2 de outubro de 2023

"Ninguém deve ceder à opinião de que somos todos únicos. Todos somos como os demais; pelo menos, é nisso que acredito piamente, e acredito também que tudo já aconteceu uma vez e existiu no passado, pelo que todo o orgulho parece ser algo extremamente supérfluo e desadequado."

Robert Walser, Chuva.
"A verdade tem a estrutura de uma ficção em que outro fala."

Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio.

24 de setembro de 2023

"Ozu lui-même n'est pas le gardien des valeurs traditionnelles ou réactionnaires, il est le plus grand critique de la vie quotidienne. De l'insignifiant même il dégage l'intolérable, à condition d'étendre sur la vie quotidienne la force d'une contemplation pleine de sympathie ou de pitié."

Gilles Deleuze, L'image-temps.


Diz o A., a respeito de outro insignificante (sublinhado meu).

23 de setembro de 2023

"O essencial está sempre a ser ameaçado pelo insignificante."

René Char


É tudo.

21 de setembro de 2023

 

12 de setembro de 2023

Falam-me na língua deles e lembro-me do meu aspeto. Sou uma espia. Onde muitos são proscritos, o meu corpo passa, entra, atravessa, transpõe, percorre, fica, abandona. O meu aspeto é um disfarce útil, permite-me observar as alterações de rosto quando, a pouco e pouco, me revelo nos detalhes. Estou pela primeira vez rodeada de uma língua em tudo estranha, mas, ao contrário do que esperei, não me sinto agredida, envolve-me. Tem uma toada doce, familiar, como a voz em surdina que a criança adormecida escuta ao longe, constante. Falam-me amavelmente na língua deles e respondo em inglês. Um após outro, observo como os seus rostos passam da gentileza à aspereza, da curiosidade à repulsa, como o tronco, barreira maciça, se ergue, o olhar se dirige para baixo, para a terra, para o chão. Aqui está o que vi. 

Um rapaz a quem peço direções na estação de comboios oferece-se para me mostrar pessoalmente o caminho. O seu olhar vago em resposta à minha pergunta, dirigido ao horizonte e não a mim, como o de um predador que procura reconhecer o terreno antes de atacar, dá-me vontade de o repelir imediatamente, mas não vou a tempo, ele toca-me no braço e empurra-me levemente na direção que quer tomar. Caminhamos lado a lado, pergunto-me se na direção certa, e procuro na sabedoria que me trouxe a idade a forma de me libertar da maneira eficaz e com segurança. Estou longe de casa, não quero ter problemas. Vendo a mala na minha mão, pergunta-me pela razão da minha viagem. Digo a verdade sem entrar em pormenores: vou visitar um museu. Quando finalmente saímos da estação ele continua a caminhar sem dizer nada e, uns passos mais à frente, paro e olho para ele. Ele aponta-me o caminho e, impositivo, oferece-se para me acompanhar. Subitamente, ato contínuo, em cima do vazio, antes sequer de esperar pela minha resposta, oferece-se para me acompanhar pelo fim-de-semana fora, na visita ao museu, mas também para me mostrar a cidade. Tem um ar alienado, há no olhar dele uma euforia voraz. Recuso secamente. Deixo-o e, através das paredes de vidro da estação de comboios, vejo-o afastar-se, o olhar no horizonte e as mãos nos bolsos, uma mochila grande. Caminha lentamente. É sempre bizarro ver alguém caminhar lentamente uma estação de comboios, com tempo para acompanhar turistas, para conversar, disponível para mudar tudo, alterar a rota e não apanhar o comboio. Há nele uma aura de tristeza vaga, uma melancolia. Fico com pena de não poder evitar o dano que vai trazer à vida de alguém. 

Quando chego ao centro da cidade filmo as ruas. Filmo rua após rua enquanto olho para um mapa no telefone para me certificar que estou onde penso estar. O silêncio é inacreditável, se não filmar vão achar que caí no delírio. A verdade, todavia, é que realmente sinto que estou a alucinar. Dou voltas e voltas pelas ruas, imersa num misto de espanto, confusão e choque. Ao que percebo, os carros e autocarros circulam à volta das ilhas e não atravessam a cidade. As pessoas deslocam-se de bicicleta, de trotineta e a pé, fazem do asfalto passeio. É tudo muito diferente, mas em apenas duas horas começo a orientar-me. A Europa está toda aqui. Sinto-me a pisar ossos.

