Há na ironia uma pretensão insuportável: a de pertencer a uma raça superior, e de ser a propriedade dos mestres (um texto famoso de Renan di-lo sem ironia, dado que a ironia acaba depressa quando fala de si própria). O humor reclama-se, pelo contrário, de uma minoria, de um devir-minoritário (...).
Gilles Deleuze, Dialogues, 1977.
1 de maio de 2015
29 de abril de 2015
Anoto este facto, entre outros, no meu caderno, para futuras referências. Quando for grande terei sempre comigo um espesso caderno de notas com numerosas páginas metodicamente dispostas por ordem alfabética. Aí escreverei as minhas notas. Na letra B, haverá por exemplo "Borboletas brancas reduzidas a pó". Se no meu romance tiver que descrever um raio de sol num parapeito da janela, irei ver a letra B e lá encontrarei as palavras "Borboletas brancas reduzidas a pó". Há-de ser-me útil.
Virginia Woolf, As Ondas.
Virginia Woolf, As Ondas.
28 de abril de 2015
uma amiga conta-me ao telefone que a segunda feira é difícil para ela. sem a interromper, ouço-a falar de um estado de torpor de que não consegue libertar-se e que, diz, normalmente desaparece no dia seguinte, tão inexplicavelmente como apareceu. «fico sentada na cama apenas a olhar mas sem pensar. vejo as mãos, olho para as mãos; vejo a dobradiça, olho para a dobradiça. e o tempo passa, assim, até que a certa altura percebo que o tempo passou e eu não me mexi». aterrorizada, enquanto a oiço revejo-me de pé à entrada da sala, minutos antes de receber a chamada, sem conseguir dar um passo para a frente ou para trás embora perfeitamente consciente da indolência, ao longo de, percebi já ao telefone com sobressalto, quase uma hora. há qualquer coisa de reconfortante em não estar louco sozinho. é como naquela velha máxima, «vamos ao fundo mas vamos todos juntos ao fundo.»
estou a tomar o pequeno almoço quando percebo que esse torpor está a chegar e olho através da janela, procurando uma fuga. um raio de sol maciço pousa sobre a roupa branca no estendal e faz ricochete na peça de metal de uma das molas. o azul do céu faz lembrar um dia de verão, brilhante e pesado. não se ouve nada. quando volto a ter consciência de mim, reparo que sorrio tenuemente, mas que o nó na garganta se mantém. como posso honrar tanta beleza?
já no final do dia, decido enfim sair de casa. levo um livro na mão. é um livro que quero muito ler, que tenho medo de ler. já me aconteceu o mesmo antes com outros livros que, tal como este, apesar de terem sido escritos por outrem, existem em mim. talvez tenha medo de ser desapontada. talvez não queira que o escritor tenha falhado onde eu falho e vou protelando a abertura das páginas enquanto seguro o livro nas minhas mãos com o coração extasiado, como quando vamos ao primeiro encontro de um amor que acaba de começar. e então ele diz «Olhei para a fachada, a fachada, a fachada» e eu resplandeço. escreve «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e tenho vontade de rir, porque a perfeição dá vontade de rir. chama a um poema BREVE PAUSA NO CONCERTO DE ÓRGÃO* e sou eu. estou sentada no café numa hora de vazio, leio nesse livro «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e aquilo é a minha jangada em mar alto (alto porque não tem fundo, ou não sei se tem, mas mar não deve ser porque não vejo água e o horizonte é apenas isso, horizonte). corro para casa, exaltada, feliz, como se tudo fosse possível. mas para que quero eu tanto escrever? aqui há tempos fui a uma conferência onde um escritor dizia que só acreditava em escritores que publicam, que mostram, que copiam, que procuram dialogar ativamente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. na altura aquilo deixou-me a pensar «se calhar é isso que me faz falta, ser um pouco menos invisível», mas nunca cheguei a alterar alguma coisa, na verdade, creio que nem sequer cheguei a querer alterar. gosto deste pequeno buraco húmido onde não vem ninguém. não tenho a força necessária para deixar um livro no mundo e está bem assim. não quero usar a escrita para nada. qualquer ruído me é insuportável e um livro não pode ser publicado sem ruído. é como se caminhasse precisamente em sentido contrário a esse: quero escrever sobretudo quando até eu deixar de ler o que escrevo. sempre achei que mal o esperasse, o ímpeto desapareceria mas, pelo contrário, parece agravar-se. aconteceu por acaso, nada disto se presta à compreensão. como um pintor que procura acertar na cor, mantenho simultâneas a dificuldade e o desejo de dizer. existe em mim uma correspondência perfeita entre a asfixia e a libertação, entre a agonia e a aurora. seja como for, é a única vontade, a razão pela qual ainda me vou interessando por perceber alguma coisa do mundo e por permanecer nele. por pobre razão que seja, não precisa de validação.
