26 de julho de 2013

Em 1995 parti o fémur e em consequência disso descobri que, para além de um crânio negróide e não caucasiano, uma lordose lombar acentuada e mais duas ou três características que não vale agora a pena mencionar, herdei da raça negra, por linhagem do meu avô materno, uma coisa chamada quelóides: uma lesão saliente que pode ocorrer na cicatrização e que por ser muito comum nas peles negras, algumas tribos africanas usam para fazer uma espécie de desenhos na pele, como uma tatuagem sem tinta. Portanto, depois da operação e apesar de duas operações plásticas, fiquei com várias cicatrizes grandes no corpo, isto é, compridas, grossas e escuras, encontrando-se a maior de todas elas na nádega direita.
Eu tinha 19 anos e isto arrasou-me. Não deixava que ninguém visse as cicatrizes que eu própria tinha dificuldade em observar e não conseguia aceitar o corpo que, anteriormente angélico, estava subitamente marcado para lá de Bagdad. Ainda por cima, por serem diferentes de tudo o que alguma vez tinha visto, era como se aquelas cicatrizes trouxessem à visão algo daquilo que, por doer demais, preferiríamos não nomear. Era como se agora eu fosse obrigada a nomear uma coisa a que nunca deveria ter sido dada existência.
No Verão do ano seguinte, fiz uma pequena viagem com uma amiga e passámos uns dias na praia da Nazaré, que ela não conhecia. Apesar do calor, e apesar do discurso dissuasor da minha amiga, lá andava eu com o meu pano sobre o corpo, que só tirava à beira-mar para entrar na água. Tínhamos acabado de chegar à praia, após um passeio pelo labirinto da Vila. Naquele dia, o céu cinzento tornava o calor ainda mais intenso. Estávamos a ler, à espera do sol para ir tomar banho. Deixei-a frente ao mar. Levantei-me para ir à casa-de-banho e atravessei num passo lento a praia até às casas-de-banho públicas perto das rochas. Senti-me grata por a praia ainda estar quase deserta àquela hora. Quando comecei a lavar as mãos, pousei o pano no lavatório ao lado e entrou uma mulher com o filho, uma criança com cerca de 3 ou 4 anos. Ao passar por mim, o miúdo toca em cheio na minha grande cicatriz sobre a nádega direita e diz: «- Qué ito?» Olhei para os seus olhos enormes à espera de uma resposta e tranquilizei a mãe que o arrebatava para longe do meu corpo. Sorri e respondi: «- É uma cicatriz.» Ele continuou: «- O qué uma ticatiz?» E eu continuei a responder: «- É quando fazemos uma ferida grande e depois temos de voltar a fechar. Fica lá a marca. Tu também já fizeste uma ferida não já?» Ele disse logo que sim. Satisfeito com a resposta, continuou a sua vida e voltou-se para a mãe para que ela o levasse à casa-de-banho. Nunca nos chegámos a despedir.
A sua inocência deixou-me perplexa. Enquanto vestia o pano, já sem muita convicção, pensava que de facto era apenas isso, nada mais do que isso: uma cicatriz. Voltei a atravessar o areal. O sol começava a espreitar. O mar brilhava. Entre mais um e outro pensamento, voltei a sorrir e retirei o pano enquanto caminhava. Foi nesse momento que dei o salto.

24 de julho de 2013

Pessoas com sofás. Pessoas que trazem um sofá para casa. Primeiro pensam que precisam de um sofá. Há um espaço vazio na sala, onde devia estar um sofá. Ou então o sofá está velho, gasto, tem nódoas, um pé partido. Imaginam um sofá novo, com um padrão novo e pés novos. Vão à loja, procuram na Internet pelo sofá certo. Nesse momento o sofá, a coisa que preenche o espaço, já começou a existir. Depois encontram um sofá que corresponde ao que querem ter. Pagam. Pagam também o transporte, dois homens e uma carrinha trazem o sofá no dia e na hora combinados até ao destino. O sofá novo chega, embrulhado em plástico bolha. Ter um sofá é um momento sério na vida. A vida acaba no instante em que os homens que fizeram o transporte saem e se contempla o sofá adquirido, da mesma maneira que um rio acaba quando chega ao mar e que um dia acaba no crepúsculo. Um sofá novo é o princípio de qualquer coisa que já acabou.