No hotel escolho uma mesa a partilhar com um casal de idosos. Escolher a proximidade dos idosos é uma regra importante que estabeleci mal comecei a viajar, não por qualquer espécie de benevolência ou cuidado, mas porque têm mais histórias, porque as suas histórias me permitem observar a História através de quem a viveu, e porque estão normalmente mais dispostos a contá-las. Gosto sobretudo daqueles que perderam ilusões importantes e, com elas, os filtros. Carregam uma certa amargura, uma indiferença, e desatam a língua, como se costuma dizer, para falar livremente com estranhos sobre o mundo e mesmo sobre os seus familiares próximos, como os filhos. O homem que está sentado à mesa vive na Lapónia numa cidade impronunciável, a mulher na Áustria, em Viena. Ela é tímida, parece falsamente gentil e diz que fala mal inglês apesar de ter uma pronúncia irrepreensível. Ele tem ar de miúdo, em minutos, desemperra a língua e começa a falar pelos cotovelos, ajudando-a a traduzir as frases que ela termina em alemão. Com duas ou três perguntas consigo descobrir a história por detrás da viagem: vieram para um encontro de família, um grande encontro de uma grande família espalhada pela Europa que começou a realizar-se há apenas um ano, por insistência de alguns familiares que vivem no Mediterrâneo. "Mas eles não têm nada a ver connosco. É um modo de vida muito diferente. Não nos compreendem." Diz-me isto e sorri na minha direção, como se se tratasse de uma evidência, mas também para me transmitir que a distinção entre eles e os outros é óbvia e é de grau. "Este encontro é uma péssima ideia, para quê? Nós não os conhecemos, o que é que vamos lá fazer?" Vão lá ficar a conhecê-los, pensei. E viver. Mas não disse. Pareceu-me uma sorte que dois irmãos com a idade deles mantivessem uma proximidade que lhes permite fazer uma viagem juntos e partilhar o mesmo entendimento sobre o resto da família. Conto um pouco das razões que me trazem ali, respondo a algumas perguntas. Eu sei que sou maluca, mas vim só para ver uma exposição. Venho de Lisboa. Depois da perplexidade inicial, riem-se comigo. Ele pergunta-me se sou uma stalker da artista que venho ver e naquele instante fico na dúvida. Rimos mais.

O segundo homem a quem pergunto direções não me responde. Com um gesto lascivo, diz que sou sexy e acrescenta qualquer coisa que não consigo ouvir porque lhe volto costas. Os idiotas estão lá sempre. Mal o penso, um pressentimento repulsivo põe-me em alerta: de que é isto sinal? 

No dia seguinte, encontro o casal de irmãos à mesma hora e volto a juntar-me a eles. Sou acolhida com entusiasmo e sorrisos rasgados, querem saber como foi a exposição e despedir-se. Despacho rapidamente o relato das minhas novidades e pergunto pelo encontro de família, mas, em vez da animosa descrição de um almoço insuportável, sou confrontada com uma calma espantosa, semblantes cheios de ternura dizem-me que foi bom, que correu muito bem, olham um para o outro e depois para o prato, contemplativos. Não acrescentam mais nada. Qualquer coisa parece ter-se apaziguado e pergunto-me o que terá sido decisivo. Seria possível que esses exóticos do Mediterrâneo, esses alienígenas do Sul, fossem divertidos e amáveis? 

Em três dias vejo apenas duas pessoas negras, dois homens. Um deles estava a fazer uma corrida e o outro estava a estacionar uma bicicleta à frente da estação de comboios e a falar ao mesmo tempo ao telefone. Ambos tinham tranças compridas e roupas caras. Passei também por uma família de árabes e entrei num supermercado que pertencia a árabes. Como é possível? A Suécia teve colónias na América do Norte, América Central, África e Ásia quase até 1900. Traficou escravos, inclusive em Angola, teve comércio com a Índia e com a China. A riqueza das ruas — patente sobretudo na arquitetura sumptuosa e no urbanismo imaculado, mas também no próprio silêncio e na infame ausência de turistas — é obscena, a cada vez que enterrava o pé no asfalto tinha a certeza que essa riqueza provinha da utilização de outros e não apenas do trabalho dos próprios. Como é possível haver tão pouco espaço para a emigração, tão pouca miscigenação também? 

A Suécia foi o primeiro país do mundo com um centro de pesquisa de biologia racial, em Upsalla. Foi aqui que a ideia de esterilização forçada encontrou a sua primeira fonte de credibilidade científica, foi aprovada pelo Governo e continuou legal até meados dos anos 70, isto é, ontem. Mas há 20% de emigração na Suécia. Onde estão estes emigrantes? Escondidos. Nas cozinhas, nos hotéis, em qualquer lugar onde não seja exigida formação especializada e sirva para os afastar dos olhares, da rua, do convívio. Parece que nas empresas suecas se tornaram peritos em filtrar CV's de pessoas que não sejam suecas. Os negros, ciganos, árabes e outras etnias, são barrados no acesso ao emprego e também, nunca esquecer, aos serviços. As minhas conversas incluíram todas, sem nenhuma exceção, o condescendente paternalismo de uma pretensão de superioridade intelectual e económica perante os «povos do Sul» que são «demasiado diferentes». E mesmo a glorificação dos prazeres simples, algo que os enche de orgulho nacionalista, como o obrigatório fika, leva-os à autocomplacência, ao comodismo pequeno-burguês, e age como uma mordaça social. Recolhimento em comunidade, sim, mas só se forem todos brancos, de olhos azuis e, de preferência, suecos. 

Por diversos motivos, fico sempre nervosa no dia em que tenho de viajar, razão pela qual me custa viajar, me custa estar deslocada, e não retiro daí o prazer que a vasta maioria dos meus contemporâneos parece retirar. Neste dia, vou com horas de antecedência para o aeroporto. Quero ir a pé, quero tomar o pequeno-almoço na rua, quero ir lentamente e quero ver se não perco o avião, como já aconteceu. Não tiro fotografias. Fico muito tempo a ver mulheres fazer pão através da montra de uma padaria à beira-rio e encosto-me à barreira de umas obras, perto de um cruzamento movimentado a seguir a uma ponte, a ver quem passa. Acho que viajo para poder ver quem passa. Longe de casa, entre desconhecidos, quase sem amarras, os modos, os gestos, os semblantes, os olhares, a roupa, os objetos que transportam, a forma como se movimentam e a forma como param para conversar com alguém, destacam-se com uma tonalidade tão intensa que quase se transforma em música. Em literatura. Sei que não vou poder manter muito mais tempo esta liberdade, que daqui a nada perderei a habilidade de me distrair de mim própria e de me relacionar com o mundo desta maneira desinteressada, silenciosa. Sei que os outros vão deixar de me atravessar como acontece agora, neste cruzamento. Casais com carrinhos de bebé, casais de cabelos brancos de mão dada, adolescentes góticos, trabalhadores cansados, mulheres sozinhas, pessoas que correm com cães. No cais, vários cartazes anunciam festas com DJ's, concertos, peças de teatro, e chama-me a atenção o Lazarus, um musical do David Bowie. Caminhei horas, atravessei a cidade de ponta a ponta. Não vi uma única pessoa a dormir na rua. 

