4 de novembro de 2014
1. caminhar em cima das águas
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Na terra natal tudo se torna subitamente contemporâneo. O que está em cima já não parece estar a meio, o que está em baixo já não parece estar diante e o que está atrás reflete-se na nitidez do que se esboça à frente. Não apetece falar porque só apetece viver. Tenho aqui num pequeno espaço secreto onde não possuo nada e nada me falta, onde encontro uma solidão ainda terna, de grande amplitude, à qual me recolho sempre que a outra me faz soçobrar. Viver, estar em silêncio. A mais pura forma de contemplação é aqui participação, ação, e o gesto mais audaz reveste-se da quietude que marca. No entanto, o ódio da minha origem não se amenizou com o tempo ou com a distância. Que rudimentares são as nossas emoções. Repugna-me a ideia de uma reconciliação, não porque para alimentar essa ilusão narcisista haja necessariamente que tecer laços hipócritas, que haveria, mas porque a origem é a catástrofe a partir da qual a vida recomeça. Apenas do material que sobreviveu, respeitando a gradação das suas temperaturas sensíveis, se pode criar o amanhã.
2 de novembro de 2014
furtivo e mítico, o perfume do betão assemelha-se a uma mistura de jóias e tecidos. tem origem em jardins em miniatura, em constante confronto com o coração das paisagens, onde um fogo escrupuloso arde em consagração à mîse en abyme dos sentidos no espaço. podemos pressenti-lo à superfície de temperamentos mutantes e discretos, que guardam indeléveis traços de paradigmas corporais, como a densidade da dança. entre as suas propriedades encontram-se pouca luz, brutalidade, cigarros e uma língua estrangeira e um dos seus efeitos é a superação da experiência, transformada em trivial, adaptada, inevitável.
sei menos que um animal que guarda a sua distância de aviso na vida. quem parte também aprende isso. e quantas vezes se parte? a cada instante, digo-me. debaixo da pele estão as casas, catástrofes que povoam o espaço como constelações minuciosas, cardíacas. são catástrofes prenunciadas, não como consequências de eventos externos, mas como revelações cujos ciclos de repetição, rotina, regularidade tranquilizadora, lidam com o inquérito repetitivo que impregna os vestígios da memória que nos perseguem. de forma extrema talvez, embora os seus recursos sejam escassos, a orgânica dessas catástrofes é paradoxal: o seu posicionamento não é localizável e mantêm com o espaço uma relação de analogia virtual, apenas existente em potência e nunca em facto.
1 de novembro de 2014
Age Seven
Ay, age seven
Ay, the magnanimous moment of departure
Whatever happened after you,
happened in a mesh of insanity and ignorance.
After you,
the window which was a lively and bright connection
between the bird and us
between the breeze and us
broke
broke
broke
after you,
that earthly doll which did not utter a thing,
nothing but water
water
water
drowned
in water.
After you,
we killed the cricket's voice
we became lured
by the bell ring rising off of the letters of the alphabet
and the whistling of the arms factory.
After you, where our playground was beneath the desk
we graduated from beneath the desks
to behind the desks
and from behind the desks
to top of the desks
and we played on top of the desks
and lost
we lost your color
Aah, age seven.
After you,
we betrayed each other
after you,
we cleansed your memories
by lead particles and splattered blood-drops
off of the plastered temples of alley walls.
after you
we went to the squares
and shouted:
'long live...
and down with....'
and in the clamor of the square
we applauded the little singing coins
which had insidiously come to visit our town.
After you,
us: each other's murderers,
judged love
and while our hearts were anxious in our pockets,
we judged love's share.
After you
we resorted to cemeteries and death was breathing under the grandmother's veil
and death
was that corpulent tree
which the living of this side of the 'origin'
would tie their desire-thread to its weary branches
and the dead of the other side of the 'end'
would paw at its phosphorous roots
and death
was sitting on that sacred mausoleum which had four blue tulips
abruptly lighting up at its four corners.
the sound of the wind is coming
the sound of the wind is coming
Aah, age seven.
I rose up and drank water
and suddenly recollected how the plantations of your youth
became agitated by the swarm of crickets.
how much must one pay?
how much for the growth of this cemented cubicle?
