fascinou-me em adolescente que a formação das cidades portuguesas estivesse normalmente associada a uma lenda. nada mais expectável para quem vive num mundo de fantasia, onde nenhuma dúvida atormenta. para mim, cada uma dessas lendas retinha uma verdade arquetípica sobre os nativos. parti pois do princípio que também a cidade onde vivia (na altura, a vila) teria uma e, desejosa de me rever no modelo que me correspondia, procurei saber qual era. a resposta deixou-me em choque.
em 1372, altura em que os castelhanos tinham tomado a vila, exigindo a rendição do castelo em troca, Gil Paes era alcaide-mor do castelo de Torres Novas. os inimigos tinham aprisionado um dos seus filhos (de quem nunca descobri o nome), na altura com 18 anos, devido ao insucesso de uma surtida noturna às forças castelhanas que sitiavam o castelo, e ameaçavam matá-lo. Gil Paes terá então dito às tropas sitiantes que o
assassem e comessem, mas que Deus não permitisse que fosse traidor do
seu Rei e Senhor. após vários dias de cerco, perante a inflexível recusa em entregar as chaves da fortificação, o magistrado assistiu por fim à execução do filho às portas do castelo, primeiro enforcado e depois pendurado pelas pernas. em seguida, comandados por Henrique II de Trastâmara, os castelhanos levantaram o cerco e abandonaram a praça.
durante anos pedi que me repetissem a história, como as crianças pedem para repetir a fábula do escorpião e da tartaruga vezes sem conta. quis saber até que ponto se tratava de facto de uma lenda ou se tinha alguma validade histórica, descobrindo assim que existia na Torre do Tombo em Lisboa, um documento assinado pela mão de Fernão Lopes com a descrição do episódio. a informação que encontrei à altura na biblioteca de Torres Novas, contudo, não abundava sobre a matéria, limitando-se o mais das vezes a reproduzir invariavelmente os principais elementos da história, com poucos detalhes, na maioria das vezes omitindo até nomes ou datas. passou a intrigar-me que lhe chamassem lenda e achei que, sem dúvida por se tratar de um episódio de tamanha violência, as pessoas preferiram imaginar que não tivesse de facto acontecido, inscrevendo o engano na linguagem, depois perpetuado através de gerações. e de facto, quando me contavam a história, quantas vezes os castelhanos não foram mouros (ou outras incorreções, como se comprova na página três desta edição do Jornal Almonda).
o enigma vincou-se. coeso e intangível, eu não podia ver-me através dele. uma natureza insubmissa não chegava para explicar, ou antes, para justificar a ressonância da alegoria, até porque, se por um lado havia uma declarada insubmissão ao inimigo, por outro havia devoção ao soberano. perante a coincidência perfeita entre o vínculo parental e a mais pura frieza, o pensamento colapsava. pelo menos o meu. que o assem e o comam, teria dito o alcaide. imaginei a cumplicidade da praça, os olhares trocados entre castelhanos e portugueses, entre Henrique e Gil, entre o pai e o filho, o eco das vozes, o rumor da movimentação das tropas, os vários dias de batalhas desde que levantaram o cerco, talvez chovesse, talvez o sol brilhasse implacavelmente, haveria pó, muito pó ou muita lama, as armaduras pesavam, cavalos relinchavam, pássaros indiferentes chilreavam, o eco, dos pensamentos, dos olhares, um rapaz de 18 anos feito prisioneiro pelo inimigo em sua própria casa, de quem sequer sabemos se chora, se grita, se fala, ninguém para o denunciar à posteridade. terá alguém escrito o seu nome?