Acabo por chegar ao aeroporto em cima da hora da partida. Desorientada pelo nervosismo, dirijo-me às pessoas que aí trabalham para perguntar por direções. A última dessas pessoas é um homem com idade avançada, encurvado, muito magro, manchas na cara, que traz um cartão pendurado ao peito. Mal lhe faço a pergunta que preciso de fazer, ele ri-se e diz-me "Não se preocupe, venha comigo." Pronto, estou safa, vai levar-me ao avião. Quando chegamos ao final do corredor, hesita e volta para trás sem dizer nada. Continuo a segui-lo, certamente foi ali confirmar qualquer coisa para não se enganar e poder ajudar-me. Enquanto caminhamos, percebo que balbucia qualquer coisa entre dentes e subitamente, eis que nos encontramos diante do painel dos voos, para onde ele olha com um olhar vago. Começo a achar que quem está desorientado é ele e volto a explicar que não tenho dúvidas sobre o meu voo, mas sim sobre a direção a tomar para o terminal onde está o meu voo. "Ah, sim, claro. Mas olhe, tem muito tempo. Não quer vir comigo? Podemos ir até ao meu gabinete tomar um café." 

Fui até lá com a ideia de que, pelos seus valores progressistas, Estocolmo era um paraíso da igualdade. Encontrei uma assustadora preponderância de violência machista. O significado primordial que ali atribuem à minha existência baseia-se na utilidade que posso ou não ter para um homem. Não é que para eles eu nem sequer seja um ser humano, uma mulher. Sou vista como ser humano e sou vista como mulher. Mas o ser humano que eu sou é uma mulher e uma mulher é uma coisa, como os escravos foram uma coisa, como uma mesa é uma coisa. Vai-se a ver e, apesar das medidas corretivas que todos os anos são introduzidas pelo Estado, a Suécia tem uma das maiores taxas de violência contra as mulheres da União Europeia. Os assassínios ocorrem frequentemente à luz do dia. 

De regresso a Lisboa, senta-se ao meu lado no avião uma senhora vestida de branco com o pulso partido. Veste calças, tem o cabelo grosseiramente apanhado, um saco de uma marca moderna e cara de onde tira e volta a arrumar várias vezes o iPhone. Procuro tranquilizá-la quando, depois de entregar duas fotocópias de um raio-x ao hospedeiro de bordo e responder a várias perguntas sobre o tipo de material que tem no pulso, me diz que está com medo de a impedirem de viajar. "A mim e ao cão", acrescenta, "É uma surpresa para o meu marido". Pergunta-me se estou a regressar a casa e procuro conter a minha felicidade ao ouvir aquela palavra, casa, sobre Lisboa. Devolvo-lhe o interesse e ela conta-me que viveu toda a vida num barco entre o Mediterrâneo e o Sul de França. Que agora, com os filhos criados, todos já nos trinta, vive em Odemira com o marido, onde se sentem bem por ser pequeno e pela proximidade do mar. Partiu o pulso numa caminhada nas montanhas algures na Áustria, onde tinha ido visitar a filha. Depois de ver as ruas de Estocolmo escandalosamente vazias, convenço-me em definitivo que somos os eleitos do ócio e lazer, um país destinado à recreação e repouso dos povos do Norte. A vida de Lisboa tal como a conheci, e a razão pela qual me mudei para cá há trinta anos, desapareceu irrecuperavelmente para dar lugar ao tráfico humano nos indianos, ao comércio do turismo que vende como típicos produtos que nunca consumimos, e à cidade-festival, a cidade da festa total, das despedidas de solteiro, das viagens de finalistas e dos arraiais 12 meses por ano. Que casa?

30 de agosto de 2023

"Maintenant on pourrait presque enseigner aux enfants dans les écoles comment la planète va mourir, non pas comme une probabilité mais comme l'histoire du futur. On leur dirait qu'on a découvert des feux, des brasiers, des fusions, que l'homme avait allumés et qu'il était incapable d'arrêter. Que c'était comme ça, qu'il y avait des sortes d'incendie qu'on ne pouvait plus arrêter du tout. Le capitalisme a fait son choix : plutôt ça que de perdre son règne."

Marguerite Duras, Le Matin, 4 de junho, 1986.

