9 de outubro de 2014
7 de outubro de 2014
6 de outubro de 2014
Há sempre uma outra história dentro de uma história. É o caráter do que está separado. Defender a solidão em que se está parece ser a única possibilidade de resgatar univocidade ao que nasceu equívoco. Procuro a agulha perdida entre a palha no chão. Temos de ocupar o tempo com alguma coisa. Quando me sinto demasiado perdida procuro recordar que não é tão importante o que me aconteceu como o que vou fazer com o que me aconteceu. Procuro recordar que a palavra mais importante dessa sentença é a palavra fazer. E então a verdade perde substância. Porque não existe. Atravesso a distância entre o perto e o longe deixando para trás a colisão abrupta das minhas ilusões. O destino dos espetros é serem espetros. Eu, estou aqui.
5 de outubro de 2014
3 de outubro de 2014
Percebo agora que todo o processo de metamorfose consiste, talvez inteiramente, em decadência e deterioração. Não tenho linguagem que me permita descrever o que acontece no núcleo desta transformação. Parece-me idêntico dizer que se trata de um processo terrivelmente violento ou que se assemelha à graciosidade da flor que abre. Toda a regeneração é uma metonímia da morte. O extraordinário está em que a medida da transformação excede a nossa resiliência (e portanto a nossa expetativa) face aos acontecimentos: a transformação tem a medida da evidência. E o princípio da evidência é aniquilar. O futuro oferece-se sempre com opulência mas no absurdo espetro das suas possibilidades, qualquer movimento em direção a ele parece ridículo. A intensidade erótica da metamorfose desaparece, deixando subitamente no seu lugar um ideal romântico de liberdade. Face à ruína, porém, os ideais não portam mistério. Perante a opacidade de um futuro intrincado, a defraudada armadilha do prazer colapsa e nós somos o seu colapso. Se eu já não amo, que paisagem é esta?, pergunta-se, e a imaginação conduz inexoravelmente ao retiro, que apenas mostra a escuridão de onde viemos e um destino abrupto.
Sou austeramente selvagem. Vou perseverando numa atmosfera composta de distâncias sem enigma. Entro como um vulto em casas prontas para serem deixadas porque há no abandono qualquer coisa infinitamente apaziguadora. Pressinto nelas o eco de lembranças que não tenho. Sou apaixonada por essas casas vazias, que flutuam abertas para lá da memória. Elas são o exótico altar da minha infância pois a infância é uma fórmula imaterial, uma fonte geométrica enterrada na revelação genuína. Sou uma mulher e sei que sou essa mulher mais do que sei quem sou. É uma questão de sobrevivência: a linguagem da perdição tem implicações que estão sempre a ser negociadas. Às vezes penso que se estava melhor no cativeiro mas a fatalidade impregna-o de tal maneira que me repugna regressar. Aporto a um voluptuoso silêncio. Não posso afirmar que seja límpido. A minha satisfação está em vê-lo adensar-se e expandir-se. Imperfeitamente.
Sou austeramente selvagem. Vou perseverando numa atmosfera composta de distâncias sem enigma. Entro como um vulto em casas prontas para serem deixadas porque há no abandono qualquer coisa infinitamente apaziguadora. Pressinto nelas o eco de lembranças que não tenho. Sou apaixonada por essas casas vazias, que flutuam abertas para lá da memória. Elas são o exótico altar da minha infância pois a infância é uma fórmula imaterial, uma fonte geométrica enterrada na revelação genuína. Sou uma mulher e sei que sou essa mulher mais do que sei quem sou. É uma questão de sobrevivência: a linguagem da perdição tem implicações que estão sempre a ser negociadas. Às vezes penso que se estava melhor no cativeiro mas a fatalidade impregna-o de tal maneira que me repugna regressar. Aporto a um voluptuoso silêncio. Não posso afirmar que seja límpido. A minha satisfação está em vê-lo adensar-se e expandir-se. Imperfeitamente.
1 de outubro de 2014
na boca silenciosa das mães nasce o sono e o medo de não voltar a acordar. se os filhos falam durante a noite é porque toda a noite as chamam. querem que a mãe lhes explique porque é que estão a cair. querem saber porque é que ela os deixou cair e porque é que o amor não chega para amparar a queda. portanto o amor passa a confundir-se com a desilusão, que nunca é magna o suficiente para alvitrar o desencantamento. então as mães transformam-se na pura noite onde os filhos continuam a chamar. e os filhos regressam para ficar universalmente imóveis à boca delas, a escutar.