*Versos e título de poemas de Tomas Tranströmer.
estou a tomar o pequeno almoço quando percebo que esse torpor está a chegar e olho através da janela, procurando uma fuga. um raio de sol maciço pousa sobre a roupa branca no estendal e faz ricochete na peça de metal de uma das molas. o azul do céu faz lembrar um dia de verão, brilhante e pesado. não se ouve nada. quando volto a ter consciência de mim, reparo que sorrio tenuemente, mas que o nó na garganta se mantém. como posso honrar tanta beleza?
já no final do dia, decido enfim sair de casa. levo um livro na mão. é um livro que quero muito ler, que tenho medo de ler. já me aconteceu o mesmo antes com outros livros que, tal como este, apesar de terem sido escritos por outrem, existem em mim. talvez tenha medo de ser desapontada. talvez não queira que o escritor tenha falhado onde eu falho e vou protelando a abertura das páginas enquanto seguro o livro nas minhas mãos com o coração extasiado, como quando vamos ao primeiro encontro de um amor que acaba de começar. e então ele diz «Olhei para a fachada, a fachada, a fachada» e eu resplandeço. escreve «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e tenho vontade de rir, porque a perfeição dá vontade de rir. chama a um poema BREVE PAUSA NO CONCERTO DE ÓRGÃO* e sou eu. estou sentada no café numa hora de vazio, leio nesse livro «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e aquilo é a minha jangada em mar alto (alto porque não tem fundo, ou não sei se tem, mas mar não deve ser porque não vejo água e o horizonte é apenas isso, horizonte). corro para casa, exaltada, feliz, como se tudo fosse possível. mas para que quero eu tanto escrever? aqui há tempos fui a uma conferência onde um escritor dizia que só acreditava em escritores que publicam, que mostram, que copiam, que procuram dialogar ativamente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. na altura aquilo deixou-me a pensar «se calhar é isso que me faz falta, ser um pouco menos invisível», mas nunca cheguei a alterar alguma coisa, na verdade, creio que nem sequer cheguei a querer alterar. gosto deste pequeno buraco húmido onde não vem ninguém. não tenho a força necessária para deixar um livro no mundo e está bem assim. não quero usar a escrita para nada. qualquer ruído me é insuportável e um livro não pode ser publicado sem ruído. é como se caminhasse precisamente em sentido contrário a esse: quero escrever sobretudo quando até eu deixar de ler o que escrevo. sempre achei que mal o esperasse, o ímpeto desapareceria mas, pelo contrário, parece agravar-se. aconteceu por acaso, nada disto se presta à compreensão. como um pintor que procura acertar na cor, mantenho simultâneas a dificuldade e o desejo de dizer. existe em mim uma correspondência perfeita entre a asfixia e a libertação, entre a agonia e a aurora. seja como for, é a única vontade, a razão pela qual ainda me vou interessando por perceber alguma coisa do mundo e por permanecer nele. por pobre razão que seja, não precisa de validação.
*Versos e título de poemas de Tomas Tranströmer.
27 de abril de 2015
26 de abril de 2015
25 de abril de 2015
24 de abril de 2015
Estive a ver a minha cronologia do Facebook para trás e, ao contrário do que normalmente acontece quando recordo coisas que disse ou escrevi, fiz tanto sentido que a determinado momento me vi confinada a um corredor de tempo com um lapso temporal único. A sensação de estar finalmente em identificação comigo mesma, provocou-me uma vertigem intensa, daquelas que tocam o coração e tornam familiar a profundidade da paisagem. Contudo, a vertigem não só era insuficiente para que pudesse deixar subitamente de estar de acordo comigo, como me transmitia conforto. Com uma inflexível estabilidade, a vertigem era esse conforto.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.
23 de abril de 2015
num trabalho de estatística leio a meio de uma frase: a simetria (ou anonimato) e faz-se luz.
ainda ontem, a meio de uma conversa com um amigo, me deixei sobressaltar ao proferir as palavras de que toda a gente gosta, quer dizer, do comum, sobressalto de espanto, como em criança acontecia frequentemente perante expressões da minha avó, cuja audição, para grande suplício dos adultos, me impedia de comer, de falar e me fizeram descobrir o riso. estas formas, que regulam o juízo e a condição de possibilidade do conhecimento, parecem ter a mesma origem. mas não é isso que me atrai nelas. o que me atrai é a resposta da minha sensibilidade a cada uma delas, que as constitui em última análise numa dupla sobreposição de oposições.
ainda ontem, a meio de uma conversa com um amigo, me deixei sobressaltar ao proferir as palavras de que toda a gente gosta, quer dizer, do comum, sobressalto de espanto, como em criança acontecia frequentemente perante expressões da minha avó, cuja audição, para grande suplício dos adultos, me impedia de comer, de falar e me fizeram descobrir o riso. estas formas, que regulam o juízo e a condição de possibilidade do conhecimento, parecem ter a mesma origem. mas não é isso que me atrai nelas. o que me atrai é a resposta da minha sensibilidade a cada uma delas, que as constitui em última análise numa dupla sobreposição de oposições.
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