Gil Paes preconiza um tipo de resistência extremo. aparentemente indiferente durante o cerco, cerca de um ano mais tarde terá sido necessário convencer D. Fernando I a colocar a sua filha D. Isabel de Portugal sob a custódia de Gil Paes, antes desta casar com Afonso, conde de Noronha e Gijon. parece que o tempo terá auxiliado na instauração de uma manobra política de indelével firmeza: a barbárie converte-se em lealdade e por sua vez a lealdade em lenda. a abjeção reveste-se de nobreza e entra para a História. enquanto eu crescia, ergueram na praça principal da cidade um grande painel de azulejos que retrata o episódio, onde um corpo jaz no centro com grilhões nos tornozelos. no verão passado, a feira medieval que ali se organiza teve como tema o sacrifício do herói. e quem é o herói? não a criança, não o filho, o inocente, mas Gil Paes. o mártir.
conheci a palavra agelasta através da gravação de uma conferência que Ricardo Araújo Pereira deu na capela do Rato em Lisboa. trata-se de um dos neologismos de François Rabelais que tem origem grega e que em qualquer dicionário se refere «àquele ou ao que (este que é curioso) não ri». Rabelais terá encontrado a palavra no mito de Deméter,
deusa da fertilidade, que perde Perséfone, sua única filha com Zeus,
porque Hades, o senhor do mundo dos mortos, a rapta. Deméter está à
sua procura quando, a determinado momento, percebe. nesse momento, está
sentada sobre uma pedra chamada agelasta. uma rápida busca no Google levou-me a Milan Kundera:
Não existe paz possível entre o romancista e o agelasta. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastas estão convencidos
de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma
coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é
precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime
dos outros que o homem se torna indivíduo. O romance é o paraíso
imaginário dos indivíduos. É o território onde ninguém é dono da
verdade, nem Anna nem Karenin, mas onde todos têm o direito de ser
compreendidos, tanto Anna como Karenin. (...). O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor.
Kundera explica ainda que Rabelais tinha pavor dos agelastas. detestava-os e temia-os. dizia ele que os agelastas eram tão atrozes consigo, que tinha chegado a pensar em deixar de escrever para sempre. o que é temido por Rabelais? não a sua incapacidade de rir, pois em última análise essa só a eles lhes diz respeito, mas sim a capacidade de fazerem um escritor deixar de escrever. o que é detestado por Rabelais? a capacidade que o agelasta tem de fazer propagar a sombra ao coração daquele que ri, torna-o por sua vez incapaz de fazer o agelasta rir. tudo se passa como se esta incapacidade lhe transmitisse uma força sobre-humana. por isso Rabelais os define como pertencentes a dois planos distintos da existência, mais exatamente, o da possibilidade e o da sua carência, o da empatia e o da irascibilidade ou, como Kundera dirá, o plano da verdade e o plano da imaginação. entre um e outro (a acreditarmos no romancista), só há espaço para a inquietação e para a hostilidade. posso sempre estar errada, mas Gil Paes parece ser um destes agelastas. dele, e do seu ato de lealdade, se ri Deus.
7 de janeiro de 2015
6 de janeiro de 2015
5 de janeiro de 2015
3 de janeiro de 2015
30 de dezembro de 2014
Il avait 3 ans. Un jour, il arrive et il me dit: ‘Maman, mes ciseaux à découper, mes ciseaux à découper! Où ils sont?’ Il pleurait, il était très malheureux, et je lui dis: ‘Tu n’as qu’à les chercher, tes ciseaux à découper!’ Il recommence: ‘Maman, mes ciseaux à découper!’ Alors je lui dis: ‘Cherche, écoute! Réfléchis! Où les as-tu mis?’ Il me dit: ‘Je ne peux pas réfléchir!’ Je lui dis: ‘Pourquoi tu ne peux pas réfléchir?’ et il me dit: ‘Parce que si je réfléchis, je crois que je les ai foutus par la fenêtre.’
