9 de março de 2020

Ainda jovem, depressa concebeu a ideia de que um dia teria de deixar de respirar e de andar, de pensar e de comer, de dormir e de trabalhar e, tendo frequentado tanto mansardas como faustosos salões, lidado com homens de diversa índole, encontrou silenciosamente o seu próprio território, descobrindo no recolhimento um estado de felicidade próximo da perfeição.

Robert Walser, Histórias de imagens.

5 de março de 2020

Os aimarás, um povo originário da região andina da América do Sul, concebem de uma forma diferente a associação entre o tempo e o espaço. Em aimará, a palavra ‘nayra’ significa ‘passado’ mas também significa ‘à frente’, ‘à vista’. E a palavra ‘quipa’, que significa ‘futuro’, também indica ‘atrás’. Isto é, na língua aimará o passado está à frente e o futuro, atrás. Sabemos que isto reflete a sua maneira de pensar, porque também expressam esta relação usando o corpo. Os aimarás esticam os braços para trás para se referirem ao futuro e para a frente para aludirem ao passado.

Mariano Sigman, A vida secreta da mente.

27 de fevereiro de 2020

Quando tinha cerca de 9 anos, numa brincadeira com o meu pai e com a minha irmã, descobri que afinal, como sempre tinha acreditado, não ouvia como os outros. Nos dias a seguir, foi-me dito que era surda de um ouvido de nascença, havendo forte probabilidade de vir a ficar completamente surda mais tarde. Foi num desses dias que coloquei pela primeira vez a pergunta “O que é o silêncio?”. Com o tempo, o questionamento divergiu para outras perguntas. “O que é o silêncio para um surdo” passou a “O que é o silêncio para um mudo” e percebi que há muitas perspetivas sobre o silêncio, nomeadamente a de ser uma forma de comunicação não verbal importantíssima. Pergunto-me pois qual é a sua relação com a linguagem. Se nasceu com o espaço e o tempo. Porque é tão importante para a religião. Qual é o seu papel na criação. E, como no Atmosphere dos Joy Division, quando é que pode ser perigoso. 
Parte integrante do programa As coisas fundadas no silêncio, as conferências dos dias 3 e 4 de março, que terão lugar no Pequeno Auditório da Culturgest, vão andar em torno destas questões. Doze oradores de áreas das ciências naturais, humanas e das artes, fazem uma análise crítica sobre o significado do silêncio a partir dos seus corpos de trabalho, investigação e criação. As suas diferentes abordagens em diálogo, constitui uma oportunidade e um desafio para pessoas que normalmente não se encontram. 

Jonas Mekas, As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty.

22 de fevereiro de 2020

Oh, se fôssemos índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o pescoço e a cabeça.

Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.

16 de fevereiro de 2020

There is nothing at all to be done about it;
There is nothing to do about anything.
And now it is nearly time for the News;
We must listen to the Weather Report
And the international catastrophes.

T.S. Eliot, The Family Reunion.

5 de fevereiro de 2020

A CHILD'S AMAZE

SILENT and amazed, even when a little boy,
I remember I heard the preacher every Sunday put God in his
statements,
As contending against some being or influence.


Walt Whitman

4 de fevereiro de 2020

Saio do autocarro e dou um passo em direção ao meu bairro, cheio de árvores, pequenos jardins e canteiros por estes dias de sol já a rebentar de verde, tanto, que a fila de jacarandás da avenida se encheu de folhas — ainda em janeiro. Um cheiro primaveril atinge-me com uma pancada e os meus passos tornam-se mais lentos e mais prazerosos. Enquanto caminho, descubro em mim uma felicidade, autónoma e inviolável como uma galáxia, cujas razões desconheço. A serenidade das ruas nesta hora crepuscular penetra-me sem que o possa impedir e nem dos meus mortos sinto falta, pois tudo está vivo em mim.

24 de janeiro de 2020

INTERVIEWER: Mr. Faulkner, you were saying a while ago that you don't like interviews.

WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.

21 de janeiro de 2020

O olhar vago dos velhos nas fotografias perturba-me e, ao mesmo tempo, alegra-me. Para onde olham? O que veem? Parecem ausentes e, contudo, correspondem ao momento. Para além do desajuste às exigências da vida, essa vagueza — imagino eu com ingenuidade — é a possibilidade de encontrar outra vida, outra história, como as que uma criança encontra nas sombras. Apetece-me defendê-los dos bolos de aniversário cheios de velas, da violência das perguntas que se repetem, sempre as mesmas, da Cristina Ferreira e dos dias cinzentos, sem ninguém. Mas talvez eles não precisem de defesa. Talvez as velas, as perguntas e a Cristina Ferreira preencham uma cavidade que entretanto se mostrou oca.

18 de janeiro de 2020

O luto sobrepõe-se à melancolia.

*

Há que dirigir-se ao outro fora da subordinação de qualquer eficácia.

*

É necessário falar a sua própria linguagem. Isto é um problema político.

*

São os murmúrios do mundo que nos sustentam.

*

Nunca se procura o que se encontra.

11 de janeiro de 2020

(...) 14 de janeiro

todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).

Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu".  E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.

13 de dezembro de 2019

nos meus sonhos
vou a um lugar
onde os cigarros abundam
como o leite e o mel
na terra de Canaã
gosto mais de ir ao jardim no outono, no inverno e à noite. quando passo por lá e o nevoeiro preenche as suas ruas, é-me irresistível entrar e se, para além disso, a luz dos candeeiros estiver acesa, o jardim torna-se uma cápsula onde desejaria viver para sempre. a luz de outono é perfeita para ler, ao contrário do que acontece no verão, quando o calor torna o exterior inaceitável. é verdade que a primavera traz a sedução dos seus perfumes, os cantos inumeráveis, a esplêndida profusão de verdes, mas as cores do outono cativam-me imensamente, com os seus matizes, os tapetes que as folhas formam, o sobressalto que provocam quando nos deparamos com elas na copa de uma árvore. e quem pode resistir à desolação enigmática de um jardim no inverno? o frio e o silêncio formam um casulo onde a paz é octaviana, como se tivesse estado sempre em nós. confesso que também gosto do jardim com menos pessoas. prefiro ter o jardim só para mim, com o parque e os bancos vazios, os cafés fechados, o recinto de futebol deserto, porventura uma ou outra alma que passe por mim como um vulto. quero ouvir uma folha cair e um pássaro pousar no ramo.

7 de dezembro de 2019

Kate Tempest

I leave work
and immediately take refuge
on her voice
as if she were my longed for silence,
my breath
and my immunity.
she shelters me
and through her
I escape
from nausea,
struggle, clichés, slogans,
complaint and voracity,
until I can feel
human again.
she pulls me out of the dirt
like a hook,
she entangles me
to the throat.
I drop my head,
close my eyes,
there was never
a time like this.
I drink an ocean
and I fall
to the center of the earth
where she swallows me.
impassive and unapologetic
my body crosses the city
as a language
that contains
the naked horror
of truth.
there’s not a drop
of need in me.
in awe, I am nourished,
whole,
and filled with fire.