10 de novembro de 2017

não sou culta. a vontade e a determinação necessárias para fugir ao mundo, refugiando-me nos livros, nos cinemas ou nas conferências, nunca foram mais fortes do que a satisfação de o compreender através da intuição da experiência direta, à exceção porventura da infância, cuja grande parte foi vivida com a cabeça enfiada em livros de toda a espécie, trazidos da biblioteca ou escolhidos de uma das estantes onde o meu pai os guardava. mesmo aí, deixava-me absorver por todo o tipo de contemplações, como por exemplo das expressões das pessoas numa conversa, de quadros, da luz ou da rua deserta à noite. embora aborde as coisas com enorme curiosidade, a minha imaginação, necessária para reter qualquer tipo de informação, é abstrata e mítica, com pouca consideração pela verdade no seu sentido técnico ou histórico. tenho pena, sobretudo nas fases em que escrevo pouco, pois sinto a falta de um corpo de ideias, e tenho vergonha, pois fico excluída da comunidade. é nessas alturas que procuro atualizar-me sobre os acontecimentos mundiais, sobre música, gramática e vocabulário na minha ou noutras línguas, filosofia, artes plásticas, poesia, literatura, política e até mesmo informática. fora isso, não tenho televisão, deixei de comprar jornais e, embora leia algumas notícias na internet, no melhor dos mundos vou menos ou deixo de ir ao facebook, leio mais, escrevo mais, observo mais, oiço a mesma música vezes seguidas dias a fio, desenho, lanço-me.
a cultura é uma dádiva. há contudo uma diferença entre o que e o quê: o conteúdo é sempre mais importante do que o como. daí que não importe quem escreveu nem como escreveu, mas sim o que escreveu. a complexidade e a simplicidade são encontros vindos dos lugares mais surpreendentes, que podem deparar-se com a doçura da nossa aceitação ou com o desdém da nossa recusa que, em momentos diferentes da vida, vamos experimentando. que peso têm as nossas escolhas nesse processo? até que ponto não estamos condenados a ficar carentes da completa erudição por impotência? quando escrevo, o conhecimento brota espontaneamente do silêncio e sou como um vidente que trilha pela noite. há palavras que surgem sem eu as conhecer e que, como pura magia, dão a ver o mundo como ele existe em nós, revelando quer os espaços esquecidos quer os que mais nos atormentam e ainda, entre uns e outros, tão significativa que é, a panóplia de lugares-comuns, banais, secretos, que constituem a nossa vida interior. a minha metodologia é insensível a justificações, de forma, pode dizer-se, intolerável. até o homem mais hábil e informado se sente inseguro a perscrutar o passado ou a prever o futuro: a história é sempre confusão e escrúpulo, como um sonho.