23 de julho de 2013

Num Colégio de freiras, como podem imaginar, as histórias são aos milhares. Aquilo que cá fora poderia ser um detalhe disperso entre outros detalhes insignificantes, lá dentro torna-se acontecimento excepcional, singular ou mesmo assombroso.
Na altura em que as meninas percebem que podem ser mulheres, não havia meninos no meu Colégio. Os meninos eram seres de outro mundo, do outro lado do muro, que nos despertavam curiosidade e sentimentos incompreensíveis e inomináveis, como o desejo. Portanto entre nós, as meninas, não se falava de meninos, mas sim daquilo que nos poderia conduzir aos meninos. Por exemplo: um dia entrei no recinto atrasada e as raparigas da minha turma estavam numa roda, muito apertada, a falar. Entrei na roda a pensar que alguém tinha trazido um brinquedo novo para o recreio, para descobrir que uma delas tinha estado a ver uma Enciclopédia da Vida Sexual, dos pais, e sabia duas coisas: o que era o sexo e como dar um beijo na boca. No intervalo seguinte, os segredos seriam desvendados.
Ela desenhou na areia do chão o sexo de uma mulher (parecia um figo) e o sexo de um homem (não percebi) e explicou como se fazia. Depois, explicou que para dar um beijo na boca tinha de se usar a língua. E isso foi o fim. «A língua?????». Isso fez-nos esquecer imediatamente a primeira parte. Por muito que ela nos repetisse o que tinha lido, nenhuma de nós conseguia perceber como era possível que os adultos andassem a fazer uma coisa tão nojenta e depois nos dissessem para não fazer isto ou aquilo. Qual era a moral? Perante a nossa confusão, a minha colega de turma encostou o braço à boca e simulou um beijo contra a pele. Seguiram-se vários minutos de silêncio. A campainha tocou enquanto outras colegas procuravam repetir a simulação e os braços já andavam de boca em boca. Eu não me conseguia decidir entre a repulsa e o pudor e mantive-me imóvel a olhar para elas. Como em muitas outras situações, de repente, já não me interessavam os beijos na boca. Estava apenas a observar aquelas raparigas lambuzarem os braços umas das outras à procura de um beijo que não tardaria a chegar, e via beleza.
Enquanto episódios como este se sucediam, os rapazes faziam fila com as suas bicicletas à porta do Colégio. Cada dia eram mais numerosos. À porta do Colégio, do outro lado da rua, havia uma casa amarela, como um muro e um portão. De cada lado da casa, duas ruas com árvores, que iam ambas dar a minha casa. A rua principal, a que passava entre a casa amarela e o Colégio, dava para um lado para a saída da cidade e para o outro para o centro. Eles subiam estas três ruas, à hora do toque de saída, estacionavam as bicicletas no muro da casa amarela e encostavam-se ao muro, ao lado das suas magníficas bicicletas. Ficavam a olhar para nós, do outro lado da estrada, enquanto saíamos. E nós a olhar para eles. Nós saíamos com a bata azul, parte obrigatória de um regime de regras que era proibido quebrar até atravessar o portão. E a bata era feia, comprida e uma bata, ou seja, tapava tudo menos a cabeça. Um dia, alguém teve uma ideia: «tragam fita cola». Encontrámo-nos cada uma com o seu rolo de fita cola no jardim antes do portão da saída, cujas sebes eram altas. Rapidamente, cortámos pequenas partes de fita, subimos a bata e prendemos o pano acima do joelho. Foi uma saída gloriosa, pelo menos para nós. Depois era preciso não esquecer retirar a fita cola antes de entrar em casa. Aquilo foi acontecendo assim, semanas após semanas, até se desenhar mais um corredor de possibilidades.
O verão estava a chegar e, apesar das batas subirem todos os dias mais um bocadinho, e das roupas por baixo serem cada vez mais extravagantes, ainda ninguém conhecia os rapazes. Lá dentro, durante o dia, as estratégias que elaborávamos eram verdadeiramente kafkianas e por isso nenhuma com aplicação prática. Um dia, não sei o que me deu, já no portão de saída, pensei «E se eu atravessar a estrada?». Foi como se um raio me tivesse caído em cima e digo-o assim porque me lembro perfeitamente da luz desse fim de tarde, com a parede branca do Colégio e a da casa amarela a refletirem sobre a estrada e brilhos como estrelas através da copa das árvores. Assim como o pensei, o fiz. As meninas pararam, os meninos puseram-se em sentido e a meio da passadeira eu já pensava «Meu deus, o que é que eu vou dizer». Aproximei-me de um deles (o que tinha a bicicleta mais fixe, toda preta). Ele, o Jorge, e outro rapaz ao seu lado, o Luís, acompanharam-me a casa, éramos vizinhos. No dia a seguir fomos os três andar de bicicleta.

