Quantas palavras são impronunciáveis, mesmo na intimidade de um casal que se ama, e como é elevado o risco de outros as pronunciarem, destruindo-o.
Elena Ferrante, História da Menina Perdida.
28 de fevereiro de 2017
23 de fevereiro de 2017
Ela ensinou-me a ver. Lembro-me do seu semblante uma manhã, muito cedo, no autocarro que nos levava de casa dela à faculdade, cheio de fumo de tabaco e de pessoas meio adormecidas. Levava os phones, tinha o cabelo comprido até ao fundo das costas e um rosto de Modigliani, muito branco e cheio de sardas. Enquanto roía as unhas, olhava para mim, sempre nos olhos, para a paisagem que se transformava ou para os outros transeuntes, em silêncio e semicerrando os olhos. Olhava para ela e pensava como gostava de todas essas particularidades, de a descobrir todos os dias. Cheia de admiração, perguntava-me o que via ela em mim quando me olhava nos olhos. Achava-me transparente e não me importava. Era porventura a única pessoa que não me importava que me visse pois, para mim, ela via e dizia a verdade, o que fazia dela uma entidade quase divina, que eu protegia e defendia em todos os momentos, colocando-me ao mesmo tempo em desfavor. Eu era o que ela via e portanto precisava dela para ser. Um dia disse-me «És tão pura que até...» e não terminou a frase, não sei exatamente porquê, embora me parecesse que fosse dizer qualquer coisa tão negativa, que ela própria ficou a pensar porque queria dizer aquilo. Foi a única vez que deixou uma frase por terminar e, enquanto baixava a cabeça para não olhar para mim, eu não disse nada, não lhe perguntei porque dizia aquilo, não lhe perguntei o que estava a pensar. Sabia que era verdade, mesmo sem o remate. Ao lado dela eu Era, e, porque ela me estimava, passei a ver o mundo e a mim mesma através dos seus olhos: forte, definida, grande, com poder. O que cumpria o meu objetivo de me desligar do desterro onde tinha nascido, onde nada era possível e eu não passava de um fantasma preso num limbo, a definhar. Contudo, ao seu lado, a minha luz extinguia-se um pouco, assim eu o achava. Se eu era bonita, ela era mais, se eu era inteligente, ela era mais, se eu era peculiar, ela era mais. A minha falta de confiança era tal que, se não fosse pelo seu exemplo, talvez nunca tivesse terminado o primeiro ano da licenciatura, quando tive de escrever cinco trabalhos de final de ano. Lembro-me em particular do que escrevemos para a nossa disciplina preferida. Ela trabalhou muito tempo e escreveu um trabalho com cem páginas, que, sendo o primeiro, nos deixou a todos perplexos. Lembro-me do seu sorriso ao terminar, de um certo desdém e orgulho. E lembro-me do seu sorriso constrangido enquanto dizia «Estás a ver?» quando recebemos as notas, eu um ponto a menos, por um trabalho escrito à pressa com cerca de dez páginas.
Posso chamar-te a atenção para uma coisa? Usas sempre verdade e verdadeiramente, quer quando falas, quer quando escreves. Ou então dizes: de um momento para o outro. Mas quando é que as pessoas falam verdade e quando é que as coisas acontecem de um momento para o outro? Sabes melhor do que eu que é tudo uma embrulhada e que a uma coisa segue-se outra e depois mais outra. Eu já não faço nada verdadeiramente, Lenú. E aprendi a estar atenta às coisas, só os imbecis é que acham que elas acontecem de um momento para o outro.
Elena Ferrante, História de Quem Vai e de Quem Fica, 2013.
Elena Ferrante, História de Quem Vai e de Quem Fica, 2013.
22 de fevereiro de 2017
Há histórias que, mesmo com todo o seu emaranhado complexo e rico, não vale a pena contar. Quando o emaranhado é demais, não vale a pena sequer lembrar. Mal chegam ao seu término — se é que as histórias chegam a um término enquanto ainda vivemos — ficam reduzidas a um novelo com tantos nós que não se pode utilizar e que, por isso, é desprezado e acaba por desaparecer do cesto.
