25 de julho de 2014
24 de julho de 2014
22 de julho de 2014
O cheiro a cera no edifício de habitação das freiras, onde raras alunas entravam e cujos recantos eu conhecia bem. O chão de madeira escura brilhava de uma ponta à outra, por vezes uma freira de joelhos no chão passava num recanto a dar lustro com um pano de lã cinzenta. No guichê da entrada havia telefones negros que quando tocavam podiam ouvir-se cá fora no pátio. Os quartos das freiras, no primeiro andar onde até eu me surpreendia por me deixarem subir. Local de reclusão, de cada um dos lados do corredor os quartos sucediam-se, quase todos iguais: uma cama, uma mesa de cabeceira, uma mesa de camilha ou uma secretária, uma ou várias cadeiras, uma estante. Tudo aquilo me fascinava por ser tão diferente do mundo exterior. Uma poética de clausura, de silêncio, de disciplina e de sobriedade, do ascetismo, da moderação, da frugalidade, de uma alegria com origem na modéstia e da simplicidade. Eram estas as razões que me faziam amar aquele lugar. Perante elas, porém, o que eu sentia era uma paixão veemente que mal conseguia gerir. Tinha o delírio de que naquelas coisas havia uma verdade minha e de poder explicar o que via e sentia, que me parecia em tudo contrário à frugalidade, ao ascetismo e à moderação. A fé estava ausente desse delírio. Eu não sabia nada de Deus.
Diário, 23 de janeiro de 2011.
Diário, 23 de janeiro de 2011.
21 de julho de 2014
Tarde de verão amolecida pelo silêncio e pela solidão. Pegava na bicicleta e saía para onde não me deixavam ir. O carreiro das cobras ia dar à autoestrada, talvez por isso. O meu corpo não era o de uma criança nem o de uma adolescente mas as portas iam-se abrindo. Entrava no carreiro com uma certeza felina, nítida, como uma visão. A terra seca levantava pó à minha passagem e de cada lado havia campos de cultivo a perder de vista, uma casa em ruínas à direita e duas frondosas filas de árvores e arbustos selvagens. No inverno a lama era tanta que havia sítios onde não conseguia passar, obrigando a que subisse a margem e caminhasse mal equilibrada sobre os arbustos. Moldadas na terra, as marcas de pneus da passagem dos tratores continuavam visíveis ao longo do verão. Mas eu pensava que talvez ninguém me pudesse ver: levantava o queixo, estendia o pescoço, abria os ombros. Quando chegava ao fim, um mundo desprotegido, agressivo, a grande incógnita onde eu queria embarcar: para Lisboa vai-se pela esquerda.
20 de julho de 2014
19 de julho de 2014
Na
Madragoa as pessoas são coscuvilheiras, trigueiras, falam a gritar mesmo
quando estão umas ao lado das outras, há buracos na estrada e nos
passeios até à Estrela, falta de contentores de lixo e muita merda de
cão a contornar. Mas no verão as pessoas sentam-se em bancos à porta dos
cafés a conversar, os velhos sentam-se à porta de casa ou ficam a falar
à janela de um lado para o outro da rua, as
raparigas novas sentam-se em degraus a olhar para os telemóveis e falam
em surdina umas com as outras, levantando os olhos quando os rapazes passam à frente delas para ir buscar a bola, e há crianças a
brincar na rua, muitas crianças, em ruas que ficaram enfeitadas desde o
Santo António. O rio é ali em baixo, de vez em quando passa uma gaivota
ou ouve-se a sirene de um barco. Gosto de os ouvir passar mas não quero
ir a mais lugar nenhum.
Ontem quando me deitei estava contente por ter escrito, ainda que ciente de todas as falhas, imperfeições e de todas as coisas que publico embora precisem ainda de muito tempo de trabalho. Hoje nem sequer consigo reler o que escrevi e a par de um duplo sentimento de rejeição, tenho plena consciência que a única coisa sensata a fazer seria apagar o blogue inteiro.
