27 de abril de 2015

"Escrever é estar aberto à desmesura; portanto, aquele que escreve nunca estará sozinho o suficiente, e enquanto escreve nunca haverá silêncio o suficiente em torno dele, e a noite nunca será noite o suficiente."

Franz Kafka, Cartas a Felice.
um delírio seco
de grande precisão
e delicadeza
oferece resposta
à saudade lânguida
e um esquecimento esplendoroso
inunda a vida
tranquila.
vou começar a fazer coleção

Tomas Tranströmer nasceu em Estocolmo a 15 de abril de 1931. 
(...).
Vive atualmente numa ilha, distante dos olhares do mundo.
A mulher é infinita.

Yasunary Kawabata, A Casa das Belas Adormecidas.

26 de abril de 2015

Nada muda de forma como as nuvens, a não ser os rochedos.

Victor Hugo

25 de abril de 2015

24 de abril de 2015

Estive a ver a minha cronologia do Facebook para trás e, ao contrário do que normalmente acontece quando recordo coisas que disse ou escrevi, fiz tanto sentido que a determinado momento me vi confinada a um corredor de tempo com um lapso temporal único. A sensação de estar finalmente em identificação comigo mesma, provocou-me uma vertigem intensa, daquelas que tocam o coração e tornam familiar a profundidade da paisagem. Contudo, a vertigem não só era insuficiente para que pudesse deixar subitamente de estar de acordo comigo, como me transmitia conforto. Com uma inflexível estabilidade, a vertigem era esse conforto.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.
Quatro ou mais pessoas a viver numa divisão, aumenta os riscos de perda de dignidade, de doenças infecciosas e de violência doméstica.

que inspirador. 

23 de abril de 2015

num trabalho de estatística leio a meio de uma frase: a simetria (ou anonimato) e faz-se luz.
ainda ontem, a meio de uma conversa com um amigo, me deixei sobressaltar ao proferir as palavras de que toda a gente gosta, quer dizer, do comum, sobressalto de espanto, como em criança acontecia frequentemente perante expressões da minha avó, cuja audição, para grande suplício dos adultos, me impedia de comer, de falar e me fizeram descobrir o riso. estas formas, que regulam o juízo e a condição de possibilidade do conhecimento, parecem ter a mesma origem. mas não é isso que me atrai nelas. o que me atrai é a resposta da minha sensibilidade a cada uma delas, que as constitui em última análise numa dupla sobreposição de oposições.
We are only lightly covered with buttoned cloth; and beneath these pavements are shells, bones and silence.

Virginia Woolf, The Waves.

