9 de agosto de 2021

Quando era pequena sentia-me orgulhosa porque a Justiça era representada como uma mulher. Havia tantos homens em todo o lado, mas a Justiça, que segura a balança e a espada — uma para equilibrar, outra para cortar — era feminina. Este orgulho confortava-me e nutri-o durante muito tempo, quando pensava na ideia de Justiça, quando passava à frente de uma destas estátuas, quando lia sobre mitologia. É muito difícil ser justo. A Justiça, quando era representada pelos gregos, tinha os olhos abertos, para poder ver tudo, todos os pormenores. Quando, mais tarde, os romanos a quiseram representar, vendaram-na. Lembro-me de ter um sentimento muito estranho quando vi uma estátua dessas pela primeira vez. Creio que se chama impotência. Apressei-me a perguntar pela razão e explicaram-me que a venda se destinava a garantir que todos são tratados por igual, sem distinção. Achei isso muito lindo. Desejei que fosse verdade e achei que a Justiça de olhos abertos não via nada. Levou-me a pensar que a imparcialidade era difícil e que, se lhe tinham colocado uma venda, era porque a Justiça era frágil, até a Justiça podia falhar. Fiquei muito triste, eu que a via de forma majestosa nestas estátuas como um ser tão poderoso, afinal talvez fosse por isso que a tivessem representado como uma mulher. Passei a vê-la como um ser alegórico, uma parábola: desejamos a sua perfeição, procuramo-la, mas ela não está ao nosso alcance. Quando já estava na escola primária, contaram-me sobre Salomão. Salomão foi um rei de Israel a quem deus deu tudo por este, num sonho, lhe ter pedido sabedoria para governar o seu povo. Durante o seu longo reinado foi visitado por representantes de todos os povos por tratar a todos por igual e por saber aplicar a Justiça e usufruiu de poder, inteligência, riqueza, glória, honra e uma vida longa. Um dia, duas prostitutas vieram ter com ele afirmando serem as duas mães de um bebé. Criando um ardil, Salomão mandou cortar o bebé em dois para que cada mãe recebesse metade e, logo, a verdadeira mãe implorou para que a criança fosse entregue à impostora. A história impressionou-me como a história do escorpião e da tartaruga me impressionava, mas esta, em lugar de me excitar, deixou-me um sabor de desalento. Não conhecia ninguém capaz de encontrar a verdade assim. Por outro lado, que teria acontecido à mãe que desejava um filho e não o tinha? Teria ele ameaçado matar o bebé se se tratasse de mulheres nobres? Também me perguntava se ele teria sido realmente capaz de cortar o bebé ao meio para encontrar a verdadeira mãe, o que teria feito caso o ardil não funcionasse. Questionava-me, obviamente, sobre a validade dos métodos. Ovídio diz que os fins justificam os meios, que resultados perfeitos podem ser fruto de ações imperfeitas. Infelizmente, estou totalmente de acordo.

12 de julho de 2021

o amor é um tigre dócil
cuja natureza insubmissa 
pressente com rigor o mundo

10 de julho de 2021

4:07AM → Plane Trees: in the garden in front of my house, no shrub or tree leaves move. Except for the plane tree. This big tree, with tens of meters high, dances elegantly to the gentle breeze that I don't even feel.

15 de abril de 2021

8 de março de 2021

Eu quero foder foder foder

Eu quero foder foder / achadamente / se esta revolução / não me deixa foder até morrer / é porque não é revolução nenhuma / a revolução não se faz nas praças nem nos palácios / (essa é a revolução dos fariseus) / a revolução faz-se na casa de banho de casa / da escola / do trabalho / a revolução entre as pessoas deve ser uma troca / hoje é uma relação de poder / (mesmo no poder) / a ceifeira ceifa contente / ceifa nos tempos livres / (semana de 24×7 horas já!) / a gestora avalia a empresa pela casa de banho / e canta contente porque há alegria no trabalho / o choro da bébé não impede a mãe de se vir / a galinha brinca com a raposa / eu tenho o direito de estar triste.

Adília Lopes, Eu quero foder in Florbela Espanca Espanca.