Quando Lora pergunta a Annie, moribunda, o que
se passa com a sua filha, esta responde-lhe Your daughter has a real
problem, ao que Lora contrapõe, desmentindo, que Susie tem tudo e que Your daughter
has a real problem.
O que está presente nesta frase, já no final do filme, não é só a diferença de panorama que a Imitação da Vida (1959, Douglas Sirk) implica, é também a revelação de uma hostilidade mantida para lá das aparências, de uma perante a outra, da branca perante a preta, da dona perante a escrava. Uma hostilidade incompassível nas suas demonstrações que guarda subtilmente a sua prepotência cruel, cirurgicamente aplicada mas aplicada em permanência, até mesmo para lembrar o moribundo.
We shall overcome, dizia ele. Oh yeah.
O que está presente nesta frase, já no final do filme, não é só a diferença de panorama que a Imitação da Vida (1959, Douglas Sirk) implica, é também a revelação de uma hostilidade mantida para lá das aparências, de uma perante a outra, da branca perante a preta, da dona perante a escrava. Uma hostilidade incompassível nas suas demonstrações que guarda subtilmente a sua prepotência cruel, cirurgicamente aplicada mas aplicada em permanência, até mesmo para lembrar o moribundo.
We shall overcome, dizia ele. Oh yeah.
18 de julho de 2014
As horas da minha infância foram maioritariamente preenchidas pela leitura, em casa e na biblioteca da Vila. A minha mãe mandava-nos ir brincar no parque ou na rua e eu ficava a ler atrás da porta da entrada de casa, até à hora em que a minha irmã regressava, suada e suja, e me chamava para entrarmos as duas ao mesmo tempo. Percorria as estantes da biblioteca, escolhia livros ao acaso, outros com referências ao autor, outros ainda porque me interessava saber mais sobre um determinado assunto, e por vezes lia apenas partes ou podia ficar muito tempo com apenas um livro. Muitos livros foram lidos porque apareceram no meio destas buscas de outros livros. Não sei dizer o que me atraía neles mas essa atração era inexorável. E eu cedia-lhe sempre imediatamente.
Havia contudo prateleiras na biblioteca a que não podia aceder, os livros para os adultos, a que apenas conseguia ir deitando a mão mediante uma espera: no ano que vem. Daqui a quatro anos. Mas em casa era raro ouvir dizerem-me Esse não, tão raro que só me lembro de ter acontecido uma vez. Portanto li muitos livros incompreensíveis até começar a conseguir decidir sozinha o tempo que me destinava esperar: aos quinze anos. Aos trinta anos. Muitos nunca os acabei, tantas eram as perguntas que me assolavam que deixava de ter espaço para poder ler. As enciclopédias não me fascinaram, à exceção do livro proibido, a enciclopédia da vida sexual em seis volumes, escondida na gaveta de um móvel no quarto dos meus pais, que li de uma ponta à outra às escondidas. Folheava-as sem grande atenção, lendo aqui e ali uma ou outra entrada ou observando as imagens. Já nessa altura não conseguia acreditar nelas: podem descrever-me um gato, não conhecerei o odor do seu hálito, o seu poder de amar. Dizer-me que A metafísica é o ramo da filosofia que lida com os primeiros princípios mas o que era a filosofia e o que era um princípio e o que era ser primeiro? Queria passar muito tempo com cada uma dessas coisas. Interessavam-me frases e por isso escolhi a literatura. Então o meu coração chegava a doer, eu desaparecia, sentia uma exaltação no rosto, era físico, não queria separar-me daquele objeto.