28 de julho de 2023

 

2 de julho de 2023

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó. A extremidade do lado direito da varanda dava para a Serra e para o jardim da casa dos meus bisavós paternos, de onde vinha o perfume das rosas de Santa Teresinha, das laranjeiras e da hortelã. Havia uma bilha de barro ao fundo, onde a minha avó guardava água da fonte que um senhor vinha entregar-lhe a casa todas as semanas numa carrinha de caixa aberta. «Filha, vai lá abaixo depressa que é a água!» Nesta varanda dei os meus primeiros passos. No verão, a minha avó estendia colchões de praia e aí dormíamos, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo. É das noites de verão que me chega a primeira suspeita de estar só. Noites em que a toada dos grilos era de tal modo ensurdecedora que me impedia de dormir e me levava a ir para a varanda procurar as estrelas e dar com o imperscrutável lugar negro de onde vinha o som. A amendoeira em frente parecia morrer no inverno, explodia de flores na primavera, abrigava pássaros, insetos, por vezes gatos, e dava tantas amêndoas que chegariam para alimentar a Vila inteira. Era um milagre. 

Para lá dessa amendoeira, para lá dos telhados que a rodeavam, era o caminho que fazíamos até ao Colégio, muitas oliveiras, limoeiros, trigo, roseiras e amoreiras selvagens, algumas casas e a Serra sempre ao fundo, como uma onda prestes a engolir-nos. Da varanda da casa da minha avó vi várias vezes a Serra a arder. «Cheira a fogo!», gritava a minha avó muito antes dos bombeiros fazerem soar o alarme. À distância suficientemente confortável a que estávamos, todos os vizinhos corriam de um lado para o outro, como ela, na rua, para a janela e nas suas varandas, dando aviso e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes, a cinza enchia o ar. Quando havia cinza demais ela tapava-me a boca e eu tirava-lhe a mão da minha cara. Ela não insistia. Consoante o ano, a Serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro com exatidão, é de ver pequenos fogos até certo ano, um ano em que nada se via da Serra senão chamas que arderam todo o dia, toda a noite e na manhã seguinte ainda queimavam, instalando em nós a desolação. Os adultos disseram-nos depois desse fogo que já não havia lobos na Serra. Nos dias de fogo, depois da inquietação inicial, a minha avó ficava encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele. Não dizíamos quase nada.

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol. Quando era miúda, a minha avó sentava-me na varanda nos dias de sol e mexia-me na cabeça. Dizia que tinha de ver se tinha piolhos. Por vezes também dizia que tinha de me pentear, fazer os totós ou a trança, ou que era para medir a cabeça para o gorro de lã que havia de fazer. Mas quase sempre era para ver se tinha piolhos. Mal o sol começava a aparecer em fevereiro, ela começava a procurar piolhos. As azedas surgiam de um dia para o outro e espalhavam-se na paisagem como sardas, a terra transpirava acordando lentamente da gestação, as primeiras andorinhas chegavam aos beirais das casas, os cucos apareciam e voltavam a esconder-se como salteadores furtivos, ouviam-se os melros, a amendoeira floria, em certos dias, a Serra apresentava-se inteira, com contornos lilases e sem nevoeiro, e a minha avó mandava-me para a varanda depois do almoço para procurar piolhos. Ela mandava-me ficar quieta e eu fechava os olhos. Os seus dedos grossos e macios faziam uma leve pressão no meu couro cabeludo mole e deslizavam para os lados para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia. Procurando entre a cabeleira, ela afastava as mechas e demorava-se a repetir este gesto até chegar a hora de ter de me libertar para o Colégio. 

Contornando a casa e virada para a Serra, a varanda era enorme. A extremidade do lado esquerdo dava acesso à escada que levava ao jardim, e à saída de casa. Os adultos tinham tanto medo que nos aproximássemos da escada que colocavam bilhas de gás a bloquear a passagem. Lá em baixo, o portão para a rua que acumulava camadas de tinta, agora branco, tinha um truque para ficar fechado, portanto, estava sempre aberto. Em todos os degraus da escada havia um vaso com uma planta diferente. Ela estava sempre de volta das plantas. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava e ensinava-nos a procurar bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresciam, se era pé que pegasse, se deviam ser transplantadas dos vasos para o jardim. As plantas toda a vida lhe desviaram a atenção da saudação à chegada ou à despedida das netas e foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escada sem lhes tocar, a olhar para nós com uma expressão inefável atrás dos seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou uma espécie de assombro. Não sei se é esta a palavra certa. É assombro o que sentimos quando, impotentes que somos, estamos a ver alguém desaparecer? Pergunto-me o que acontece nesses dias, às vezes poucos dias, outras vezes muitos dias. Não é possível falar sobre a inevitabilidade, o que diríamos para além de coisas absurdas? Ou vulgares. Correríamos o risco de cometer a vulgaridade de nos defendermos.

O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela. Do nascer ao pôr do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz nascia e desmoronava até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a Serra e mais nada. E bastava. Nunca pude lamentar os processos de mudança, observar a mudança é o para que fui feita. A mágoa que se lhes associa, ligada ao declínio do que desaparece, conheci-a num momento isolado, transformador, ao qual é inútil regressar: o dia em que, da varanda da casa azul da minha avó, vi um mar de telhados de casas, vi que a amendoeira tinha desaparecido, que uma das metades da varanda, justamente a do lado direito, voltada para a Serra, estava agora fechada por uma divisória de imaculado alumínio branco. Percebi que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria. 