22 de julho de 2013

Até ao 9º ano fiz cábulas para passar a Matemática. Não é isso: estudava que me desunhava. Mas tinha muitas perguntas e os professores não tinham paciência para ouvir as perguntas quanto mais para lhes responder. Sem perceber os mecanismos básicos, fui perdendo o interesse, embora sentisse uma enorme amargura por não conseguir dominar a matéria. Por isso quando cheguei ao 9º ano, preparava-me para a guerra.
O meu professor nesse ano chamava-se Carlos Martins. Quando na primeira aula estávamos finalmente todos sentados, desenhou uma linha recta a atravessar os dois quadros da sala de aula e perguntou:

- O que é isto?

Sou uma pessoa de desafios e a pergunta deixou-me em silêncio, com os olhos fixados no rosto dele, que olhou brevemente para nós e logo se foi sentar à sua carteira. Esperei ver um sorriso provocador, alguma ironia, a arrogância de quem detém um saber, mas não encontrei nenhum deles. Isso deixou-me perplexa. Eu queria saber o que era aquela linha recta mas também quem era aquela pessoa que me lançava a pergunta, em vez de se lançar como um comboio na matéria.
Alguns braços levantaram-se mas passado uns minutos já todos falavam ao mesmo tempo. E ninguém acertava. Alguns berravam «uma linha recta» como se o tom da voz fosse dar-lhes razão. Eu não disse nada. Simplesmente não tive nenhuma ideia. A dada altura, sempre com a mesma expressão incógnita, ele levanta-se, dirige-se para o quadro, aponta para a linha recta e diz:

- Isto é o infinito.

O meu coração estalou para além das fronteiras da cidade, ou seja, para além daquilo que conhecia. E fui eu quem sorriu. Ouvi-o depois explicar porquê, o que passava pela diferença entre uma linha recta e uma circunferência. Não sei como, percebi tudo.
Quando na aula seguinte tivemos de fazer o primeiro exercício, arrisquei. Fiz uma pergunta. Uma pergunta muito parva, sobre qualquer coisa que eu já devia saber há muito tempo. Ele nem sequer olhou para mim. Explicou com muita calma como se fazia, só a mim, com o tronco inclinado sobre o meu caderno. Indicou-me onde podia procurar exercícios sobre isso para fazer em casa. E eu procurei e fiz muitos exercícios e continuei a fazer perguntas. Era um professor extraordinário. Contou-nos muitas histórias sobre a sua vida, muitas delas difíceis, como a do dia em que, depois de se perder do seu batalhão na Guerra Colonial, com outras duas ou três pessoas (já não tenho a certeza), teve de sobreviver na selva durante semanas sem nada para beber ou comer. Comeu raízes, bebeu o seu mijo, encontrou o caminho.
Eu sempre fiz parte das turmas mais difíceis da escola. Não havia dia em que não houvesse um festival, fosse porque várias pessoas íam para a rua, porque alguém decidia fumar dentro da sala ou saltar pela janela para ir ao café, porque alguém decidia tirar as calças e as cuecas em cima do balcão da aula de físico-química, porque se falava, porque se levavam baratas para correr maratonas em cima das mesas. Aquele professor não tinha problemas connosco.
Entretanto já me esqueci de tudo o que aprendi menos da véspera do primeiro teste em que, depois de fazer a cábula, decidi não a levar. E do infinito.