Quando os meus pais se divorciaram, o meu pai levou com ele muitos dos livros que tinha deixado à espera. A biblioteca sofreu uma inundação e fechou para obras (foi recentemente substituída por uma nova, grande, com muito mais livros, incluindo a maioria daqueles que ficaram submersos e foram restaurados, bonita, voltada para o rio e ao lado de um jardim, mas sem o silêncio que havia naquela que recordo). Foi por volta dessa altura que as coisas mudaram também para mim, comecei a escrever um diário. Não sei exatamente como aconteceu, mais tarde deixei de gostar de ir a bibliotecas. Suspeito que porque me é difícil suportar a atividade e o ruído dos outros leitores, mas sobretudo porque deixei de ter tempo para me perder nelas, tal como acontecia na infância. Tenho nojo de não poder reproduzir esse sentimento de exclusividade, da exclusividade dada a um certo isolamento, e vou renunciando a uma experiência diferente. (Creio que talvez esteja à espera do momento certo). Sei agora, passados todos estes anos, que gosto muito mais de escrever do que de ler. À medida que percebia isso e ia deixando de me ocupar tanto com a leitura, fiz escolhas de vida apenas para que mais tarde pudesse escrever sobre elas e nisso cheguei a apostar a minha vida. Tudo o que faço, vejo, oiço, não faço e não vejo e não oiço se destina à escrita. Os livros sucedem-se, uns com maior outros com menor velocidade, quase sempre vários ao mesmo tempo, embora na realidade só consiga dedicar a minha atenção a um por noite ou por vários dias seguidos. No entanto, quando penso nesses livros que estou a ler, é em escrever que penso. Escrever sobre aquilo. Não esquecer aquilo para mais tarde escrever sobre isso. Aquilo lembra-me aquilo, quero escrever sobre isso. Os modos: isto está em mim. Mas como? Custa-me acrescentar aquele que é o mais terrível de todos os pensamentos: nunca conseguirei dizer aquilo que quero dizer como quero dizer. E a coisa mais bela de todas: aquilo, pode ser uma palavra.
Sinto o tempo fugir. O que me interessa não é a publicação de um livro mas ser o livro, apenas o livro, o tempo do livro, o tempo da escrita e vivo para me aproximar disso. Nenhum outro amor me teve. É possível que seja sempre assim.
Havia contudo prateleiras na biblioteca a que não podia aceder, os livros para os adultos, a que apenas conseguia ir deitando a mão mediante uma espera: no ano que vem. Daqui a quatro anos. Mas em casa era raro ouvir dizerem-me Esse não, tão raro que só me lembro de ter acontecido uma vez. Portanto li muitos livros incompreensíveis até começar a conseguir decidir sozinha o tempo que me destinava esperar: aos quinze anos. Aos trinta anos. Muitos nunca os acabei, tantas eram as perguntas que me assolavam que deixava de ter espaço para poder ler. As enciclopédias não me fascinaram, à exceção do livro proibido, a enciclopédia da vida sexual em seis volumes, escondida na gaveta de um móvel no quarto dos meus pais, que li de uma ponta à outra às escondidas. Folheava-as sem grande atenção, lendo aqui e ali uma ou outra entrada ou observando as imagens. Já nessa altura não conseguia acreditar nelas: podem descrever-me um gato, não conhecerei o odor do seu hálito, o seu poder de amar. Dizer-me que A metafísica é o ramo da filosofia que lida com os primeiros princípios mas o que era a filosofia e o que era um princípio e o que era ser primeiro? Queria passar muito tempo com cada uma dessas coisas. Interessavam-me frases e por isso escolhi a literatura. Então o meu coração chegava a doer, eu desaparecia, sentia uma exaltação no rosto, era físico, não queria separar-me daquele objeto.