A minha avó fazia trocadilhos. «Queijo não o como nem o vejo.» «Vamos à deita que o sono está à espreita.» Cantava o Tenho dois amores do Marco Paulo ou o Recordar é viver do Vítor Espadinha enquanto fazia o almoço. E assobiava. Estava sempre a cantar e a assobiar. O rádio estava sempre ligado, um tijolo com duplo deck para cassetes em cuja antena estávamos terminantemente proibidas de tocar. O rádio antigo, que antes estava na sala de jantar, esteve anos debaixo das escadas porque, dizia a minha avó, «Tem de ir a arranjar.» Era maior que uma televisão, todo em madeira e com as colunas forradas em tecido rosa velho. Por cima do rádio novo, na cozinha, a minha avó tinha sempre um calendário da Nossa Senhora de Fátima, daqueles de arrancar os meses. Não tinha medo de me tirar os piolhos. Mandava-me ir para o sol e massajava-me a cabeça, matava um a um com os dedos. Deixava-me fazer tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. E mexer no pedal da máquina de costura Singer. Chamava-me para ver o fogo. Todos os anos, na Serra que víamos da varanda. Eu saltava para o colo dela e ficava a ver a cinza que caía à nossa volta, o fogo no horizonte ao longe. A minha avó passou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para o fogo. 

Havia fogo debaixo da camilha. Na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. Tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. Num braseiro o fogo nunca se levanta. As brasas são atiçadas, trocadas, sopradas, queimadas e nunca incendeiam. A cozinha inteira ficava quente apesar de não haver fogo, mas apenas estas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. Quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia prolongando a espera porque «tínhamos de poupar». Depois, um dia, eu chegava do Colégio e a cozinha estava quente. Todo o tempo que podia ficar ali sentada passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. Quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível espreitar através da sarja para olhar para elas. O calor queimava a cara e obrigava a fechar os olhos, tínhamos de esperar. Procurei arranjar estratégias, sempre odiei esperar, nenhuma que funcionasse. Mal finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando. 

Apesar de tudo, era rápido. Demasiado rápido. E havia sempre muitas cinzas, parecia-me sempre haver mais cinzas do que poderia ter havido carvão. As cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas numa operação difícil e melindrosa que reunia várias mãos. As vibrantes brasas acesas davam-me a sensação de fazer parte delas. Mas o misterioso carvão negro guardado no saco de papel ao lado da bilha da água ao fundo da varanda era frio, inerte, silencioso. Podia olhar para ele o tempo que quisesse e sempre que desejasse. Podia tocar-lhe ou não. Podia dar-lhe outro uso, como escrever. Intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o com o imperscrutável lugar negro de onde vinha a canção dos grilos. Quebrava pequenos pedaços às escondidas e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. Mexia nos pedaços no fundo do bolso no caminho para o Colégio e pensava que alguma coisa no coração do mundo (e em mim) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, se calhar apenas cinza. Pensava-o sem temor, pelo contrário. Não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. Ser carvão, ser brasa, ser cinza. Viver.

Uma vez a minha avó levantou-se da mesa do almoço para me fazer mais pastéis de pescada (levavam ovo e salsa), comi quatorze nesse dia. Disseram-me que, quando o meu pai era jovem, ela levantava-se para lhe fazer um bife se ele não gostasse do almoço. Quando penso na minha infância, a primeira imagem que tenho é a de me forçarem a comer. O meu quotidiano era preenchido pelo asco da comida e pela recusa em comer. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, a sarja, os autocolantes de fruta, plantas e pássaros nos azulejos, tudo o que me possibilitasse fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de terminar a refeição. A comida fria acabava por ir para o lixo no meio dos gritos. Contaram-me que o meu pai era igual a mim e que tinha um truque: deitava a comida pela sanita e bebia vinagre, alguém lhe tinha contado que se o fizesse ficava magro. Achei isso genial e andei anos a tentar perceber como é que ele conseguia ir despejar a comida na sanita sem ninguém ver. Nas visitas à minha avó depois de entrar na faculdade, quando comecei a comer quatorze pastéis numa refeição, ela dizia que não percebia o que me tinha acontecido, que eu devia passar fome, e ria-se muito.

Lembro-me da minha avó dizer que «É preciso fazer um enxoval para as miúdas» e de acumular numa arca lençóis bordados, toalhas de mesa e toalhas de turco que trazia da feira. A minha mãe dizia que quando crescêssemos já não íamos gostar de nada daquilo e que havíamos de querer ter a nossa casa ao nosso gosto. Para a minha mãe, a independência de uma mulher era sagrada e nunca deixou que ninguém usurpasse a nossa. O enxoval na arca acabou por desaparecer. 

Nos longos estios em que a cidade toda saía à noite, em mangas cavas e alças, para passear no jardim e na avenida que contorna o rio, dormíamos na varanda. Comíamos gelados, crianças que nunca se tinham visto umas às outras entravam e saíam dos arbustos a correr e a rir alto sem que ninguém as mandasse calar, o café que tinha a esplanada debaixo de uma videira carregada de uvas brancas estava cheio, se chegássemos tarde não arranjávamos lugar. As velhas sentavam-se em bancos à porta de casa e ficavam a conversar até tarde, os velhos jogavam cartas e à malha. Saíamos todos juntos para passear na avenida, eu e a minha irmã, os meus pais, os meus avós, os meus tios. A seguir regressávamos a casa da minha avó e ela estendia colchões de praia na varanda. Dormíamos aí, ao relento, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo e na copa das árvores. Durante a noite, quando refrescava, os braços de alguém carregavam-me até à cama. O ar mole dessas noites que desapareceram era a imagem da felicidade. Na cidade onde nasci, no interior do país, agora as noites são desertas. Ninguém passeia, ninguém se encontra nos cafés, ninguém conversa até altas horas, as crianças ficam fechadas em casa a ver televisão ou a jogar. 

