18 de fevereiro de 2017

Na verdade, é impressionante que me lembre de tão poucas coisas de uma pessoa que me marcou tanto. Não passam de pequenas frases, breves imagens, gestos insignificantes. À época, ela ocupava o meu mundo como uma estrela em torno da qual eu gravitava. Sumiu-se o planeta e depois sumiu-se a estrela, aos poucos e sem deixar rasto. Lembro-me por exemplo de quando lhe fiz desenhos de coisas que ela imaginava, da sua surpresa ao verificar que os desenhos eram um decalque perfeito do que pretendia e da minha própria surpresa quando, alguns anos mais tarde, vi um quadro de Chagall com o desenho que eu tinha feito seguindo as instruções dela. De quando, sentadas numa duna a conversar depois de não nos vermos há muito tempo, me disse que eu tinha uma inteligência exótica, que raras pessoas poderiam compreender — o que me espantou que ela dissesse. Estava mais habituada a ser criticada e a ter de me esforçar por acompanhar a sua própria inteligência, muitas vezes conflituosa, ao contrário de mim, que temia os conflitos, e por isso me sentia pequena como uma ervilha quando ela explodia, mas ainda assim, acompanhando-a, procurando, sem sucesso, mostrar-lhe um lado mais diplomático, exceto algumas vezes, de que me lembro uma em particular: ela falava do seu namorado, das crises com ele, expunha conversas intermináveis que tinham tido, ela procurando chegar a ele, ele emancipando-se. Ela queria ter uma relação mais séria, viver juntos, ele fugia, inventando problema atrás de problema. Isto durou a noite toda e quando me deitei com ela, ainda falava. A certo momento disse-lhe «Quando ele vier falar outra vez contigo, deixa-o falar até ao fim, não o interrompas, e depois diz-lhe O Dumbo voa com as orelhas.» Implícito estava o abandono da argumentação interminável, da retórica, o que naquele caso implicava abandonar-se a si mesma e àquilo que a definia: a constante demonstração de que a sua inteligência era superior. Não sabia se ela entenderia nem qual seria a sua reação. Não sabia se ela perceberia que abandonar a argumentação em prol de um enigma — obscuro mas sem ambiguidade — naquele caso, significaria um término. Ela ficou em silêncio, como se tivesse engolido o mar e passado um minuto disse «Como é possível que consigas dizer coisas dessas. Isso é genial.» Lembro-me das coisas boas, deve ser algum defeito, mas na realidade estes momentos foram poucos, ao longo de quase uma vintena de anos. Pouco tempo depois de me afastar, um dia, ligou-me, queria saber porquê. Disse-me que eventualmente eu teria coisas mal ultrapassadas e no final perguntou-me se queria encontrar-me com ela para falarmos melhor. Escondendo-me da seriedade dela atrás de mil falsos sorrisos, respondi que sim, que nos encontraríamos, havia que combinar. Menti, não fazia quaisquer tenções de a voltar a ver e menos de tentar explicar fosse o que fosse. Mas perante ela, mais uma vez, a minha voz extinguia-se, deixando espaço à sua soberania. Nunca ligou de volta e foi isso o melhor. Seria incapaz de a fazer acreditar que nada estava mais longe da verdade. Ela acreditava no que queria. Foi essa a última vez que falámos.