21 de julho de 2013

A escola primária onde eu andei tinha um recreio enorme, cheio de labirintos, jogos, locais proibidos, locais perigosos, zonas vazias, sombra e sol, bancos compridos onde nos podíamos sentar todos juntos e bancos isolados que ninguém abordava quando estavam ocupados, canteiros e árvores, areia e pedras e até uma zona de fuga, que quase ninguém conhecia, e que dava acesso aos campos de cultivo por detrás da escola e através deles (para quem conhecesse o caminho), acesso à cidade.
Não me lembro quanto tempo durava o intervalo maior, mas pareciam ser horas, de resto, insuficientes. A campainha tocava e nós voltámos ao ponto exato onde a brincadeira tinha sido deixada no intervalo anterior. Mas para além do rigor, o que havia era sobretudo um envolvimento que nos deixava absolutamente absorvidos pelo que na brincadeira era ocasionado. Éramos atentos. Crescíamos rapidamente, e todos os planos, todas as percepções eram desenterradas aí.
Um dia, não sei como nem porquê, algo mudou. Entre dois intervalos, era como se alguém tivesse decidido alguma coisa sem me avisar: os meninos começaram a perseguir as meninas, pedindo-lhes que lhes mostrassem as cuecas. De repente criaram-se dois grupos e as meninas passaram a ter de fugir dos rapazes, que nos perseguiam e, como máquinas programadas para fazer apenas uma coisa, tentavam convencer-nos a mostrar-lhes as cuecas. Quando jogávamos speedball ou vólei ou à macaca, lá estavam eles, preparados para nos tocar subtil e inapropriadamente.
De início estávamos apenas surpreendidas pela reviravolta e achámos que duraria pouco. Mas passado uns dias a situação começou a mudar. A insistência tornou-se invasiva, repetitiva e chata. E fundamentalmente, já ninguém brincava. Então decidi agir.
Entre o fim de um intervalo e a hora de aulas que se seguiu, elaborei o meu plano. Antes de entrarmos cada um na sua sala, reuni os rapazes e pedi-lhes à pressa que no intervalo seguinte se encontrassem comigo à porta das casas de banho atrás do pavilhão desportivo. No intervalo corri para o local na expectativa da minha convocatória ter funcionado ou não, mas lá estavam eles. Expliquei-lhes então que tinha uma proposta a fazer-lhes, que era a seguinte: uma das casas de banho (a das meninas justamente) tinha um guardanapo no lugar da fechadura, que tinha caído, e nunca tinha sido arranjada. Eu iria entrar na casa de banho, ficar de pé, subir a saia e tirar o guardanapo para que cada menino pudesse espreitar pelo buraco da fechadura e ver as minhas cuecas. Em troca (não há almoços grátis), eles nunca mais podiam chatear as meninas.
Eu tinha umas cuecas do rato Mickey. E o resto é história.

20 de julho de 2013

Num certo ponto de maturidade, a pele do pêssego não se remove à faca.

17 de julho de 2013

Vivi com uma reprodução de um quadro de Rembrandt (The Mill, 1645-1648) até aos 18 anos. Lembro-me vagamente do dia em que chegou. Primeiro era apenas um objecto entre outros objectos acabados de adquirir. Só que este objecto levantou voo até à parede. E tinha coisas lá dentro. A minha mãe não gostava e disseram-me que o meu pai é que tinha insistido para o trazer. Lembro-me de achar que isso é que era o amor.
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.

*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).

15 de julho de 2013

Que horizonte tão vasto.

10 de julho de 2013

Esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.

10 de junho de 2013

Acho bem que se veja o Harry Potter e o Chris de Marker logo a seguir e se veja pornografia e se coma torrão de alicante e farturas e se vá à feira do livro e se esteja todo o dia no Facebook a perder tempo e se mande os filhos para os avós e se jogue wee com os filhos e se descubra que afinal o nosso destino de sonho não é a Nova Zelândia mas sim os Vales secos de McMurdo e se perca a cabeça com uma coisa simples porque isso é que é o amor e se invente uma palavra e se fume como um parvo e se pegue no carro para fugir e se desligue a televisão e se diga palavrões ao Aníbal na televisão e se tomem banhos de imersão de 4 horas e me convidem que eu não tenho banheira. E acho mal de toda a gente que disser mal.
Em frente à estação de Santo Amaro de Oeiras, encontro o café «Carioca's». As duas mesas da esplanada estão ocupadas respectivamente por duas mulheres a fazer manicure uma à outra (o cheiro do verniz chega à estrada) e por um grupo de mulheres que descansam as pernas em cima das pernas umas das outras. Entro e o deslumbre completa-se: em todas as prateleiras só há copos de cerveja e cerveja. Salva-se uma prateleira dentro da vitrina que tem bolo de frango, bolo de carne, bolo de galinha e bolo de queijo. A prateleira abaixo dessa tem copos, muitos copos e canecas, no frio claro, como é que ninguém tinha pensado nisso antes. As pessoas tratam-me como se eu fosse a rainha de Calcutá, não só o casal que me atende ao balcão mas também aquelas com quem me cruzo até chegar ao balcão. A música que se ouve é um chorinho sertanejo seguido de um chorinho sertanejo, se é que eu sei o que é um chorinho sertanejo mas na parede há um quadro com a letra da música da Adriana Calcanhoto. Na estação não se ouve uma mosca.