A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa que nunca mudava, ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. Os grilos que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. O que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. É por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. O que a existência tem de perecível é isto, o seu devir, tudo o resto talvez perdure. Mas a morte é inconclusiva. O rigor que se espera da morte, inclusive nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que termina: não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. Os fins são sempre remotos. Ao contrário da existência, que é aquilo que é, porquanto é, o fim é aquilo que nunca é, enquanto não é.


1 de julho de 2023

Atlas da Solidão


Doing the laundry.
Watching the pigeons.
Solitude is a science.

Anuradha Roy


Há um conto de Michel Tournier chamado Tristan Vox que fala de um homem — Félix Robinet — que trabalha na rádio apaixonando multidões com a sua bela voz, mas que não pode dar-se a conhecer fisicamente. Tristan Vox é o duplo de Félix Robinet que se forma através da imaginação dos ouvintes, uma imagem completamente alicerçada numa voz emitida através de circuitos de som, desde o microfone no estúdio ao aparelho de rádio em casa. Uma voz sem corpo, sem substância, sustentada pela distância e por um certo ensimesmamento. A existência de Félix Robinet fica, assim, consolidada numa personagem cuja sobrevivência só é possível à custa do distanciamento, de uma intersubjetividade completamente dilacerada e descarnada.

Em 2017, o cirurgião americano Vivek H. Murthy declarou haver uma «epidemia de solidão». Vivek Murthy era um jovem médico quando percebeu que a sua formação em medicina tinha ficado aquém das expetativas. Nada nessa formação o tinha preparado para um dos problemas de saúde mais frequentes que encontrava na sala de exames. Em 2018, o Reino Unido instaurou um Ministério da Solidão, sendo seguido pelo Japão com o Ministério para a promoção do envolvimento dinâmico de todos os cidadãos, em 2021. O Japão criou o seu Ministério porque, até outubro de 2020, morreram mais nipónicos por suicídio do que por Covid-19, registando-se uma subida de 750 suicídios face a 2019 (a primeira subida face ao ano anterior em 11 anos). Estas 750 pessoas eram jovens com menos de 18 anos e mulheres.

Como é que a vida moderna se tornou tão solitária? Até à contemporaneidade, muito poucos seres humanos viviam sozinhos. Aos poucos, não muito mais do que há um século atrás, isso mudou, e hoje, em todo o mundo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, uma percentagem que se acentua em particular nos países mais ricos. A solidão, parece desnecessário dizer, é tóxica e terrível para a saúde. Mas é importante manter as coisas em perspetiva. É inadequado comparar a vulgarização da vida sozinho com a “epidemia de solidão”, que é o que os artigos dos jornais escrevem frequentemente em manchetes alarmantes.

Os ingleses têm duas palavras para se referirem a dois tipos diferentes de solidão: loneliness — o estado negativo de estar sozinho, caracterizado pela sensação de falta — e solitude — a solidão que se escolhe, se deseja e traz felicidade, que amplia a consciência de si, a disponibilidade para a escuta, a criatividade, o sentido crítico e que reduz o stress. Em português podemos traduzir a primeira por solidão e manter a segunda, que o dicionário indica como linguagem poética. A primeira pode ser insuportável e é um sentimento comum e pode matar. A segunda é um sentimento benéfico, é mais raro e transforma a vida. A sociedade conta uma história em como fazer as coisas sozinho — comer sozinho, viajar sozinho, ser solteiro — está diretamente associado à tristeza, estranheza e injustiça. Mas há uma grande diferença entre a solidão e a solitude (do latim solitudĭne-). 

A depressão e o suicídio foram os fatores determinantes para que países como a Inglaterra e o Japão tenham criado os seus Ministérios da Solidão e para que a Austrália, a Alemanha e o Canadá se preparem para lhes seguir os passos. Mas há mais diferenças a estabelecer quando falamos de solidão: o isolamento social é entendido como o estado em que o contacto com os outros é mínimo ou inexistente. Distingue-se da solidão, que é um estado subjetivo com sentimentos negativos sobre ter um nível de contacto social inferior ao desejado. Embora algumas definições caracterizem a solidão como uma forma de isolamento social, outras afirmam que a solidão é uma reação emocional ao isolamento social. Os dois conceitos não são necessariamente coexistentes: uma pessoa pode sentir-se socialmente isolada e não se sentir solitária. Da mesma maneira, pode estar socialmente vinculada, mas sentir-se só. 

É um fenómeno vasto e complexo. Apesar de estar presente em todos os setores da sociedade, tendo por isso deixado de ser um problema de velhos, a verdade é que ninguém fala de solidão. A nível político o tema está completamente silenciado. E, no entanto, a solidão é uma questão política. Ser solitário não é apenas estar isolado. É não poder mostrar o seu autêntico eu. É sobre a dificuldade de encontrar pessoas com quem possamos estabelecer uma verdadeira união, com quem possamos partilhar a nossa angústia. Não é não ter pessoas à volta, por perto ou à distância de uma rede social, é antes não poder comunicar-lhes aquilo que é importante para nós. E não é apenas um sentimento de negligência pelos mais próximos, é também um sentimento de falta de apoio e atenção dos nossos concidadãos, do Governo e dos nossos empregadores. A solidão é um estado pessoal, social, económico e político. 