Quando os meus pais se divorciaram, o meu pai levou com ele muitos dos livros que tinha deixado à espera. A biblioteca sofreu uma inundação e fechou para obras (foi recentemente substituída por uma nova, grande, com muito mais livros, incluindo a maioria daqueles que ficaram submersos e foram restaurados, bonita, voltada para o rio e ao lado de um jardim, mas sem o silêncio que havia naquela que recordo). Foi por volta dessa altura que as coisas mudaram também para mim, comecei a escrever um diário. Não sei exatamente como aconteceu, mais tarde deixei de gostar de ir a bibliotecas. Suspeito que porque me é difícil suportar a atividade e o ruído dos outros leitores, mas sobretudo porque deixei de ter tempo para me perder nelas, tal como acontecia na infância. Tenho nojo de não poder reproduzir esse sentimento de exclusividade, da exclusividade dada a um certo isolamento, e vou renunciando a uma experiência diferente. (Creio que talvez esteja à espera do momento certo). Sei agora, passados todos estes anos, que gosto muito mais de escrever do que de ler. À medida que percebia isso e ia deixando de me ocupar tanto com a leitura, fiz escolhas de vida apenas para que mais tarde pudesse escrever sobre elas e nisso cheguei a apostar a minha vida. Tudo o que faço, vejo, oiço, não faço e não vejo e não oiço se destina à escrita. Os livros sucedem-se, uns com maior outros com menor velocidade, quase sempre vários ao mesmo tempo, embora na realidade só consiga dedicar a minha atenção a um por noite ou por vários dias seguidos. No entanto, quando penso nesses livros que estou a ler, é em escrever que penso. Escrever sobre aquilo. Não esquecer aquilo para mais tarde escrever sobre isso. Aquilo lembra-me aquilo, quero escrever sobre isso. Os modos: isto está em mim. Mas como? Custa-me acrescentar aquele que é o mais terrível de todos os pensamentos: nunca conseguirei dizer aquilo que quero dizer como quero dizer. E a coisa mais bela de todas: aquilo, pode ser uma palavra.
Sinto o tempo fugir. O que me interessa não é a publicação de um livro mas ser o livro, apenas o livro, o tempo do livro, o tempo da escrita e vivo para me aproximar disso. Nenhum outro amor me teve. É possível que seja sempre assim.
17 de julho de 2014
S. fala às amigas do seu primeiro amor, mantendo em segredo o seu teor involuntário. Procurando exercitar a expressão verosímil e conveniente das suas emoções, sentiu-se à época como um passageiro num comboio que vê desfilar para lá da janela a paisagem inacessível. Disto lembra-se. Do rosto dele, cujo olhar intenso descreve várias vezes com pormenor às amigas, já não. Quando acaba o relato sente-se subitamente esgotada, concentra-se na cor do chá que tem à sua frente na mesa até deixar de ver a chávena. Na verdade, detesta o campo, o rumor constante das árvores e o silêncio universal da noite. Em que lugar o sangue pode ser sangue? Repugna-a a existência de qualquer outro tipo de fidelidade, como a repugna a intenção de ter filhos. A hortelã cresceu no canteiro em dois dias mais do que no ano inteiro dentro do vaso e, porém débil, o seu perfume começou finalmente a aperceber-se à passagem pelo quintal quando se entra em casa. Hoje de manhã havia minúsculos botões ainda fechados, possivelmente nos próximos dias haverá mais. Talvez as raízes se espalhem por todo o quintal e invadam os outros canteiros. E por baixo da casa também, onde S. fará ninho com os ratos, invisível e muda. F. chamou-a esta manhã à saída, disse-lhe qualquer coisa que não entendeu e que não pediu para repetir, pois nem involuntariamente poderia responder ao seu sorriso.
16 de julho de 2014
Ter envelhecido precocemente não me trouxe mágoa senão por não poder surpreender-me com a mudança. Toda a tristeza ou alegria que viriam associadas a ela ocorreram num momento isolado, transformador, ao qual seria inútil regressar. Assim, quando passados muitos anos, ao subir as escadas da casa azul da minha avó vi apenas casas da varanda inundada de sol, e que a amendoeira tinha desaparecido, e que uma das metades da própria varanda tinha uma divisória de alumínio branco, percebi apenas que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria.
15 de julho de 2014
escrever sobre a memória . sobre como não é o esquecimento que nos devora mas sim o modo como vemos o mundo . o modo como vemos o mundo tem a configuração do nosso esquecimento . aquilo que lembramos é essa configuração . a memória é a forma da perceção de nós próprios por nós próprios no mundo . o esquecimento não existe . aquilo que lembramos é a mera subtração daquilo que não queremos lembrar do mundo . tudo é lembrança . percebo sempre isto quando faço exercícios de memória.
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