We lost everything we must have lost
we started treading without a lantern
and moon
moon
the kind Feminine
was always there
in the childhood memories of a clay and straw rooftop
and above the young plantations
dreading the swamp of crickets.
How much must one pay?...
Forough Farrokhzad
Ay, age seven
Ay, the magnanimous moment of departure
Whatever happened after you,
happened in a mesh of insanity and ignorance.
After you,
the window which was a lively and bright connection
between the bird and us
between the breeze and us
broke
broke
broke
after you,
that earthly doll which did not utter a thing,
nothing but water
water
water
drowned
in water.
After you,
we killed the cricket's voice
we became lured
by the bell ring rising off of the letters of the alphabet
and the whistling of the arms factory.
After you, where our playground was beneath the desk
we graduated from beneath the desks
to behind the desks
and from behind the desks
to top of the desks
and we played on top of the desks
and lost
we lost your color
Aah, age seven.
After you,
we betrayed each other
after you,
we cleansed your memories
by lead particles and splattered blood-drops
off of the plastered temples of alley walls.
after you
we went to the squares
and shouted:
'long live...
and down with....'
and in the clamor of the square
we applauded the little singing coins
which had insidiously come to visit our town.
After you,
us: each other's murderers,
judged love
and while our hearts were anxious in our pockets,
we judged love's share.
After you
we resorted to cemeteries and death was breathing under the grandmother's veil
and death
was that corpulent tree
which the living of this side of the 'origin'
would tie their desire-thread to its weary branches
and the dead of the other side of the 'end'
would paw at its phosphorous roots
and death
was sitting on that sacred mausoleum which had four blue tulips
abruptly lighting up at its four corners.
the sound of the wind is coming
the sound of the wind is coming
Aah, age seven.
I rose up and drank water
and suddenly recollected how the plantations of your youth
became agitated by the swarm of crickets.
how much must one pay?
how much for the growth of this cemented cubicle?
We lost everything we must have lost
we started treading without a lantern
and moon
moon
the kind Feminine
was always there
in the childhood memories of a clay and straw rooftop
and above the young plantations
dreading the swamp of crickets.
How much must one pay?...
Forough Farrokhzad
31 de outubro de 2014
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
A meio caminho da nossa vida
encontrei-me numa selva obscura
por haver-me perdido da via direita.
Dante Alighieri, A Divina Comédia, primeiras estrofes de Inferno (traduzido por mim que não sei italiano).
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
A meio caminho da nossa vida
encontrei-me numa selva obscura
por haver-me perdido da via direita.
Dante Alighieri, A Divina Comédia, primeiras estrofes de Inferno (traduzido por mim que não sei italiano).
As sombras chinesas que fazíamos no quarto, antes de adormecer, eram o nosso no man's land. Uma terra onde as desmesuras se impunham ao plano da paisagem e voltavam a equacionar as suas hierarquias. Nenhuma soberania a regulava, nem mesmo a dos contornos, constantemente desfeitos para dar lugar a outras formas e sequer mesmo a das formas, pois algumas delas eram extraordinariamente abstratas e os matizes das sombras eram inumeráveis. Por isto mesmo, era uma terra que queríamos habitar, isto é: queríamos transformar-nos nas sombras e que as sombras se transformassem em nós. Só assim poderíamos saber verdadeiramente o que era a vida.
28 de outubro de 2014
O corolário dos sonhos é o massacre pois destinam-se invariavelmente à rutura, violenta como um parto. Talvez por isso tenha aprendido a não me lembrar deles, talvez por isso também não tenha imaginação. Já me rodeia demasiada água a que sobreviver. Se tiver que dizer a verdade no entanto, terei de confessar que lastimo ambos. Sempre que adormeço espero lembrar-me de alguma coisa na manhã seguinte e para começar a escrever tenho de desistir de esperar por uma ideia. Quase nunca me lembro de nada e quase nunca tenho ideias. Vivo primitivamente, presa à necessidade. Não sou falha de vontade, sou falha de indignação. Aos demónios correspondem agora imagens tenazes e brilhantes que não sei dizer se pertencem ao passado, ao futuro ou a nenhum deles.
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