22 de fevereiro de 2021

Quando conhecemos uma pessoa, não devíamos perguntar-lhe o nome. A aproximação seria feita devagar, como se caminhássemos sobre as águas: vigiando o fundo, mas deslizando à superfície. Teríamos tempo para estar desatentos, sem nenhuma pergunta. Se a pessoa voltasse, talvez tivéssemos vontade de conversar mais com ela. Uma palavra após a outra, numa ordem imprevista, chegaria até nós carregada pela melodia de uma voz estrangeira. Pensaríamos que não havia qualquer razão para limitar aquele encontro e como rapidamente poderia transbordar. Porém, ainda, nenhuma pergunta. Cândidas e lentas, como animais a sair da sombra em direção ao primeiro sol, as perguntas viriam apenas depois. Talvez nos perguntássemos como tinha sido possível não nos cruzarmos antes e dificilmente compreenderíamos. Talvez hesitássemos e procurássemos fugir. Pensaríamos como conhecer uma pessoa é feito numa extensão sem limites, que nunca sabemos onde vai terminar. O momento em que se pergunta pelo nome devia ser solene, cheio de cuidado, possuir uma certa ousadia. Imagino que as pessoas se olhassem sempre nos olhos ao fazê-lo. No instante após os conhecermos, logo esquecido, estremeceríamos. Teríamos medo. Agora caminharíamos familiarmente entre os tigres da manhã, atentos e em repouso. E um dia, quando finalmente nos separássemos, os lugares que esse nome houvesse tornado férteis haveriam de continuar a falar connosco.

1 de fevereiro de 2021

hoje, abri uma janela de chat com um amigo e disse-lhe: "tenho vontade de viver". mas que difícil organizar a vontade de fazer tantas coisas e ter de trabalhar para outrem. partir, partir, sempre partir para ver mais mundo, estar mais com os outros, rir mais alto, aprender mais um passo de dança e gastá-lo até cair. não sabemos nada da vida e de nós próprios também hesito em afirmar que possamos saber alguma coisa. vamos de um lado ao outro da alegria e damos com a tristeza, de um lado ao outro da tristeza e damos com a alegria. temos íntimos exóticos devorados pelo silêncio da incerteza e da certeza e avançamos, mas não vamos a lado nenhum. estar aqui é absoluto, temos uma voz, um corpo, e as coisas respondem-nos cheias de bondade, oferecem-nos a qualidade do perigo, do inesperado, onde, como diz o poeta, me tornei hábil a cair verticalmente.

19 de janeiro de 2021

a matilha ladra de madrugada
o teu corpo quente e inesperado
como um tordo num pomar

6 de janeiro de 2021

O sofrimento é interminável
Do fio de ribeiro veloz
A minha mão se afasta.

8 de outubro de 2020

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück

1 de outubro de 2020

"La main est action : elle prend, elle crée, et parfois on dirait qu’elle pense. (...) La main arrache le toucher à sa passivité réceptive, elle l’organise pour l’expérience et pour l’action. Elle apprend à l’homme à posséder l’étendue, le poids, la densité, le nombre. Créant un univers inédit, elle y laisse
partout son empreinte. Elle se mesure avec la matière qu’elle métamorphose, avec la forme qu’elle transfigure. Éducatrice de l’homme, elle le multiplie dans l’espace et dans le temps."

Henri Focillon, La vie des formes.

17 de setembro de 2020

Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender — que amores tornam alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar.

Gilles Deleuze, Diferença e Repetição.

20 de agosto de 2020

There is, Kafka says, ‘plenty of hope, an infinite amount of hope–but not for us.’ There is hope always only for another– and for ‘us’ only when there is, so to speak, no ‘us,’ when ‘we’ stop being ‘ourselves’ and begin to be another. ‘Plenty of hope,’ therefore, ‘but not for us.’

Werner Hamacher, The Gesture in the Name.

30 de junho de 2020

de repente estou lá em cima. o horizonte envolve-me. quando levanto os meus olhos da terra, observo a amplitude à minha volta, discernindo claramente todos os pormenores da paisagem. nomeio-os por instantes, para saborear melhor o meu regozijo: sol, floresta, cidade, gato. assim que decido voltar apenas a observar, o prazer esgotou-se. percebo imediatamente que a descida deverá começar em breve e que não voltarei.

26 de junho de 2020

as flores dos jacarandás caíram
este tempo é teu
atravessamos o rio
alimento-me com a tua juventude
a minha atenção veloz
despede-se dela