Sob os plátanos, grupos de adolescentes sobem e descem a avenida que vai dar ao mar. Quatro rapazes, três negros e um branco, aproximam-se pela minha esquerda. Como uma mola, o meu olhar é atraído para o rapaz branco, louro, de olhos azuis, com a pele queimada, os ombros direitos e o peito a descoberto no limite de um corpo bem desenhado. Lembra-me o deus grego da praia da Nazaré, e sinto-me abençoada por poder ver aquilo que é único repetir-se. Quando nos cruzamos, ouço-o falar crioulo. «Noutro tempo», concluo no meu choque, «teria causado a minha destruição».
Estou há muito tempo parada à beira-mar quando subitamente, como se fossem algas, dois rapazes são trazidos pela água, um a cada lado dos meus pés. O mar recua e eles, deitados de barriga para baixo na areia, olham um para o outro, riem e num salto correm novamente para o mar, mergulhando de chapa numa onda. Creio que nem viram os meus pés no meio das suas cabeças.
Como são admiráveis estes rapazes! Quanto arriscam.
29 de agosto de 2014
Tenho pena de há muito ter desistido de viver embora também haja privilégio em ter conhecido o íntimo terror da sombra. Voltar a ter um glossário é pois para mim um gesto da mais pura afirmação, todo feito de alegria e certeza. Falhei em tudo e já não tenho vergonha em declarar que amo o que o mundo despreza.
28 de agosto de 2014
27 de agosto de 2014
Quando ainda vivia soterrada, rapei o cabelo porque era a única coisa que podia fazer para afirmar que não pertencia àquele lugar. Tinha uma longa cabeleira loira carregada de caracóis pelo meio das costas e tive de ir a três cabeleireiros para conseguir livrar-me dela. Tinha 17 anos. Perguntaram-me se não queria guardar um caracol para recordação. Coisas assim desesperavam-me. No entanto era delicada, recusei agradecendo. Espantava-me nessa altura, e por vezes ainda me espanto, ao deparar-me com a diferença abissal entre a idade do meu corpo e a minha idade real. Talvez todas as mulheres nasçam velhas e por isso se espantem ao passar diante do seu próprio reflexo. E talvez por isso desejem os filhos. A quem mais passar essa sabedoria, que só se revela na solidão e àquele que se encontra em silêncio?
25 de agosto de 2014
Uma pessoa ofereceu-me um quadro com a imagem que tenho de mim própria. É o perfil de uma mulher sentada que olha para o vazio. Não se vê o seu olhar, não se sabe para onde é dirigido. Está sentada numa cadeira. Ao fundo está um móvel com algumas louças em cima e à direita dele um cortinado. É possível que ela olhe para o espaço para lá de uma janela ou para o espaço que medeia entre si e a janela. Vemos o seu cabelo louro cair sobre os ombros, um vestido azul claro antiquado.
Não tenho outro significado para o amor.
Que perigo maior do que ver o múltiplo unificar-se? O sentido dos nossos gestos escapa-nos. No limite talvez nem exista. Aquilo que defendemos é tenazmente obscuro. Acredito nessa obscuridade, para lá de tudo, uma obscuridade lodosa, inegligenciável, que nos racha como um talhante. O que acontece é precisamente o silêncio. Sou eu esta mulher sentada a olhar para o vazio ou para o espaço além da janela, à espera. Por vezes sorri mas ninguém a vê sorrir. Nunca fala. Ninguém a vê fazer nada senão esperar. O seu mistério é inacessível e abominável, sólido mas aviltante. Se pronunciasse uma palavra, seria para mostrar que não tem vergonha nem orgulho em ser observada. Ela vive onde o cabelo cresce, lento e silencioso território, intocado.
Não tenho outro significado para o amor.
Que perigo maior do que ver o múltiplo unificar-se? O sentido dos nossos gestos escapa-nos. No limite talvez nem exista. Aquilo que defendemos é tenazmente obscuro. Acredito nessa obscuridade, para lá de tudo, uma obscuridade lodosa, inegligenciável, que nos racha como um talhante. O que acontece é precisamente o silêncio. Sou eu esta mulher sentada a olhar para o vazio ou para o espaço além da janela, à espera. Por vezes sorri mas ninguém a vê sorrir. Nunca fala. Ninguém a vê fazer nada senão esperar. O seu mistério é inacessível e abominável, sólido mas aviltante. Se pronunciasse uma palavra, seria para mostrar que não tem vergonha nem orgulho em ser observada. Ela vive onde o cabelo cresce, lento e silencioso território, intocado.