Marguerite Duras
Marguerite Duras
29 de dezembro de 2014
28 de dezembro de 2014
26 de dezembro de 2014
tenho uma chave, entro, já conheço este lugar. há vozes e comida, eu tenho fome e frio mas reparo que estou muda. duvido que a multidão seja real e a profusão transforma-se em confusão. não acredito sequer no que me está a acontecer. não, não é isso. sei é que a realidade das coisas que acontecem muitas vezes revela ser o seu oposto. parece uma festa mas pode ser um crime. não sou inocente. não quero brindar com os ímpios, não quero estar entre eles. desvio-me para o corredor, a madeira gasta, esburacada pelos bichos, húmida, camadas de tinta a estalar. na outra mão, só vejo agora, pesa-me um ramo de flores. a princípio não sei que flores são nem penso nisso, depois as flores ficam horrivelmente nítidas, é um grande ramo de rosas vermelhas, não sei porquê pois nem sequer gosto de rosas, são frescas, perfeitas, um pico está cravado num dos meus dedos, não sei se sangra mas nada muda, continuo a segurar o ramo exatamente com a mesma força antes de pensar na dor. entrei num quarto vazio, está escuro e longe da festa. através de uma janela, a única, passa um imenso clarão amarelo torrado, embora continue a estar escuro e frio dentro do quarto. não faço nada. talvez não saiba o que fazer talvez não queira fazer nada. através do clarão a paisagem é invisível. olho para o clarão sem dar um passo em direção a ele para me debruçar sobre a paisagem. creio que ficaria cega. o tempo passa em grandes ondas e eu permaneço indiferente. dias, noites, meses, estações, porém, sempre o mesmo clarão amarelo através da janela. tenho sede. reparo que não falo há muito tempo e quero falar mas não consigo. não me lembro de nada. talvez nunca tenha aprendido a falar. sou uma imperiosa controvérsia que quer instalar-se comodamente na sombra e conformar-se a ela. sei bem que o que vejo do mundo não passa de uma fantasia fugaz. a minha maneira de ver o mundo nada tem que ver com o mundo, a minha maneira de pensar constitui uma renúncia ao rigor do pensamento. uma incompreensível sucessão de fenómenos tornou o espaço artificial, mera sequência de planos, categorias, dimensões, consequências. não durmo. o tempo não passa mas mesmo assim gostaria de poder dormir.
25 de dezembro de 2014
Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade.
É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos
os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema
que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas
noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.
Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.
Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.
24 de dezembro de 2014
da janela avisto uma paisagem reduzida de coisas. são poucos telhados, poderia contá-los, mas os suficientes para tapar a linha do horizonte terrestre. abro-a e debruço-me para fumar um cigarro. não há nada para ver desta janela. nada. nada se passa, nada acontece. a monotonia do que toca o solo deveria invariavelmente atrair os olhos para o céu, ele próprio ainda mais monótono.
desta janela vejo uma buganvília com flores cor de rosa. ontem, ao cimo da buganvília, vi umas flores brancas, de que gosto muito. com os olhos procurei o pé, escondido entre uma profusão de outras plantas foi difícil encontrá-lo. a trepadeira subiu toda a altura da buganvília tapada por ela, resistindo à falta de luz, e agora um pequeno cacho de flores brancas brilha acima dela.
regressei à noite. na escuridão apenas estão visíveis alguns pontos de luz, ao fundo. são candeeiros de estrada. hoje, mesmo no centro do meu quadro, havia um terraço iluminado. a luz, colocada debaixo de uma parreira, revelava a sua amplitude, que ecoava.
lufadas de fumo branco vindo das lareiras alastravam por toda a parte. empurrada por um vento ligeiro, uma dessas nuvens tocou nas minhas mãos.
a lua aparece cedo, primeiro muito alta e branca no céu, mais tarde equilibrada sobre os telhados. há dias estava cheia e completamente cor de rosa, uma das maiores luas que vi até hoje. ali mesmo, à minha frente, sem razão.
há três gatos nos telhados. um amarelo, grande, gordo. um branco, sujo, elegante. um cinzento, que aparece menos vezes, com ar de rufia. deitam-se ao sol e procuram troncos e galhos para se coçar. vigiam o mundo, soberanos, pachorrentos e implacáveis.
hoje depois de almoço vi um melro dentro de um buraco a escavar a terra com o bico.
os limoeiros estão carregados. que belos são os limoeiros. parecem estar sempre carregados, sempre cheios de fruta, sempre cheios de maturidade, sempre prontos.