24 de maio de 2013

Encontro no Facebook uma fotografia que é para mim uma representação do horror, como algumas que conhecemos do Holocausto, de outras guerras e genocídios e de micro acontecimentos que se tornaram macro imagens através da comunicação social e da internet. Trata-se de uma imagem que chocou o mundo há alguns anos, quando os timorenses lutavam pela sua independência. Eu estava em França, e portanto afastada das lutas solidárias que se desenvolveram em Portugal, até à libertação. Procurava notícias nos jornais como quem procura água no deserto. Vi-a numa revista técnica de fotografia, fazia parte de uma reportagem de páginas centrais. Penso que nessa noite não consegui dormir ou não consegui dormir bem. Com a revista na mão sem o intuito de a comprar, li o pequeno texto que pairava ao lado da imagem e levei-a na garganta tentando acreditar. Uma pessoa trincava uma perna humana na parte da tíbia, segurando o pé acima da cabeça. O pequeno texto identificava a perna como tendo pertencido a um timorense e a pessoa que a trincava como pertencente às milícias armadas indonésias. Os guerreiros desciam às aldeias vindos da montanha armados com catanas e depois da matança, guardavam partes de corpos como amuleto ou como troféu. O contexto sendo inimaginável, para mim tratava-se de uma imagem transformadora. O possível tornou-se nesse dia, e nessa noite, uma escolha. Volto a vê-la hoje, catorze anos depois, numa página no Facebook como capa de um CD. Há qualquer coisa de puro (esse nome só como dizia a Duras) no facto de estar a envelhecer.

25 de abril de 2013

Acho bem que se dance muito no dia 25. E que se vá à praia. Que se passeie nos jardins e se convide a pessoa que desde a Primavera passada se queria convidar. Que se leia a tarde inteira com o telemóvel desligado. Que se almoce com a família. Que se passe o dia entre filmes e sesta. Que se vá ao cinema. Que se vá ao teatro. Que se saia com uns amigos para comer caracóis e beber jolas. Que se faça meditação a tarde inteira. Que se penteie os gatos e se mime os gatos e se brinque com os gatos. Que se passeiem os cães à beira-rio. Que se passeiem os cágados. Que se desenhe, que se escreva, que se oiça música, que se compre música que se faça música. Que alguém me ofereça um cartaz destes. Acho bem que se faça amor da madrugada à noite do dia 25. E acho mal de toda a gente que disser mal.

23 de abril de 2013

Oiço muitas vezes falar da extraordinária capacidade dos bichos de compreenderem a linguagem humana. Dez, cem, mil palavras, uma palavra que seja, parece sempre surpreendente. Nunca oiço falar de como é extraordinário uma pessoa perceber o que o miar de um gato significa.

15 de abril de 2013

Abandonei a festa como se fugisse de um lugar assolado pela doença e pela morte. Uma obscuridade deformava monstruosamente a linguagem, os rostos e os gestos. Havia medo. Havia ganância, futilidade, mentira, ilusão, uma miséria intolerável como um pesadelo. Sono, delírio, a gestação de crimes profanos. Saí para respirar mas durante algum tempo o ar pareceu-me pútrido como o ar da cama onde transpirámos com febre, a cama que nos foi estranha ao regressar desses pesadelos. Como num delírio febril, residia a suspeita, ou a intuição, de que a pestilência invadia a vigília e vigiava.
Mais tarde, já a caminho de casa, senti-me devolvida a um tempo adolescente, onde a dor e a carne florescem. Esse vasto território onde a luz é permanentemente arrancada à sombra.