24 de agosto de 2014
23 de agosto de 2014
«Venha cá dona! São artigos de luxo a 5€ para
usar no baile de logo à noite, nem uma sardinha assada consegue comprar a
este preço!», era a cantoria de uma cigana no mercado. Quando voltei para baixo, os artigos de luxo já estavam a
3,5€. As entradas no baile é que devem ser caras. Turista na minha própria terra, esquecida dos costumes e das regras silenciosas (as mais sólidas), meti-me com ela, para elogiar a sua alegria contagiante, mas só uma mulher muito velha a seu lado, provavelmente a mãe, me respondeu. Da bela jovem cigana vestida de negro só recebi um olhar fulminante, que me acertou em cheio num nervo e me matou.
22 de agosto de 2014
I have no memory for things I have learned, nor
things I have read, nor things experienced or heard, neither for people
nor events; I feel that I have experienced nothing, learned nothing,
that I actually know less than the average schoolboy, and that what I do
know is superficial, and that every second question is beyond me. I am
incapable of thinking deliberately; my thoughts run into a wall. I can
grasp the essence of things in isolation, but I am quite incapable of
coherent, unbroken thinking. I can’t even tell a story properly; in
fact, I can scarcely talk.
Franz Kafka
Franz Kafka
20 de agosto de 2014
19 de agosto de 2014
Por vezes surge um ou outro projeto que seria sensato - inteligente - concretizar. Penso neles, por vezes menciono-os a amigos. Tenho através disso a fantasia de estar a produzir um engenhoso e espesso desvio, uma espécie de labirinto onde as sombras mais tenebrosas me colocarão ao abrigo de toda a mediação humana e, com esta fantasia, pareço pretender proteger os meus verdadeiros desígnios. Significa isto que, enquanto penso ou falo neles, não me podia estar mais nas tintas.
Vejo-me nesses momentos como um ser resistente à mudança, misantropo, vil. Não sou uma mulher, não sou um homem. À exceção dos jardins, não quero ir a lado nenhum, nem sequer ao mercado ou ao café. Se sou um animal, sou certamente um dos mais abjetos, se sou louca, os traços da obsessão e do vício fazem parte de mim como sórdidas crostas leprosas. As únicas condições que me interessa criar, têm de me permitir escrever. O resto é areia na boca.
Vejo-me nesses momentos como um ser resistente à mudança, misantropo, vil. Não sou uma mulher, não sou um homem. À exceção dos jardins, não quero ir a lado nenhum, nem sequer ao mercado ou ao café. Se sou um animal, sou certamente um dos mais abjetos, se sou louca, os traços da obsessão e do vício fazem parte de mim como sórdidas crostas leprosas. As únicas condições que me interessa criar, têm de me permitir escrever. O resto é areia na boca.
18 de agosto de 2014
17 de agosto de 2014
12 de agosto de 2014
Emília serviu a bebida com o ar de uma pessoa obrigada a viver entre animais de índole inferior. De olhos postos no balcão, satisfeito por ver algumas gotas transbordarem o copo, Carlos levou-o à boca e disse, enfático e sem a menor hesitação:
- Apparuit iam beatitudo vestra.*
Reinava o silêncio. Para lá da porta da taberna, aglomerados dispersos de árvores, vistas bruscas e irregulares de caminhos sinuosos e uma odiosa e desolada imensidão de terra branca e seca, repleta de bestas e de homens selvagens. Emília esforça-se para que ninguém veja os seus olhos humedecerem. O contraste e a irregularidade da frase fazem-na corar e procura esconder rapidamente o seu choque. Para onde foi levada naquele instante, que tão fugaz e fulgurante passou e que faz agora por esquecer? Como se nela houvesse um dispositivo que acionado a abalasse, dela desconhecido e sobre o qual não tem poder. Que arrogância ter entrado naquela aventura. Tinha pretendido ser pioneira para vir a descobrir que os corpos e a sua lei são tiranos incompassíveis, que nunca oferecem nem paz nem justiça. Considerava-se uma pessoa emocionalmente reservada, distanciada das aflições que consumiam as mulheres com quem conversava no mercado. A verdade é que nem ao cão que com frequência por ali aparecia à procura de comida e a quem os clientes tinham dado nome, se tinha afeiçoado, o que não lhe causava surpresa ou pena. Dentro da sua caixa, via os dias passar perdida em clarividências proféticas que nunca se realizavam e em sonhar com os detalhes sumptuosos de uma casa que, um dia, haveria de ser a sua: a toalha de renda branca, a colcha de lã vermelha, o vaso de cerâmica para ramos de flores que uma vez murchas seriam ainda mais sedutoras, a mesa de madeira com migalhas de um bolo acabado de cozer. Esses detalhes e essas profecias, funcionavam como uma linguagem nova, obscura o suficiente para que pudesse sentir-se protegida por ela. E sempre que Carlos aparecia, parecia ler-lhe os pensamentos.
