20 de dezembro de 2014

na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. num braseiro o fogo nunca se levanta. as brasas são atiçadas, trocadas, sopradas e nunca incendeiam. isto fascinava-me, bem como o facto da cozinha inteira ficar quente apesar de não haver fogo mas apenas umas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. portanto, mal chegava o inverno começava a perguntar ¿quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia com um sorriso que nunca mostrava e prolongava a espera dizendo que tínhamos de poupar. depois um dia chegava do colégio e a cozinha estava quente. todo o tempo que podia ficar ali sentada, passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível olhá-las. o calor queimava a cara e fechava os olhos. procurava arranjar estratégias, nenhuma que funcionasse, sobretudo talvez para lidar com a minha própria ansiedade. quando finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando. apesar de tudo, era rápido. demasiado rápido. e havia sempre muitas cinzas, sempre me parecia haver mais cinzas do que inicialmente poderia ter havido carvão. mas as cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas, numa operação difícil e melindrosa, que reunia várias mãos e vários olhares. se as brasas acesas me davam a sensação de participar nelas, a frieza do carvão no saco de papel provocava um outro tipo de curiosidade. podia olhá-lo quanto tempo e sempre que desejasse. podia tocar-lhe ou não. podia dar-lhe outro uso, como escrever. intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o ao que existe. quando a minha avó não estava a ver, quebrava pequenos pedaços e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. dizia a mim mesma que alguma coisa no coração do mundo (e portanto em mim própria) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, na realidade apenas cinza. pensava-o sem temor, pelo contrário. não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. ser carvão, ser brasa, ser cinza. viver.