Não entendo o desejo que muita gente tem de melhorar o mundo. Absolutamente nada neste mundo salva a vida, muito menos nada que tenha origem no esforço e na vontade humanos. Navegamos num oceano lúdico cujos movimentos e resultado não podemos prever nem controlar. Mas enfim, até os filmes do Ford acabam bem. La vie est une vaste rigolade, e daqui não se passa.
29 de setembro de 2014
Junto à janela, pensava no medo. Pensava que talvez não fôssemos senão o abandono das coisas que podíamos ter sido. A mãe disse Fecha essa porta e voltou a ficar escuro. Não havia sinal de vida. Não havia nenhum sinal de que a vida pudesse trazer consigo alguma redenção. Sentia-se vacilar perante a ideia de resistir com o tempo e tornar-se independente. Tudo isso lhe parecia uma farsa e portanto hesitava. Os sapatos novos e o prato de comida que lhe mostram no final do dia confundem-se, tudo tem o mesmo rosto cansado. Gostaria de fechar a porta a esse trânsito interminável e concentrar-se no funcionamento silencioso da fábrica, como um médico que se fascina pelo que está vivo na ferida. Queria saber mais sobre esse movimento, de uma insaciabilidade imaculada. Mais ninguém parecia dar-lhe importância e isso continua a ser para ele um mistério. Também ninguém podia imaginar quanta desintegração já havia nele nesse dia, em que brincava com um carrinho junto à janela e sonhava com uma embarcação triunfante, às largas no vácuo. O que mais gostava de fazer era de olhar para ela. Não pertencia a ninguém. A madeira era intangível. Tinha fendas através das quais brilhava intensamente. Vogava com uma alegria delirante num horizonte indiviso. Sobre as velas, de veludo carmesim, a loucura pairava, anónima. Era uma embarcação real e inadequada, como a fome, que desprezava tudo à exceção do vento. Assim que, apenas por segui-la com o olhar, já estava embarcado sem saber. Mais tarde falaram-lhe pela primeira vez sobre o fundo do oceano e no mesmo dia mergulhou em direção a ele. Mas só quando muitos anos depois o alcançou pensou por instantes na veleidade daquele impulso. Revoltado e cego, acocorado numa escuridão terna, constatou que era ainda um animal, uma besta que se serve e se enche mas não pode tocar em nada.
27 de setembro de 2014
26 de setembro de 2014
24 de setembro de 2014
Estava há uns dias em convalescença em casa, depois de umas semanas num coma inesperado que, entre outras complicações, resultou numa paragem cardíaca da qual tinha sido difícil regressar. Andava de muletas, tinha um fémur partido, e pouco mais podia fazer senão esperar. Um dia, os meus amigos ligaram-me e disseram-me para estar pronta para sair no dia seguinte cedo. Avisei-os que mal podia andar, onde é que vamos, o que é que vamos fazer, olhem que eu não posso, não disseram. Na verdade eu não tinha vontade de sair de casa. Onde estava melhor era a olhar para nada e que me deixassem estar, sossegada. No dia seguinte vesti qualquer coisa a custo e à pressa, porque eles sempre apareceram. Íamos a qualquer lado de carro.
Lembro-me que a minha primeira surpresa foi sentir que o meu silêncio não era desconfortável dentro do carro. As conversas entre eles eram as mesmas. A intimidade entre nós prevalecia apesar de eu já não saber muito bem onde estava nem quem era. A certa altura vi o mar no horizonte. Estacionaram junto da areia. Saí do carro e eles começaram a caminhar em direção à água. Mas olharam para trás. As dores e a inexperiência com as muletas não me deixavam avançar. Estava encalhada, a olhar para os pés e a preparar-me para me sentar por ali. Eles voltaram para trás, tiraram-me as muletas e dois deles levaram-me ao colo até à beira da água. Ficámos ali até o sol se por.
É tudo.
Lembro-me que a minha primeira surpresa foi sentir que o meu silêncio não era desconfortável dentro do carro. As conversas entre eles eram as mesmas. A intimidade entre nós prevalecia apesar de eu já não saber muito bem onde estava nem quem era. A certa altura vi o mar no horizonte. Estacionaram junto da areia. Saí do carro e eles começaram a caminhar em direção à água. Mas olharam para trás. As dores e a inexperiência com as muletas não me deixavam avançar. Estava encalhada, a olhar para os pés e a preparar-me para me sentar por ali. Eles voltaram para trás, tiraram-me as muletas e dois deles levaram-me ao colo até à beira da água. Ficámos ali até o sol se por.
É tudo.
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