21 de fevereiro de 2017
18 de fevereiro de 2017
Na verdade, é impressionante que me lembre de tão poucas coisas de uma pessoa que me marcou tanto. Não passam de pequenas frases, breves imagens, gestos insignificantes. À época, ela ocupava o meu mundo como uma estrela em torno da qual eu gravitava. Sumiu-se o planeta e depois sumiu-se a estrela, aos poucos e sem deixar rasto. Lembro-me por exemplo de quando lhe fiz desenhos de coisas que ela imaginava, da sua surpresa ao verificar que os desenhos eram um decalque perfeito do que pretendia e da minha própria surpresa quando, alguns anos mais tarde, vi um quadro de Chagall com o desenho que eu tinha feito seguindo as instruções dela. De quando, sentadas numa duna a conversar depois de não nos vermos há muito tempo, me disse que eu tinha uma inteligência exótica, que raras pessoas poderiam compreender — o que me espantou que ela dissesse. Estava mais habituada a ser criticada e a ter de me esforçar por acompanhar a sua própria inteligência, muitas vezes conflituosa, ao contrário de mim, que temia os conflitos, e por isso me sentia pequena como uma ervilha quando ela explodia, mas ainda assim, acompanhando-a, procurando, sem sucesso, mostrar-lhe um lado mais diplomático, exceto algumas vezes, de que me lembro uma em particular: ela falava do seu namorado, das crises com ele, expunha conversas intermináveis que tinham tido, ela procurando chegar a ele, ele emancipando-se. Ela queria ter uma relação mais séria, viver juntos, ele fugia, inventando problema atrás de problema. Isto durou a noite toda e quando me deitei com ela, ainda falava. A certo momento disse-lhe «Quando ele vier falar outra vez contigo, deixa-o falar até ao fim, não o interrompas, e depois diz-lhe O Dumbo voa com as orelhas.» Implícito estava o abandono da argumentação interminável, da retórica, o que naquele caso implicava abandonar-se a si mesma e àquilo que a definia: a constante demonstração de que a sua inteligência era superior. Não sabia se ela entenderia nem qual seria a sua reação. Não sabia se ela perceberia que abandonar a argumentação em prol de um enigma — obscuro mas sem ambiguidade — naquele caso, significaria um término. Ela ficou em silêncio, como se tivesse engolido o mar e passado um minuto disse «Como é possível que consigas dizer coisas dessas. Isso é genial.» Lembro-me das coisas boas, deve ser algum defeito, mas na realidade estes momentos foram poucos, ao longo de quase uma vintena de anos. Pouco tempo depois de me afastar, um dia, ligou-me, queria saber porquê. Disse-me que eventualmente eu teria coisas mal ultrapassadas e no final perguntou-me se queria encontrar-me com ela para falarmos melhor. Escondendo-me da seriedade dela atrás de mil falsos sorrisos, respondi que sim, que nos encontraríamos, havia que combinar. Menti, não fazia quaisquer tenções de a voltar a ver e menos de tentar explicar fosse o que fosse. Mas perante ela, mais uma vez, a minha voz extinguia-se, deixando espaço à sua soberania. Nunca ligou de volta e foi isso o melhor. Seria incapaz de a fazer acreditar que nada estava mais longe da verdade. Ela acreditava no que queria. Foi essa a última vez que falámos.
14 de fevereiro de 2017
Abro a porta da rua com força e subo as escadas estreitas, com pequenos degraus, alguns danificados pelo tempo e pelas mudanças de móveis das centenas de inquilinos que passaram por este prédio. Ao chegar à porta de minha casa, rodo duas vezes a chave e entro. A casa está às escuras. O meu gato mia quando me vê e deita-se a rebolar no chão. Antes de fechar a porta, enquanto um fio de luz da escada ilumina a entrada, coloco a chave na fechadura. Fecho a porta e rodo duas vezes a chave. Pouso a mochila numa mesa à entrada, dispo o casaco, tiro o cachecol e as luvas, descalço-me e calço os chinelos, só depois faço festas ao gato. Pego-o ao colo e deixo-me estar uns minutos assim, abraçados, ele faz ron-ron. Quando o volto a por no chão, ele segue-me para onde quer que vá. Às vezes volto a pegá-lo ao colo enquanto dou uma volta de reconhecimento pela casa e acendo a luz do teto da cozinha, mais forte. Vou à mochila buscar o computador, ligo-o na sala e ponho música, deixo-o ficar na escravaninha. Entro no quarto, acendo a luz de teto, mais forte, descalço os chinelos, dispo as calças, as meias, a camisola, o soutien, visto as calças do pijama, a camisola, as meias (dois pares, um de algodão, outro de lã), calço os chinelos e visto o robe, que está pendurado atrás da porta, onde penduro o soutien. Vou à casa de banho, apanho o cabelo ao espelho. Decido se tenho fome, normalmente tenho e quero despachar a parte da comida. Acendo a luz pequena da cozinha, mais fraca, de um candeeiro em cima da bancada. Retiro o tupperware da sopa do frigorífico, um prato de sopa do armário, pego na concha que está lavada do dia anterior, encho o prato com duas conchas de sopa e ponho a aquecer 3 minutos no microondas. É demais, mas prefiro comê-la a escaldar do que encontrar partes frias. Enquanto isso, guardo o tupperware da sopa no frigorífico. Barro uma fatia de pão com manteiga e ponho na mesa a toalha, uma colher de sopa, um copo com água e a caixa dos comprimidos. A fruta está sempre em cima da mesa, numa cesta, na metade que não está coberta pela toalha. Penso na fruta que me apetece comer. Vou buscar o computador à sala e levo-o para a cozinha. Tiro a sopa a escaldar do microondas e sento-me a comer, uma dentada no pão, uma colher ou duas de sopa. Descasco a fruta e como com os pés em cima da cadeira à minha frente, do outro lado da mesa. Abro a caixa dos comprimidos e despejo-a na minha mão. Confirmo se estão todos, se não me enganei quando os distribuí. Atiro-os para dentro da boca e bebo a água. Ponho o prato da sopa dentro do lava-loiça e o copo de água vazio na bancada, junto à parede. Vou voltar a usá-lo de manhã. Vou buscar o maço de tabaco porque me esqueci dele na mochila e acendo um cigarro com os pés em cima da cadeira à minha frente. Vejo o Facebook, os e-mails. Arrumo a cadeira, metade de fora, metade debaixo da mesa, na diagonal. Apago as luzes, trago comigo o computador para a sala.
10 de fevereiro de 2017
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