24 de março de 2024

“A erva prostrara-se, a vida entorpecera-se. Agora tudo parecia infinito, petrificado pelo tédio: as colinas queimadas, escuras e verdes, violáceas no horizonte com as suas tintas discretas como a sombra, a planície com o seu fundo brumoso e, tombando sobre elas, esse céu que na estepe sem árvores nem altas montanhas parece terrivelmente alto e transparente. Que calor e que aborrecimento! A caleça corre, e, todavia, Iegoruchka vê sempre a mesma coisa: o céu, a planície, as colinas.”

Anton Tchekhov, A estepe (1888). 
[Trad. Maria do Carmo Santos]. 

19 de março de 2024

“I seldom know where I’m headed, but if the story is meant to be, you cross over to the other side — you’re inside it, and there’s an engine.”

Jhumpa Lahiri

17 de março de 2024

"A degradação das penas de aço é tal que, depois de fazer o meu melhor para dar forma a uma aparando e limando, tive de me habituar a uma [caneta] Waterman, ainda que desconfie profundamente delas e não acredite nas suas capacidades para exprimir os sentimentos mais profundos."

Virginia Woolf, Diários, quinta-feira, 24 de outubro de 1918. 

Bic cristal azul para sempre. 

8 de março de 2024

Issa Lopéz começou por seguir arqueologia, mas desistiu porque «o apelo do cinema era demasiado forte» e foi escrever telenovelas mexicanas. Depois de somar prémios literários, incluindo o mais importante prémio literário mexicano, prémios em filmes e prémios como realizadora, a HBO foi buscá-la para escrever a quarta temporada da série True Detective e, pela primeira vez na série, Issa dá-lhe um subtítulo, NIGHT COUNTRY: "Where True Detective is male and it's sweaty, Night Country is cold and it's dark and it's female", diz numa entrevista. Escreveu os seis episódios em quarentena a ouvir uma música chamada bury friend, que a Billie Eillish escreveu a partir da perspetiva do monstro debaixo da cama

Kali Reis é uma pugilista profissional e atriz americana de ascendência cabo-verdiana e indígena americana. Foi campeã mundial em duas categorias de peso, tendo detido o título de peso médio feminino do WBC em 2016 e três títulos de peso médio feminino entre 2020 e 2022. É uma ativista no movimento das Mulheres e Raparigas Indígenas Desaparecidas e Assassinadas. Aparentemente, eu desconhecia, entre o Canadá e os EUA as mulheres indígenas desaparecem todos os anos às centenas sem deixar rasto e dispensando investigação policial. O movimento denuncia a ligação entre tráfico sexual, assédio sexual, agressão sexual e assassinatos. O número é seis vezes superior ao que existe atualmente para outras mulheres. 

Jodie Foster não aceitava protagonizar uma série desde 1975 e diz que aceitou porque a personagem dela é uma ‘Karen’. Karen, fui ver, é um termo depreciativo usado para designar uma mulher americana branca de classe média que abusa do seu privilégio branco de classe para exigir o que quer. 

Há uma frase na Guerra dos Tronos que ficou famosa porque alguém a diz em todos os episódios: "Winter is coming". Enquanto via o NIGHT COUNTRY andava a pensar nela outra vez. É uma frase poética que me ocorre com frequência desde aí para deixar algumas obsessões no mistério ou, pelo contrário, para concluir um tema irresolúvel. A certa altura (a ficha cai-me sempre no último minuto) percebi que esta temporada de True Detective também tem um ritornelo: "She’s calling." Quem estava a chamar? Primeiro pensei que era a Natureza. Andam a perfurar a terra para salvar o mundo. Na verdade, andam mesmo: ir à lua, ir a Marte, plantar satélites é fácil. O maior segredo do mundo são as suas entranhas. Depois, fui ler sobre cultura indígena. "Ouvir a voz dos antepassados é ouvir a nossa intuição." No fundo, vai dar ao mesmo. Atenção, intuição, observação. NIGHT COUNTRY é friamente feminino. Sem dúvida. É uma vingança do princípio ao fim, não um desejo de, leia-se bem, uma vingança. Uma vingança redentora que conduz à sororidade. É sobre dar o troco, dar uma lição, punir, castigar, ter o saldo. É uma catarse. Ao ponto de assistirmos à conversão da Karen. É sobre internamentos, desaparecimentos, ocultações. Sobre isolar e silenciar. É por isso que acho que a frase de NIGHT COUNTRY não é o seu ritornelo, mas sim uma pequena frase que só aparece no último episódio: "Want a coffee?"