Quando o neoliberalismo surgiu nos anos 80, impôs implacavelmente a valorização da autonomia individual e interesse próprio acima do interesse da comunidade e do bem comum. O neoliberalismo é uma forma selvagem de capitalismo com ênfase na liberdade: liberdade de escolha, mercados livres, liberdade de interferência do Estado e dos sindicatos. O seu desenvolvimento foi crucial na atual crise de solidão: aumentou o fosso dos rendimentos. Criou um mundo dividido entre vencedores e fracassados, Estados escravizados pelos mercados e uma sociedade onde temos de nos defender. Uma sociedade onde cada um tem de cuidar de si mesmo pois mais ninguém o fará é uma sociedade de solitários. O capitalismo neoliberal veio remodelar não só relações económicas, mas também relações pessoais. Em 1981, Margaret Tatcher dizia ao Sunday Times: “A economia é o método; o objetivo é mudar a alma e o coração.” 

A solidão e o populismo de direita também andam de mãos dadas. Foi Hannah Arendt que escreveu pela primeira vez, no livro As origens do totalitarismo, sobre o elo entre a solidão e a política da intolerância (sobre como pessoas isoladas reagem com agressividade). A solidão não é de todo o único fator impulsionador do populismo, mas é um dos mais importantes. Há atualmente diversos estudos disponíveis sobre o papel da solidão no reforço de partidos como o Front-National, de Le Pen, e o PVV neerlandês, por exemplo. A participação em ações cívicas ou comunitárias reduz-se substancialmente, há falta de amigos, etc. Num estudo feito junto dos eleitores de Trump, a maioria das pessoas respondia ‘conto apenas comigo mesmo’. A solidão é também o sentimento de ser tratado injustamente, de se ver abandonado pelas instituições e incapacitado pelo Estado. A ausência de apoio das instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais, conduzem à obstrução da cidadania. Tal como o vazio de reconhecimento pelos nossos concidadãos. As pessoas que sofrem descriminações raciais, étnicas ou xenófobas sentem-se ainda mais solitárias. Bem como aquelas que são visadas por comportamentos sexistas e que são, como sabemos, na maioria mulheres.

E depois há as tecnologias. À medida que o nosso mundo se tem tornado cada vez mais pequeno com o aumento da conectividade através da Internet e das redes sociais, tem também vindo a tornar-se mais solitário. Porquê? Os écrãs estão a devorar a nossa capacidade de estar atento. Os smartphones tornaram-nos zangados e tribais, roubam a nossa atenção em detrito da capacidade de comunicar eficazmente e com empatia. Algoritmos avaliam capacidades cognitivas, características psicológicas, inteligência emocional e aptidões sociais e são manipulados para criar viés de rejeição ou inclusão (para dar um exemplo, a Amazon contratou uma empresa de IA que aprendeu a rejeitar CV’s de mulheres na contratação). Além disso, não percebemos como os algoritmos funcionam, a sua opacidade exacerba o nosso sentimento de impotência. E a solidão medra no vácuo criado pela impotência. Somos observados e, contudo, somos totalmente invisíveis. Ninguém está a escutar, sentimo-nos vulneráveis e sem controlo.

Desde 2020, as restrições para conter o vírus SARS-CoV 2 vieram agravar a situação, com elevado custo e consequências potencialmente graves para a saúde mental e física, um risco amplificado naqueles que têm doenças mentais pré-existentes. Mas perante o hodierno flagelo da felicidade, a solidão é um estigma: muitas pessoas negam que se sentem sozinhas. Vivemos no tempo mais conectado da história da humanidade e sentimo-nos isolados, esquecendo também que a solidão e a monotonia têm também um lado positivo: são essenciais para a abertura ao pensamento crítico e para a fruição da criatividade.

Como podemos passar da solidão à solitude? Um dos segredos é a conexão com a natureza. Passar tempo na natureza, sozinho, com amigos ou com a família, irá acabar com qualquer solidão e transformá-la em solitude. Além disso, passar tempo na natureza leva a uma melhor saúde geral, reduzindo os riscos de contrair inúmeras doenças. Esta é uma das razões porque é tão importante trazer a natureza para a cidade e porque cidades com falta de árvores e jardins como Lisboa, ao contrário do que algumas mensagens concentradas apenas na inovação tecnológica tentam passar, não são um exemplo para o futuro. 

Outra estratégia é usufruir de silêncio. A aceitação de si próprio vem e é potenciada de muitas maneiras através do silêncio. O silêncio pode ser incómodo, mas quando se está totalmente conectado e confortável consigo mesmo, não há nada de estranho no silêncio. Podemos começar por abandonar os auscultadores alguns minutos por dia. Por outro lado, a solidão não é apenas causada pelas circunstâncias da nossa vida privada e familiar, mas também pela forma como atualmente trabalhamos: os escritórios abertos são um exemplo de como a arquitetura se tem vindo a tornar hostil, um dos muitos fatores que tornaram o local de trabalho um espaço especialmente alienador e muitos outros aspetos destinados ao aumento da produtividade estão, afinal, a produzir o efeito contrário por nos fazerem sentir isolados.

