscá-lo. veio dizer-me "você tem de tirar dali o carro". percebi que o corte na mão não era profundo e mandei-o parar. "que catástrofe". "vá. silêncio.". chovia copiosamente. olhei para ela, introspetivo. ela endireitou o corpo e disse a sorrir, sem desviar os olhos do livro "alegria, alegria".

13 de outubro de 2015

deixando para trás a coluna de sol, os grilos e os curiosos, mal dado um passo para dentro da sombra fresca, o rosto dela surgiu com tanta veemência que nesse mesmo instante comparou a lembrança à de um morto, de quem o nojo fosse intolerável. o pensamento a seguir, enquanto seguia pela nave, foi que, justamente, ela não estava morta. os convidados sorriam ou choravam, uma felicidade tremenda, ignota, tinha-se apoderado da maior parte. no altar, o noivo também sorria, porém com uma felicidade frágil, genuína, que, contudo, desprezou. enquanto caminhava pela nave, cada vez mais lentamente, A. lembrou-se, com cuidado extremo, de todos os detalhes do seu corpo. da voz, do peso da mão, dos pelos da púbis, do tom da pele, da curva do pescoço, do cheiro da transpiração. quando chegou ao altar desejava ardentemente revê-la. imaginou-se a refazer o caminho de volta para a praça, atravessá-la, conduzir o carro durante uma hora e meia, procurar a casa, encontrar a casa, bater. mas não conseguia imaginá-la a surgir do lado de lá da porta. sem sucesso, ao longo de toda a cerimónia procurou imaginar esse rosto aparecer e por isso, quando entrou no carro que os levaria ao jardim, sentia-se indisfarçavelmente esgotada e abatida. embora com repulsa, pousou a cabeça no ombro do marido durante o percurso. não sabia no entanto a quem se destinava exatamente esta repulsa, se ao homem que com todo o afeto e compreensão acariciava agora o seu joelho, se a si própria, indistintamente burladora e burlada. começou a chorar, não para libertar a tensão mas sim a tristeza. indiferente às interrogações que choviam, escudou-se atrás de um bloco de silêncio e continuou a ver a escuridão atrás da porta aberta, de onde nenhum rosto assomava.
Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.
Isto era o destino:
chegar à margem e ter medo da quietude da água.

Antonio Gamoneda, Livro do Frio.

12 de outubro de 2015

o meu olhar abandonou a delicada sombra da teia no mesmo instante. escrevi seis palavras e o olhar atirou-se para dentro do inimaginável. ouro, panos, tristeza, conspirações, e uma voz edificante, inflexível e clara, da qual desconfio e profundamente desprezo. nesse momento, redigi uma carta. lisboa, 3 de novembro de 1988. tinha rabiscado uns apontamentos, agora incompreensíveis. escrevi-a na mesma. o espaço mergulhou num êxtase silencioso raro, preparei-me para o exílio. hora cativa, que me desaloja do tédio, hora desvanecida, cujo som acorda o mancebo: a minha admiração se perde nela.
Eis o outono: cresce a prumo.

Eugénio de Andrade

8 de outubro de 2015

7 de outubro de 2015

a Sinead O'Connor tem passado os últimos meses a destilar veneno contra o seu irmão e sabe-se lá mais quem no facebook. aqui há uns dois ou três anos, li no jornal que um escritor, que desconhecia e de quem infelizmente entretanto esqueci o nome, se matou por estar a ver a sua memória desaparecer. ontem foi a Chantal Akerman, aparentemente suicidou-se em consequência da má crítica ao seu último filme. apesar da obra que tem, apesar de tudo. a única morte nobre é a morte incompreensível, como um mergulho no mutismo a que estamos livrados.

5 de outubro de 2015

Enquanto Prisco e Vero alargavam o confronto, e por longo tempo a luta foi igual em ambos os lados, altos e repetidos gritos reclamavam a liberdade para os homens; mas César seguiu a sua própria lei; era a lei de lutar com o escudo até que um dedo se alçasse: Fez o que lhe era permitido, muitas vezes deu comida e presente. Mas chegou-se ao fim com a mesma igualdade: Iguais a lutar, iguais a ceder. César enviou espadas de madeira e palmas a ambos: Portanto, a coragem e a habilidade receberam o seu prémio. Tal não teve lugar perante nenhum príncipe excepto tu, César: Quando dois lutaram, ambos foram vitoriosos.

