depois de todos recolherem, chegara a hora de limpar os destroços e organizar o dia que começaria dali a umas horas. cozinha e café arrumados, fui sentar-me a seguir debaixo do alpendre a fumar e a contemplar um céu de verão forrado de estrelas, a serra eminente e negra ao fundo, de onde por vezes chegavam vozes de animais, lobos e raposas sobretudo. era cedo, não tinha sono, mas já não tinha nada que fazer. decidi ir para o quarto ler. era a primeira vez que iria partilhar o quarto. nesse dia tinha chegado um grupo de franceses e americanos, espeleólogos e arqueólogos, para realizar uma investigação importante pela qual eu, apesar da parafernália de mapas, ferramentas e computadores distribuídos pela sala, não tinha sentido qualquer interesse. como não havia mais quartos vagos, a americana, uma mulher cheia de sardas vestida de punk, tinha ficado no meu, onde havia uma cama e um armário livres. a ideia não me agradava. nunca gostei de partilhar o meu espaço, que preservo o mais possível da presença dos outros. foi por isso com relutância que caminhei pelas salas imersas na escuridão em direção ao refúgio que já não era o meu. para minha surpresa, ao abrir a porta vi que a luz estava acesa, o que me obrigaria a confraternizar, tudo o que àquela hora me deveria recusar terminantemente a fazer. contrafeita, mas resignada, percorri o pequeno corredor que me levava ao interior do quarto e deparei-me com ela.
ela era uma jovem mulher de tez muito branca e cabelos ruivos caídos como uma cascata pela beira da cama, de onde pendia também um braço onde não restava espaço para mais uma cicatriz. tinha-se ferido tantas vezes que era impossível distinguir a pele dos cortes. dormia serenamente, embora quase a cair da cama e de luz acesa. imprudente, sentei-me na cama ao lado a observar a sua respiração lenta e grave, a extrema alvura da sua pele como um rio de leite ao lado de um céu de fogo. sentada à beira da cama, fui incapaz de pegar no livro e deixei-me ficar em adoração, como se fosse uma santa.