Para que serve a solidão? Porque se torna ameaçadora? Como podemos usufruir da nossa solidão num mundo que se tornou mais veloz do que nunca? Atlas da Solidão foi um programa interdisciplinar construído para abordar o tema dos pontos de vista teórico, simbólico e prático. O programa — que incluiu conversas, um concerto, uma oficina para adolescentes, um curso online, performances, dança e uma exposição — decorreu na Appleton, em Lisboa, de 30 de março a 29 de abril de 2023.

Programa
31 março – 29 abril: Quero um dia em que não se espere nada de mim
Exposição coletiva com obras de Bert Timmermans, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues e Pedro Lagoa

4 e 5 abril: Terra Nullius, de Paula Diogo
Caminhada-espetáculo (versão Do It Yourself criada para o Atlas da Solidão)

10 a 13 abril: Melancolia, arte e literatura, por Vrndavana Vilasini
Curso online

14 abril: Margarida Garcia e Manuel Mota
Concerto

15 abril: O mapa, por Joana Cavadas
Laboratório de expressão experimental com desenvolvimento de um objeto artístico que resultou numa publicação (14 aos 17 anos)

20 e 21 abril: Comoção, de David Marques
Dança (estreia absoluta)

28 abril: Approach and Enter, de Vânia Rovisco
Performance-instalação no âmbito da exposição

29 abril: Uma comunidade de solidões*
Conferências de encerramento com Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)


Ficha técnica
Artistas: Bert Timmermans, David Marques, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Cavadas, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues, Manuel Mota, Margarida Garcia, Paula Diogo, Pedro Lagoa, Vânia Rovisco, Vrndavana Vilasini
Conferencistas: Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia) e Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Conceção, direção artística e comunicação: Marta Rema
Produção: Ricardo Batista
Design gráfico: João M. Machado
Assessoria de imprensa: Rita Bonifácio/Paris Texas
Apoio à comunicação: Ricardo Rodrigues
Fotografia: Alípio Padilha
Vídeo: Francisca Manuel
Parceria: Appleton
Apoio à comunicação: Antena 2, Buala, Baldio, CMLisboa, Coffeepaste, Umbigo
Organização: efabula
Financiamento: República Portuguesa — Cultura / Direção-Geral das Artes


*Título inspirado no livro Sobre a ideia de uma comunidade de solitários, de Pascal Quignard, publicado no Sr. Teste.


Duane Michals, The Human Condition, 6 impressões em folha de gelatina de prata com texto manuscrito, cada fotografia 12,8 x 17,8 cm.

26 de maio de 2023

“Oh overrunning river driven by the force of love. Flow to us flow to us!”

Forough Farrokhzad

22 de maio de 2023

O filme começa e penso:
 
quando morrer, vou ter tantas saudades de estar viva.

20 de maio de 2023

Ontem, numa festa, alguém falou de alguém e a seguir disse a palavra Kyiv. Os meus amigos eram músicos, uma delas contava a história de um músico com quem tocou recentemente na Alemanha que, de forma totalmente arbitrária e por uma questão de sorte, havia conseguido não ser deportado para a Ucrânia e tinha entrado no corredor dos pedidos de proteção nacional para residência e asilo. A sorte de ser um refugiado neste momento ao invés de integrar à força o exército ucraniano e a enorme estranheza de ouvir essa palavra hoje, fazendo eco de épocas terríveis que mantêm sobre nós a sinistra ameaça de voltarem a acontecer. «Mas é difícil», a minha amiga baixou a voz como se a angústia a asfixiasse. «Como é que voltas?» E, de maneira estranha, todos percebíamos como o regresso daquela pessoa ao seu país seria, senão impossível, sem dúvida complicado. Que sustentava a família inteira através da música a partir da Alemanha, continuou, mas que não podia vê-los. Que ele também percebia como alguém que está a ser atacado há tantos anos pode querer defender o seu país. Que os russos na Alemanha iam aos concertos dele e lhe declaravam a sua solidariedade. «Esses também vivem escondidos», repliquei, e a minha amiga corroborou vividamente a ideia sublinhando a sua existência. «Ele falou disso tudo», e o murmúrio da guerra na sua voz chegava aos meus ouvidos numa festa com música tecno em Lisboa onde as guerras que nos dividem são contra as hordas de turistas e a falta de habitação, onde, longe do terror da preservação da vida, assistimos ao naufrágio da cidade que todos procuram e a outros exílios. «Este sítio vai desaparecer», ouvi dizer várias vezes durante a noite a pessoas diferentes sobre o local onde nos encontrávamos, uma coletividade com um salão de festas, um palco, um bar, onde havíamos entrado atalhando caminho através de um restaurante de comida indiana com três funcionários, mas apenas uma mesa e música alta que, descubro também, está aberto há menos de um mês. No caminho até casa, pouco tempo depois, misturava-me com as filas de franceses que regressavam aos hotéis com os rostos acabados, com asiáticos da Índia com medo de olhar para mim e asiáticos da China indiferentes à minha passagem, grupos de nórdicos, ingleses e americanos bêbedos abraçados a gritar e a cantar, intermináveis filas de carros a apitar uns aos outros parados na Baixa e no Bairro Alto embora fosse pouco antes da uma da manhã, mulheres cuja puberdade me inquietou de salto alto e vestidos curtos brilhantes a saltar por cima dos buracos das obras, polícias a pares ou em batalhões. No elétrico mais luzes, mais turistas, turistas que tiram fotografias de dentro, turistas que tiram fotografias de fora. Ninguém a manifestar a sua solidariedade.