21 de abril de 2015

Na minha rua ao meio-dia
um homem gordo
de fato cinzento e gravata
com óculos
sussurra a palavra
silêncio
inclinando ligeiramente a cabeça na minha direção
quando nos cruzamos
como se quisesse cumprimentar-me
ou ameaçar-me
embora não o conhecesse.
Isto aconteceu
e eu não tenho ninguém a quem possa contá-lo
porque ninguém senão tu
poderia
acreditar em mim
e tu não estás.
Ouviste bem?
perguntarias
desconfiado
e eu responder-te-ia que ele passou do meu lado bom
a escassos centímetros do meu ouvido
numa rua sem trânsito ao meio-dia
e que
por muito que repetisse mentalmente
a frase
estas coisas não acontecem
esta tinha acabado de me acontecer.
À tarde estive muito tempo sem saber o que fazer
sentada a olhar para as minhas mãos
até que me levantei e comecei a fazer muitas coisas
estando esta carta entre elas.
Estava no quiosque da rua das árvores
aquele
quando pensei
primeiro em escrever e depois em escrever-te
sobre isto
mas ao levantar-me não sabia como
e agora pelos vistos nem me interessa.
Pouco antes disso
quando cheguei
pedi um carioca ao balcão
e enquanto o tiravam da máquina
perguntei três vezes
quanto custava
e
sem resposta
possivelmente porque dentro do quiosque
o ruído era tal
que as vozes eram absorvidas
sobretudo a minha
desisti de repetir a pergunta
e esperei.
O rapaz poe a chávena à minha frente
e outro rapaz aparece à frente da chávena
a mexer na caixa registradora
pergunto
quanto custa
e o segundo rapaz olha para mim
mas fica muito espantado
como se estivesse a ver uma assombração
e não me diz o preço do café
não diz nada
só olha para mim
até que me rio
baixinho
a olhar nos grandes olhos dele
a olhar para mim
e enfim
antes que eu pudesse corar
eis que ele sorri de volta
como uma criança
inocente
e me oferece o café.
Talvez eu já não possa corar senão quando sonho
porque quando estava sentada
a beber o carioca
e a ler
um livro chamado
A Casa das Belas Adormecidas
de um japonês chamado
Yasunari Kawabata
pensei
meu deus
ainda bem que te riste!
só que já não era no rapaz que eu pensava
mas sim na minha vida
ou em como a vivi.
Na altura não percebi porque pensei aquilo
assim
e queria muito perceber
um daqueles pensamentos que não sabemos de onde vêm
que nos surpreendem por serem novos
mal acabados de nascer
e as coisas novas têm
o prazer intenso
do êxodo
que não se pode ignorar
e sobe-se um degrau
ou desce-se
isso não importa
o que importa é que nesse prazer
se perde a capacidade de corar
que envelhecemos
sentimos o vento na cara
uma voz
muito bem definida
como carvão novo
sobre papel virgem
ressoa no corpo
e sem nossa intenção
apesar de ser nossa
alastra
na terra no espaço na noite que rompe.
Então levantei-me
e a caminho de casa
pensando no que tinha para escrever
perguntei-me se esse pensamento
estaria relacionado com o livro
porque o livro fala de um velho
chamado Eguchi
cujas recordações são aparentemente arbitrárias
mas depois não são.
Senti-me desesperar por não saber de onde vinha
aquele pensamento
onde ouvi
com o estômago
todas as gargalhadas
verdadeiras
que dei na minha vida.
Só agora
que já me perdi dentro da escrita
posso dizer que talvez perceba
e sim
foi por culpa do livro
do velho Eguchi
que olhava para a pele branca das raparigas novas
e se recordava da filha que mais amava
ou de uma amante que nem tinha sido das mais importantes
porque o rapaz sorriu
e não conseguiu falar
enquanto olhava para mim.
Reparei entretanto
que estou a escrever sem vírgulas
que o horizonte
para lá da janela
ficou totalmente branco
e como é capaz de chover
apanhei a roupa.
Os corpos distinguem-se uns dos outros em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão, e não em razão da substância.

Bento de Espinosa, Ética, Parte II, Proposição XIII, Lema I.

20 de abril de 2015

adormecer na dúvida irrazoável,
acordar na luminosa resposta.

19 de abril de 2015

Between two lifes,
throughout life,
during life,
an odd moment arrives
when you learn to part
from what you've seen before
because it no longer exists for you.
Because you need to forget.
The moment of parting
is a moment of death.
Parting comes like a winter night
in a scorching summer.
It undoubtedly
towers over
the gray banality
like a dead distant cousin,
or something like that.
Parting is unusual
it has a certain charm
and it has
a touch of pride.
Parting.

Nadav Lapid

17 de abril de 2015

Every man has reminiscences which he would not tell to every one, but only to his friends. He has other matters in his mind which he would not reveal even to his friends, but only to himself, and that in secret. But there are other things which a man is afraid to tell even to himself, and every decent man has a number of such things stored away in his mind. The more decent he is, the greater the number of such things in his mind. Anyway, I have only lately determined to remember some of my early adventures. Till now I have always avoided them, even with a certain uneasiness. Now, when I am not only recalling them, but have actually decided to write an account of them, I want to try the experiment whether one can, even with oneself, be perfectly open and not take fright at the whole truth. I will observe, in parenthesis, that Heine says that a true autobiography is almost an impossibility, and that man is bound to lie about himself. He considers that Rousseau certainly told lies about himself in his confessions, and even intentionally lied, out of vanity. I am convinced that Heine is right; I quite understand how sometimes one may, out of sheer vanity, attribute regular crimes to oneself, and indeed I can very well conceive that kind of vanity. But Heine judged of people who made their confessions to the public. I write only for myself, and I wish to declare once and for all that if I write as though I were addressing readers, that is simply because it is easier for me to write in that form. It is a form, an empty form—I shall never have readers. I have made this plain already…

Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground.