30 de setembro de 2015

Em 1946, de regresso ao México após uma operação fracassada à coluna em Nova Iorque, sobre a qual contudo tinha estado muito otimista, Frida Kahlo pinta La venadita ou El venado herido, um pequeno óleo sobre masonite com 22,9 de altura por 30,5 cm de largura. Usando um dos seus animais de estimação como modelo, um cervo chamado Granizo, Kahlo representa-se a si própria com um corpo de veado e uma cabeça adornada por hastes, brincos e um rosto maquilhado. Olhando diretamente para nós, o macho encontra-se no centro da pintura, numa clareira onde as árvores têm troncos largos e galhos partidos, ela própria rodeada por água que se entrevê através de uma pequena abertura entre as árvores e sobre a qual caem fortes relâmpagos. Perfurado por setas e a sangrar, o veado não tem forma de escapar. Está preso apesar da abertura e mesmo que escapasse enfrentaria nova ameaça (tempestade) e desilusões (a saída é ilusiva). No canto inferior esquerdo está escrito Carma, que significa destino. Metade humano, metade animal, este híbrido cai precisamente no local onde o caminho a seguir se mostra, o lugar onde a libertação parecia estar perto e se revela agora inatingível.
Como ao mártir São Sebastião, são nove as setas que atravessam o corpo. Frequentemente atribuído às doenças, lesões e operações que ao longo da vida a afetaram e às suas consequências, existem no entanto críticos que afirmam haver implicações sexuais por detrás do significado da pintura e que esta expressa a luta de Frida nas diferentes relações que teve, por um lado, e no seio da cultura tradicional, profundamente repressiva e machista como era, e continua a ser, a sua, por outro. Mas que implicações? A sexualidade de Frida Kahlo permanece marcada sobretudo pela morbidez física e pela incapacidade de ter filhos. À primeira vista evidente e claro, uma análise mais cuidada revela um significado ambíguo e complexo, permanecendo por isso aberto a múltiplas interpretações. Nunca saberemos. O corpo, a infância, a pátria, a religião, a política, a cultura, são a sua natureza e essa nunca fala. Heterodoxa, apesar do estigma da época viveu dividida entre relações com mulheres e com homens (e, ainda hoje, é frequente apenas se aludir à sua bissexualidade sem a confirmar). Teve uma tumultuosa e lendária relação com Diego Rivera, o famoso pintor com quem casou duas vezes e a quem até à morte haveria de tentar converter, embora sem muitas esperanças e apesar de também ela ter tido vários amantes, à monogamia. Sua «âncora e universo», Rivera era como aquela cama onde viveu grande parte da sua vida: numa existência sem ela, talvez não tivesse começado a pintar. Através da sua pintura, onde a autobiografia ocupa um lugar central e cuja audácia e espantosa ausência de auto-censura haveriam de a tornar célebre, Kahlo exibe-se num desajuste, marcada por uma intangibilidade que defendeu para se destacar do surrealismo. «Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui. Nunca pintei sonhos», dizia, «O que retratei era a minha realidade» e acontece que aquele que mais se revela, mais oculto fica. Da identidade à mudança de identidade, da natalidade à mortalidade, da imobilidade à liberdade, o seu mundo assenta numa dualidade inultrapassável onde a violência e a crueldade são sublimadas por encontrarem modos de expressão originais que implacavelmente a conduzem ao silêncio, à solidão e à invisibilidade. Dos cenários devastados das suas obras aos temas blasfemos e, sempre, esta ambição de verdade: Frida mostra o coração (por vezes intacto, por vezes cortado), a menstruação, a sexualidade da mãe. A sabedoria que decorre da fragilidade da vida faz parte do seu quotidiano. O veado foi domado, nada está escondido. A crítica aplaude, surgem os seguidores. Era exótica e foi canonizada. Uma espécie de heroína cativa, cujo corpo estripado e coberto de cores vivas houvera de transformar-se em ícone de feminilidade.

Viva la vida, viva!