em dias de sorte, quando abro a janela, o mundo está branco. perante o nevoeiro, oiço apenas. o coração vibrante.
desta janela vejo uma buganvília com flores cor de rosa. ontem, ao cimo da buganvília, vi umas flores brancas, de que gosto muito. com os olhos procurei o pé, escondido entre uma profusão de outras plantas foi difícil encontrá-lo. a trepadeira subiu toda a altura da buganvília tapada por ela, resistindo à falta de luz, e agora um pequeno cacho de flores brancas brilha acima dela.
regressei à noite. na escuridão apenas estão visíveis alguns pontos de luz, ao fundo. são candeeiros de estrada. hoje, mesmo no centro do meu quadro, havia um terraço iluminado. a luz, colocada debaixo de uma parreira, revelava a sua amplitude, que ecoava.
lufadas de fumo branco vindo das lareiras alastravam por toda a parte. empurrada por um vento ligeiro, uma dessas nuvens tocou nas minhas mãos.
a lua aparece cedo, primeiro muito alta e branca no céu, mais tarde equilibrada sobre os telhados. há dias estava cheia e completamente cor de rosa, uma das maiores luas que vi até hoje. ali mesmo, à minha frente, sem razão.
há três gatos nos telhados. um amarelo, grande, gordo. um branco, sujo, elegante. um cinzento, que aparece menos vezes, com ar de rufia. deitam-se ao sol e procuram troncos e galhos para se coçar. vigiam o mundo, soberanos, pachorrentos e implacáveis.
hoje depois de almoço vi um melro dentro de um buraco a escavar a terra com o bico.
os limoeiros estão carregados. que belos são os limoeiros. parecem estar sempre carregados, sempre cheios de fruta, sempre cheios de maturidade, sempre prontos.
em dias de sorte, quando abro a janela, o mundo está branco. perante o nevoeiro, oiço apenas. o coração vibrante.
22 de dezembro de 2014
20 de dezembro de 2014
na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja
verde escuro. tinha quatro aberturas através das quais passávamos as
pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do
qual havia um braseiro. num braseiro o fogo nunca se levanta. as brasas
são atiçadas, trocadas, sopradas e nunca incendeiam. isto
fascinava-me, bem como o facto da cozinha inteira ficar quente apesar de
não haver fogo mas apenas umas brasas tapadas — escondidas — por um
pano tão grosso. portanto, mal chegava o inverno começava a perguntar
¿quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia com um
sorriso que nunca mostrava e prolongava a espera dizendo que tínhamos de
poupar. depois um dia chegava do colégio e a cozinha estava quente.
todo o tempo que podia ficar ali sentada, passava-o a espreitar para
baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão.
quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível
olhá-las. o calor queimava a cara e fechava os olhos. procurava arranjar
estratégias, nenhuma que funcionasse, sobretudo talvez para lidar com a
minha própria ansiedade. quando finalmente o calor começava a
enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor
do carvão, as cinzas em que se ia transformando. apesar de tudo, era
rápido. demasiado rápido. e havia sempre muitas cinzas, sempre me
parecia haver mais cinzas do que inicialmente poderia ter havido carvão.
mas as cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas,
numa operação difícil e melindrosa, que reunia várias mãos e
vários olhares. se as brasas acesas me davam a sensação de participar
nelas, a frieza do carvão no saco de papel provocava um outro tipo de
curiosidade. podia olhá-lo quanto tempo e sempre que desejasse. podia tocar-lhe ou
não. podia dar-lhe outro uso, como escrever. intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e
nas minhas divagações comparava-o ao que existe. quando a minha avó não
estava a ver, quebrava pequenos pedaços e levava-os no bolso da bata,
os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. dizia a mim mesma que alguma coisa no
coração do mundo (e portanto em mim própria) era assim, negra,
brilhante, aparentemente indestrutível, na realidade apenas cinza.
pensava-o sem temor, pelo contrário. não sei exatamente em quê quando
digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. ser carvão, ser brasa, ser cinza. viver.
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