23 de fevereiro de 2017
Ela ensinou-me a ver. Lembro-me do seu semblante uma manhã, muito cedo, no autocarro que nos levava de casa dela à faculdade, cheio de fumo de tabaco e de pessoas meio adormecidas. Levava os phones, tinha o cabelo comprido até ao fundo das costas e um rosto de Modigliani, muito branco e cheio de sardas. Enquanto roía as unhas, olhava para mim, sempre nos olhos, para a paisagem que se transformava ou para os outros transeuntes, em silêncio e semicerrando os olhos. Olhava para ela e pensava como gostava de todas essas particularidades, de a descobrir todos os dias. Cheia de admiração, perguntava-me o que via ela em mim quando me olhava nos olhos. Achava-me transparente e não me importava. Era porventura a única pessoa que não me importava que me visse pois, para mim, ela via e dizia a verdade, o que fazia dela uma entidade quase divina, que eu protegia e defendia em todos os momentos, colocando-me ao mesmo tempo em desfavor. Eu era o que ela via e portanto precisava dela para ser. Um dia disse-me «És tão pura que até...» e não terminou a frase, não sei exatamente porquê, embora me parecesse que fosse dizer qualquer coisa tão negativa, que ela própria ficou a pensar porque queria dizer aquilo. Foi a única vez que deixou uma frase por terminar e, enquanto baixava a cabeça para não olhar para mim, eu não disse nada, não lhe perguntei porque dizia aquilo, não lhe perguntei o que estava a pensar. Sabia que era verdade, mesmo sem o remate. Ao lado dela eu Era, e, porque ela me estimava, passei a ver o mundo e a mim mesma através dos seus olhos: forte, definida, grande, com poder. O que cumpria o meu objetivo de me desligar do desterro onde tinha nascido, onde nada era possível e eu não passava de um fantasma preso num limbo, a definhar. Contudo, ao seu lado, a minha luz extinguia-se um pouco, assim eu o achava. Se eu era bonita, ela era mais, se eu era inteligente, ela era mais, se eu era peculiar, ela era mais. A minha falta de confiança era tal que, se não fosse pelo seu exemplo, talvez nunca tivesse terminado o primeiro ano da licenciatura, quando tive de escrever cinco trabalhos de final de ano. Lembro-me em particular do que escrevemos para a nossa disciplina preferida. Ela trabalhou muito tempo e escreveu um trabalho com cem páginas, que, sendo o primeiro, nos deixou a todos perplexos. Lembro-me do seu sorriso ao terminar, de um certo desdém e orgulho. E lembro-me do seu sorriso constrangido enquanto dizia «Estás a ver?» quando recebemos as notas, eu um ponto a menos, por um trabalho escrito à pressa com cerca de dez páginas.