14 de novembro de 2017

há anos atrás, escrevi na parede da minha cozinha com uma caneta de acetato: NEM DEVER, NEM CULPA, NEM NECESSIDADE. num dos almoços que fiz com amigos cá em casa, uma das convidadas sentou-se perto dessa parede. atenta e curiosa, mal se tinha sentado já me perguntava, com uma voz delicada, muito magra, os olhos mais sujos de tinta do que pintados, porquê a necessidade? porque se precisa?, retorqui, um pouco provocadora, um pouco a achar que podia ensinar alguma coisa. depois de pensar um pouco, perguntou-me se era de coisas materiais de que falávamos. respondi-lhe que acho errado fazer-se o que quer que seja por dever, por sentimento de culpa ou por necessidade. o interesse jaz sob os nossos atos de formas não visíveis, contudo, profundamente transformadoras e é preciso estar sempre a desfazer aquilo que se constrói. satisfeita com a resposta, sorriu levemente, como se tivesse sido subitamente aliviada de um peso de séculos. foi porém nesse momento que realizei que ninguém que entre na minha cozinha pergunta sobre o dever ou sobre a culpa. e não é tanto que essas palavras estejam carregadas de negatividade, mas porque é que a necessidade não está também. o que é a necessidade? pode ser caracterizada por uma falta, como é o caso da pobreza, como um ato de força maior, coisa impossível de evitar, ou pelo seu lado biológico, no caso da urina e das fezes. em todas essas determinações, esquecemo-nos no entanto da sua oposição a contingente e livre. na Metafísica, Aristóteles define como necessidade aquilo que não pode ser ou deixar de ser ou ser de outra maneira, como respirar e comer. a necessidade é aí, também, condição de alcançar o bem e de evitar o mal e ainda, o que nos é imposto contra vontade. necessários são por outrem o espaço e o tempo, categorias definidas por Kant na sua Crítica, que assim as predica como universais. ora, oposto a universal, está o particular, o indivíduo, com a sua constelação de maneiras amorais. o espaço e o tempo são relativos a este e não o contrário: ninguém está no espaço e no tempo, são o espaço e o tempo que estão em nós. a necessidade é vista como positiva, porque o esquecemos.