Os aimarás, um povo originário da região andina da América do Sul, concebem de uma forma diferente a associação entre o tempo e o espaço. Em aimará, a palavra ‘nayra’ significa ‘passado’ mas também significa ‘à frente’, ‘à vista’. E a palavra ‘quipa’, que significa ‘futuro’, também indica ‘atrás’. Isto é, na língua aimará o passado está à frente e o futuro, atrás. Sabemos que isto reflete a sua maneira de pensar, porque também expressam esta relação usando o corpo. Os aimarás esticam os braços para trás para se referirem ao futuro e para a frente para aludirem ao passado.
Mariano Sigman, A vida secreta da mente.
5 de março de 2020
27 de fevereiro de 2020
Quando tinha cerca de 9 anos, numa brincadeira com o meu
pai e com a minha irmã, descobri que afinal, como sempre tinha
acreditado, não ouvia como os outros. Nos dias a seguir, foi-me dito que
era surda de um ouvido de nascença, havendo forte probabilidade de vir a
ficar completamente surda mais tarde. Foi
num desses dias que coloquei pela primeira vez a pergunta “O que é o
silêncio?”. Com o tempo, o questionamento divergiu para outras
perguntas. “O que é o silêncio para um surdo” passou a “O que é o
silêncio para um mudo” e percebi que há muitas perspetivas sobre o
silêncio, nomeadamente a de ser uma forma de comunicação não verbal
importantíssima. Pergunto-me pois qual é a sua relação com a linguagem.
Se nasceu com o espaço e o tempo. Porque é tão importante para a
religião. Qual é o seu papel na criação. E, como no Atmosphere dos Joy Division, quando é que pode ser perigoso.
Parte integrante do programa As coisas fundadas no silêncio, as conferências dos dias 3 e 4 de março, que terão lugar no Pequeno Auditório da Culturgest, vão andar em torno destas questões. Doze
oradores de áreas das ciências naturais, humanas e das artes, fazem uma
análise crítica sobre o significado do silêncio a partir dos seus corpos
de trabalho, investigação e criação. As suas diferentes abordagens em
diálogo, constitui uma oportunidade e um desafio para pessoas que
normalmente não se encontram.
Jonas Mekas, As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. |
22 de fevereiro de 2020
Oh, se fôssemos
índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados
contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até
largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as
rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa
frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o
pescoço e a cabeça.
Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.
Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.
16 de fevereiro de 2020
5 de fevereiro de 2020
4 de fevereiro de 2020
Saio do autocarro e dou um passo em direção ao meu bairro, cheio de árvores, pequenos jardins e canteiros por estes dias de sol já a rebentar de verde, tanto, que a fila de jacarandás da avenida se encheu de folhas — ainda em janeiro. Um cheiro primaveril atinge-me com uma pancada e os meus passos tornam-se mais lentos e mais prazerosos. Enquanto caminho, descubro em mim uma felicidade, autónoma e inviolável como uma galáxia, cujas razões desconheço. A serenidade das ruas nesta hora crepuscular penetra-me sem que o possa impedir e nem dos meus mortos sinto falta, pois tudo está vivo em mim.
24 de janeiro de 2020
INTERVIEWER: Mr. Faulkner, you were saying a while ago that you don't like interviews.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
21 de janeiro de 2020
O olhar vago dos velhos nas fotografias perturba-me e, ao mesmo tempo, alegra-me. Para onde olham? O que veem? Parecem ausentes e, contudo, correspondem ao momento. Para além do desajuste às exigências da vida, essa vagueza — imagino eu com ingenuidade — é a possibilidade de encontrar outra vida, outra história, como as que uma criança encontra nas sombras. Apetece-me defendê-los dos bolos de aniversário cheios de velas, da violência das perguntas que se repetem, sempre as mesmas, da Cristina Ferreira e dos dias cinzentos, sem ninguém. Mas talvez eles não precisem de defesa. Talvez as velas, as perguntas e a Cristina Ferreira preencham uma cavidade que entretanto se mostrou oca.
18 de janeiro de 2020
11 de janeiro de 2020
(...) 14 de janeiro
todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).
Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).
Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.
13 de dezembro de 2019
gosto mais de ir ao jardim no outono, no inverno e à noite. quando passo por lá e o nevoeiro preenche as suas ruas, é-me irresistível entrar e se, para além disso, a luz dos candeeiros estiver acesa, o jardim torna-se uma cápsula onde desejaria viver para sempre. a luz de outono é perfeita para ler, ao contrário do que acontece no verão, quando o calor torna o exterior inaceitável. é verdade que a primavera traz a sedução dos seus perfumes, os cantos inumeráveis, a esplêndida profusão de verdes, mas as cores do outono cativam-me imensamente, com os seus matizes, os tapetes que as folhas formam, o sobressalto que provocam quando nos deparamos com elas na copa de uma árvore. e quem pode resistir à desolação enigmática de um jardim no inverno? o frio e o silêncio formam um casulo onde a paz é octaviana, como se tivesse estado sempre em nós. confesso que também gosto do jardim com menos pessoas. prefiro ter o jardim só para mim, com o parque e os bancos vazios, os cafés fechados, o recinto de futebol deserto, porventura uma ou outra alma que passe por mim como um vulto. quero ouvir uma folha cair e um pássaro pousar no ramo.
7 de dezembro de 2019
Kate Tempest
I leave work
and immediately take refuge
on her voice
as if she were my longed for silence,
my breath
my breath
and my immunity.
she shelters me
and through her
I escape
she shelters me
and through her
I escape
from nausea,
struggle, clichés, slogans,
complaint and voracity,
until I can feel
human again.
she pulls me out of the dirt
like a hook,
she entangles me
to the throat.
I drop my head,
close my eyes,
there was never
a time like this.
I drink an ocean
and I fall
to the center of the earth
where she swallows me.
impassive and unapologetic
my body crosses the city
as a language
that contains
the naked horror
of truth.
there’s not a drop
of need in me.
in awe, I am nourished,
whole,
and filled with fire.
struggle, clichés, slogans,
complaint and voracity,
until I can feel
human again.
she pulls me out of the dirt
like a hook,
she entangles me
to the throat.
I drop my head,
close my eyes,
there was never
a time like this.
I drink an ocean
and I fall
to the center of the earth
where she swallows me.
impassive and unapologetic
my body crosses the city
as a language
that contains
the naked horror
of truth.
there’s not a drop
of need in me.
in awe, I am nourished,
whole,
and filled with fire.
1 de dezembro de 2019
Criar raízes na água
Criar raízes nos suspiros
Criar raízes no fumo, nas nuvens
Criar raízes em mil pequenas bolhas
Criar raízes nos olhares
Criar raízes em copos de vinho
Criar raízes em pele alheia
Criar raízes num livro
Criar raízes na tua voz
Criar raízes no meu próprio pranto
Criar raízes onde o luar ilumina
Criar raízes numa música
Criar raízes na tua cona molhada
A janela aberta é um milagre esta manhã
Alguém está a fritar ovos com batatas e chouriço no andar de baixo
Rodrigo García
Criar raízes nos suspiros
Criar raízes no fumo, nas nuvens
Criar raízes em mil pequenas bolhas
Criar raízes nos olhares
Criar raízes em copos de vinho
Criar raízes em pele alheia
Criar raízes num livro
Criar raízes na tua voz
Criar raízes no meu próprio pranto
Criar raízes onde o luar ilumina
Criar raízes numa música
Criar raízes na tua cona molhada
A janela aberta é um milagre esta manhã
Alguém está a fritar ovos com batatas e chouriço no andar de baixo
Rodrigo García
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