Martial, Liber de Spectaculis (80 d.C.).

2 de outubro de 2015

refletidos na água
o contorno do meu rosto
e a tua intenção
inacusável

1 de outubro de 2015

Eram mulheres que, às suas carícias tinham respondido com toda a sua sensibilidade, esquecendo-se delas próprias, que tinham delirado, inconscientes de prazer.

Yasunari Kawabata, A Casa das Belas Adormecidas.
Ma belle dame souveraine.

30 de setembro de 2015

Em 1946, de regresso ao México após uma operação fracassada à coluna em Nova Iorque, sobre a qual contudo tinha estado muito otimista, Frida Kahlo pinta La venadita ou El venado herido, um pequeno óleo sobre masonite com 22,9 de altura por 30,5 cm de largura. Usando um dos seus animais de estimação como modelo, um cervo chamado Granizo, Kahlo representa-se a si própria com um corpo de veado e uma cabeça adornada por hastes, brincos e um rosto maquilhado. Olhando diretamente para nós, o macho encontra-se no centro da pintura, numa clareira onde as árvores têm troncos largos e galhos partidos, ela própria rodeada por água que se entrevê através de uma pequena abertura entre as árvores e sobre a qual caem fortes relâmpagos. Perfurado por setas e a sangrar, o veado não tem forma de escapar. Está preso apesar da abertura e mesmo que escapasse enfrentaria nova ameaça (tempestade) e desilusões (a saída é ilusiva). No canto inferior esquerdo está escrito Carma, que significa destino. Metade humano, metade animal, este híbrido cai precisamente no local onde o caminho a seguir se mostra, o lugar onde a libertação parecia estar perto e se revela agora inatingível.
Como ao mártir São Sebastião, são nove as setas que atravessam o corpo. Frequentemente atribuído às doenças, lesões e operações que ao longo da vida a afetaram e às suas consequências, existem no entanto críticos que afirmam haver implicações sexuais por detrás do significado da pintura e que esta expressa a luta de Frida nas diferentes relações que teve, por um lado, e no seio da cultura tradicional, profundamente repressiva e machista como era, e continua a ser, a sua, por outro. Mas que implicações? A sexualidade de Frida Kahlo permanece marcada sobretudo pela morbidez física e pela incapacidade de ter filhos. À primeira vista evidente e claro, uma análise mais cuidada revela um significado ambíguo e complexo, permanecendo por isso aberto a múltiplas interpretações. Nunca saberemos. O corpo, a infância, a pátria, a religião, a política, a cultura, são a sua natureza e essa nunca fala. Heterodoxa, apesar do estigma da época viveu dividida entre relações com mulheres e com homens (e, ainda hoje, é frequente apenas se aludir à sua bissexualidade sem a confirmar). Teve uma tumultuosa e lendária relação com Diego Rivera, o famoso pintor com quem casou duas vezes e a quem até à morte haveria de tentar converter, embora sem muitas esperanças e apesar de também ela ter tido vários amantes, à monogamia. Sua «âncora e universo», Rivera era como aquela cama onde viveu grande parte da sua vida: numa existência sem ela, talvez não tivesse começado a pintar. Através da sua pintura, onde a autobiografia ocupa um lugar central e cuja audácia e espantosa ausência de auto-censura haveriam de a tornar célebre, Kahlo exibe-se num desajuste, marcada por uma intangibilidade que defendeu para se destacar do surrealismo. «Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui. Nunca pintei sonhos», dizia, «O que retratei era a minha realidade» e acontece que aquele que mais se revela, mais oculto fica. Da identidade à mudança de identidade, da natalidade à mortalidade, da imobilidade à liberdade, o seu mundo assenta numa dualidade inultrapassável onde a violência e a crueldade são sublimadas por encontrarem modos de expressão originais que implacavelmente a conduzem ao silêncio, à solidão e à invisibilidade. Dos cenários devastados das suas obras aos temas blasfemos e, sempre, esta ambição de verdade: Frida mostra o coração (por vezes intacto, por vezes cortado), a menstruação, a sexualidade da mãe. A sabedoria que decorre da fragilidade da vida faz parte do seu quotidiano. O veado foi domado, nada está escondido. A crítica aplaude, surgem os seguidores. Era exótica e foi canonizada. Uma espécie de heroína cativa, cujo corpo estripado e coberto de cores vivas houvera de transformar-se em ícone de feminilidade.

Viva la vida, viva!