Carlos era como as miragens: carregava a sua própria atmosfera particular. Havia nele a frieza das altas latitudes, a sofisticação de quem sobreviveu à ruína e ninguém sabe a que mais infortúnios tortuosos. Com uma avassaladora tranquilidade, dirigia-se aos objetos com o mesmo tratamento natural e a mesma perícia com que se dirigia às pessoas, o que lhe dava a reputação de ser estranho. A mistura destes fatores e o facto de nunca variar as suas roupas de viagem, tornavam-no senhor de poucos amigos. No entanto, quando falava, Emília sentia um ardor ainda mais forte do que quando ia à igreja, ao ponto de frequentemente a fazer ruborescer e mesmo, como agora inadmissivelmente acontecia, lacrimejar. Embora verbais e não visuais, os seus discursos despertavam nela uma certa expetativa crítica, como a que experimentava ao ouvir os sermões, com a diferença que o padre seguia sempre uma linha narrativa lúcida, isenta de ambiguidades, da qual era possível retirar uma moral. Se os sermões eram didáticos, os discursos de Carlos eram corrosivos, importunos, e traziam-lhe à tona uma dilaceração espontânea, cuja abrangência era insuportável. Quando não eram os próprios discursos, pois nem sempre os podia compreender, era o tom da sua voz, intensa e fina, a causar-lhe o transtorno de que, à noite, ao regressar a casa, se confessava feliz por não poder escapar.
*Dante Alighieri, La Vita Nuova, II.
- Apparuit iam beatitudo vestra.*
Reinava o silêncio. Para lá da porta da taberna, aglomerados dispersos de árvores, vistas bruscas e irregulares de caminhos sinuosos e uma odiosa e desolada imensidão de terra branca e seca, repleta de bestas e de homens selvagens. Emília esforça-se para que ninguém veja os seus olhos humedecerem. O contraste e a irregularidade da frase fazem-na corar e procura esconder rapidamente o seu choque. Para onde foi levada naquele instante, que tão fugaz e fulgurante passou e que faz agora por esquecer? Como se nela houvesse um dispositivo que acionado a abalasse, dela desconhecido e sobre o qual não tem poder. Que arrogância ter entrado naquela aventura. Tinha pretendido ser pioneira para vir a descobrir que os corpos e a sua lei são tiranos incompassíveis, que nunca oferecem nem paz nem justiça. Considerava-se uma pessoa emocionalmente reservada, distanciada das aflições que consumiam as mulheres com quem conversava no mercado. A verdade é que nem ao cão que com frequência por ali aparecia à procura de comida e a quem os clientes tinham dado nome, se tinha afeiçoado, o que não lhe causava surpresa ou pena. Dentro da sua caixa, via os dias passar perdida em clarividências proféticas que nunca se realizavam e em sonhar com os detalhes sumptuosos de uma casa que, um dia, haveria de ser a sua: a toalha de renda branca, a colcha de lã vermelha, o vaso de cerâmica para ramos de flores que uma vez murchas seriam ainda mais sedutoras, a mesa de madeira com migalhas de um bolo acabado de cozer. Esses detalhes e essas profecias, funcionavam como uma linguagem nova, obscura o suficiente para que pudesse sentir-se protegida por ela. E sempre que Carlos aparecia, parecia ler-lhe os pensamentos.
Carlos era como as miragens: carregava a sua própria atmosfera particular. Havia nele a frieza das altas latitudes, a sofisticação de quem sobreviveu à ruína e ninguém sabe a que mais infortúnios tortuosos. Com uma avassaladora tranquilidade, dirigia-se aos objetos com o mesmo tratamento natural e a mesma perícia com que se dirigia às pessoas, o que lhe dava a reputação de ser estranho. A mistura destes fatores e o facto de nunca variar as suas roupas de viagem, tornavam-no senhor de poucos amigos. No entanto, quando falava, Emília sentia um ardor ainda mais forte do que quando ia à igreja, ao ponto de frequentemente a fazer ruborescer e mesmo, como agora inadmissivelmente acontecia, lacrimejar. Embora verbais e não visuais, os seus discursos despertavam nela uma certa expetativa crítica, como a que experimentava ao ouvir os sermões, com a diferença que o padre seguia sempre uma linha narrativa lúcida, isenta de ambiguidades, da qual era possível retirar uma moral. Se os sermões eram didáticos, os discursos de Carlos eram corrosivos, importunos, e traziam-lhe à tona uma dilaceração espontânea, cuja abrangência era insuportável. Quando não eram os próprios discursos, pois nem sempre os podia compreender, era o tom da sua voz, intensa e fina, a causar-lhe o transtorno de que, à noite, ao regressar a casa, se confessava feliz por não poder escapar.
*Dante Alighieri, La Vita Nuova, II.
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