3 de março de 2024

Tenho uma sensação incómoda quando acontece — o que evito — publicar no blogue demasiadas imagens. Construí este pequeno ermo sem raias para me proteger das imagens, para me refugiar e me esconder dos ícones, das efígies, das paisagens, dos símbolos, dos desenhos, das figuras, dos traços, das ilustrações. Do temperamento da cor, onde se inclui o preto e o branco, da profundidade de campo, das formas visíveis da representação. O que se tornou tão ofensivo nas imagens, tão aborrecido? E o que protege ainda a literatura? Cada vez mais vejo a literatura não como algo que se cria de maneira abstrata, mas como algo onde entramos e não pára de se transformar, um espaço onde, quanto mais se entra, mais pormenores nos revela da sua permanente metamorfose e mais aumenta, mais se abre. Um ser vivo que se dá na medida do que lhe dermos. E que exige o corpo em troca. 

29 de fevereiro de 2024

"É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida." 

Marguerite Duras, Escrever (1993, três anos antes da sua morte).

20 de fevereiro de 2024

"«A minha filha», sussurrou Madame ao acompanhar-me ao elevador, «tentou queimar-me.» Disse-o com uma doçura tal, que parecia arrependimento. Abriu a porta do elevador. Lá dentro, um espelho e um banco. «Elle n'est pas responsable.»"

Fleur Jaeggy, Felizes anos de castigo.
[Trad. Ana Cláudia Santos]

12 de fevereiro de 2024

Escrevi vinte e oito páginas de uma carta. Parei a meio de uma frase, alarmada, como se a estranheza de ver de soslaio o número a um canto me tivesse despertado de uma alucinação. Tive a sensação de estar cega e voltar a ver, de ser puxada de um lugar insondável para a superfície, de ter esquecido a existência e de regressar a ela porque alguém estalou os dedos. Tenho o que se parece com um corpo, estou aqui, mas não foi este corpo que escreveu, escrevi como um animal mata, sem hesitação. Nem sequer compreendo como foi possível escrever tanto tão rapidamente, costumo demorar dias a preencher duas ou três páginas. Tenho a sensação assustadora de estar diante de uma massa impenetrável expelida num vómito e a certeza com que comecei, de haver um destinatário, desfaz-se como o desejo dissoluto depois do orgasmo: um repúdio cínico nega que alguma vez tenha existido.

11 de fevereiro de 2024

25 de janeiro de 2024

Escrevi em 2021 o que poderia dizer sobre o Folhas Caídas.











Kuolleet lehdet [Folhas Caídas], Aki Kaurismäki (2023).

18 de janeiro de 2024

Na tua ausência
converso 
contigo
na tua presença
converso comigo. 

Abbas Kiarostami  
(vamos disse ele
não tão longe disse ela
o que é longe para ti disse ele
exatamente aqui disse ela)

e. e. cummings

14 de janeiro de 2024

Bebo à minha casa em chamas,
À minha vida desesperada
E à solidão de dois.

Anna Akhmatova

11 de janeiro de 2024

Plano de escrita de Ursula K. Le Guin:

5:30 - acordar e ficar deitada e pensar.
6:15 - levantar e tomar pequeno-almoço (muito).
7:15 - começar a trabalhar, escrever, escrever, escrever.
Meio-dia—almoçar.
13:00-15:00 - ler, música.
15:00-17:00 - cartas, talvez arrumar a casa.
17:00-20:00 - fazer jantar e jantar.
Depois das 20:00 - tenho tendência a ficar muito estúpida e não vamos falar disso. 

8 de janeiro de 2024

Hoje no metro tresandava a fogo. Nos corredores o fumo era tanto que picava os olhos. Mas não se ouvia nenhum alarme. Do outro lado da linha, ninguém se movia. Coloquei um lenço sobre a boca e o nariz e sentei-me à espera do próximo. Havia um comboio parado na linha oposta. As pessoas levavam as mãos à cabeça, entravam e saíam rapidamente das carruagens e sorriam ao falar umas com as outras, esse sorriso torpe que acompanha as tragédias que não se abateram sobre nós próprios. Dois seguranças estavam parados numa das extremidades do túnel. Olhavam ora um para o outro, ora para a carruagem parada, e não diziam palavra. Equipados com coletes refletores, outros dois seguranças chegaram a correr, do outro lado do túnel. Ficaram a conversar calmamente sem se dirigir nem aos passageiros nem às carruagens. Os passos das pessoas que desciam os degraus para entrar na linha, tornavam-se progressivamente mais lentos; as pessoas hesitavam. Algumas entravam no túnel, outras, mais raramente, voltavam a subir os degraus depois de lançar um olhar em volta e desapareciam. Na plataforma, os homens punham as mãos nas ancas e arqueavam as costas. As mulheres sentavam-se e olhavam em volta como passarinhos. Esperei que algo acontecesse. Deveria ir-me embora? Não queria ir-me embora. Não queria mexer-me. Fiquei muito tempo sentada. Tinha um sentimento estranho ao que via, de tranquilidade. Na verdade, todos tinham, os seguranças, os passageiros que permaneceram sentados dentro da carruagem do comboio parado na linha oposta, os passageiros que aguardavam o próximo comboio do meu lado da linha e os que aguardavam na outra plataforma que a situação se resolvesse. Cheira a fogo, vê-se fumo, e é tudo. Não se sabe onde arde, não se sabe se temos de fugir, não deflagra.