12 de novembro de 2017
eu era a única rapariga no grupo. íamos sempre à Praça e depois sempre ao mesmo café, num beco perto de minha casa. o café tinha duas salas, a primeira com mesas e balcão, mais pequena e escura, a segunda com jogos, fortemente iluminada. jogávamos snooker, tetris e matraquilhos, bebíamos cerveja, comíamos tremoços. as nossas bandas eram os The Cure, os Stone Roses, os Violent Femmes, os Joy Division, os Velvet Underground, os Pixies. quando a minha irmã começou a namorar com um dos meus amigos, eu ainda pensava que não era nem bonita nem interessante, simplesmente não pensava nisso, era uma entre iguais. estava longe de imaginar por isso que, quando um dos rapazes me convidou para ir dar um passeio, tinha outra carta na manga. fomos de noite, no carro dele, conduziu até sairmos da cidade, atravessando a aldeia onde ele vivia até chegar ao campo. entrou com o carro por um caminho de terra e estacionou no meio das oliveiras. quando saímos do carro, eis que tira uma guitarra da bagageira e começa a tocar. não fazia a mais pequena ideia que sabia tocar. cantou o Sweet Jane, e bem. no fim, perante a minha estupefação, beijou-me. estava frio, a lua brilhava. disse-lhe que nunca tinha pensado que ele me achasse piada e ele respondeu com um elogio que me coíbo de reproduzir. surpreendeu-me que, para além da sua galanteria, houvesse também respeito na atitude dele. não andámos muito tempo, éramos amigos mais do que amantes, mas foi com ele que vivi o que de mais próximo conheço à tranquilidade numa relação amorosa. havia entre nós uma delicadeza e um sentido de proteção que não voltei a encontrar. eram, no entanto, apenas aparentemente significativos. a paixão nunca é neutra, necessita de qualquer coisa de desumano para se pronunciar. quando acabámos, a minha mãe ficou um pouco desiludida, percebi que esperava que casasse com ele. secretamente, contudo, eu tinha percebido que preferia lugares ambíguos, incompreensíveis até, mais arbitrários, irregulares e imprecisos. era aí que irremediavelmente podia aperfeiçoar o meu poder.