4 de fevereiro de 2020
Saio do autocarro e dou um passo em direção ao meu bairro, cheio de árvores, pequenos jardins e canteiros por estes dias de sol já a rebentar de verde, tanto, que a fila de jacarandás da avenida se encheu de folhas — ainda em janeiro. Um cheiro primaveril atinge-me com uma pancada e os meus passos tornam-se mais lentos e mais prazerosos. Enquanto caminho, descubro em mim uma felicidade, autónoma e inviolável como uma galáxia, cujas razões desconheço. A serenidade das ruas nesta hora crepuscular penetra-me sem que o possa impedir e nem dos meus mortos sinto falta, pois tudo está vivo em mim.
24 de janeiro de 2020
INTERVIEWER: Mr. Faulkner, you were saying a while ago that you don't like interviews.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
WILLIAM FAULKNER: The reason I don't like interviews is that I seem to react violently to personal questions. If the questions are about the work, I try to answer them. When they are about me, I may answer or I may not, but even if I do, if the same question is asked tomorrow, the answer may be different.
21 de janeiro de 2020
O olhar vago dos velhos nas fotografias perturba-me e, ao mesmo tempo, alegra-me. Para onde olham? O que veem? Parecem ausentes e, contudo, correspondem ao momento. Para além do desajuste às exigências da vida, essa vagueza — imagino eu com ingenuidade — é a possibilidade de encontrar outra vida, outra história, como as que uma criança encontra nas sombras. Apetece-me defendê-los dos bolos de aniversário cheios de velas, da violência das perguntas que se repetem, sempre as mesmas, da Cristina Ferreira e dos dias cinzentos, sem ninguém. Mas talvez eles não precisem de defesa. Talvez as velas, as perguntas e a Cristina Ferreira preencham uma cavidade que entretanto se mostrou oca.
18 de janeiro de 2020
11 de janeiro de 2020
(...) 14 de janeiro
todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).
Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia. (...).
Al Berto, O Medo.
Teria 72 anos hoje.
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.
13 de dezembro de 2019
gosto mais de ir ao jardim no outono, no inverno e à noite. quando passo por lá e o nevoeiro preenche as suas ruas, é-me irresistível entrar e se, para além disso, a luz dos candeeiros estiver acesa, o jardim torna-se uma cápsula onde desejaria viver para sempre. a luz de outono é perfeita para ler, ao contrário do que acontece no verão, quando o calor torna o exterior inaceitável. é verdade que a primavera traz a sedução dos seus perfumes, os cantos inumeráveis, a esplêndida profusão de verdes, mas as cores do outono cativam-me imensamente, com os seus matizes, os tapetes que as folhas formam, o sobressalto que provocam quando nos deparamos com elas na copa de uma árvore. e quem pode resistir à desolação enigmática de um jardim no inverno? o frio e o silêncio formam um casulo onde a paz é octaviana, como se tivesse estado sempre em nós. confesso que também gosto do jardim com menos pessoas. prefiro ter o jardim só para mim, com o parque e os bancos vazios, os cafés fechados, o recinto de futebol deserto, porventura uma ou outra alma que passe por mim como um vulto. quero ouvir uma folha cair e um pássaro pousar no ramo.
7 de dezembro de 2019
Kate Tempest
I leave work
and immediately take refuge
on her voice
as if she were my longed for silence,
my breath
my breath
and my immunity.
she shelters me
and through her
I escape
she shelters me
and through her
I escape
from nausea,
struggle, clichés, slogans,
complaint and voracity,
until I can feel
human again.
she pulls me out of the dirt
like a hook,
she entangles me
to the throat.
I drop my head,
close my eyes,
there was never
a time like this.
I drink an ocean
and I fall
to the center of the earth
where she swallows me.
impassive and unapologetic
my body crosses the city
as a language
that contains
the naked horror
of truth.
there’s not a drop
of need in me.
in awe, I am nourished,
whole,
and filled with fire.
struggle, clichés, slogans,
complaint and voracity,
until I can feel
human again.
she pulls me out of the dirt
like a hook,
she entangles me
to the throat.
I drop my head,
close my eyes,
there was never
a time like this.
I drink an ocean
and I fall
to the center of the earth
where she swallows me.
impassive and unapologetic
my body crosses the city
as a language
that contains
the naked horror
of truth.
there’s not a drop
of need in me.
in awe, I am nourished,
whole,
and filled with fire.
1 de dezembro de 2019
Criar raízes na água
Criar raízes nos suspiros
Criar raízes no fumo, nas nuvens
Criar raízes em mil pequenas bolhas
Criar raízes nos olhares
Criar raízes em copos de vinho
Criar raízes em pele alheia
Criar raízes num livro
Criar raízes na tua voz
Criar raízes no meu próprio pranto
Criar raízes onde o luar ilumina
Criar raízes numa música
Criar raízes na tua cona molhada
A janela aberta é um milagre esta manhã
Alguém está a fritar ovos com batatas e chouriço no andar de baixo
Rodrigo García
Criar raízes nos suspiros
Criar raízes no fumo, nas nuvens
Criar raízes em mil pequenas bolhas
Criar raízes nos olhares
Criar raízes em copos de vinho
Criar raízes em pele alheia
Criar raízes num livro
Criar raízes na tua voz
Criar raízes no meu próprio pranto
Criar raízes onde o luar ilumina
Criar raízes numa música
Criar raízes na tua cona molhada
A janela aberta é um milagre esta manhã
Alguém está a fritar ovos com batatas e chouriço no andar de baixo
Rodrigo García
29 de novembro de 2019
Não quero dar-me bem com toda a gente. Não gosto de toda a gente. Não sou nem quero ser politicamente correta. Mas também não preciso de ter uma opinião sobre tudo. Há assuntos que não me interessam. Outros há ainda que me interessam sem que sinta necessidade de me manifestar sobre eles. Não tenho uma fotografia para publicar todos os dias no Instagram. Nem todas as semanas nem todos os meses. Não preciso de publicar nas redes sociais os livros que leio, os espetáculos a que assisto, as exposições que visito. Devia haver mais silêncio. São as crianças que dizem tudo o que lhes passa pela cabeça. Escolher não falar é um sinal de emancipação. Se isso custar a admiração de alguém, tanto melhor, será revelador. Gostaria de ter um impacto discreto no mundo, reservado, como um segredo que só se oferece a alguns. Dito isto, a verdade é que tenho — sempre tive — dificuldade com as palavras. Não sou prolixa, sou nefelibata. Prezo a minha solidão e claramente prefiro escrever do que falar. Pressinto a ameaça dos mal entendidos em cada diálogo, como se se tratassem de armadilhas potenciais, outros como verdadeiros flagelos infligidos pela verborreia e pela vaidade, incluindo a minha própria. Além disso, preciso de esvaziar a cabeça mais do que me permito. O prazer da contemplação é das coisas mais preciosas que descobri na vida. Não ter de me explicar ao mundo, nem de me provar, é condição indispensável de uma existência que dispensa o alarde da felicidade.
28 de novembro de 2019
o corpo
ubíquo e pesado
o céu manifestava-se
através das suas cores,
nuvens e estrelas.
o vento e os pássaros
atravessavam-no como
sons relativamente
concretos,
isto é,
singulares.
olhei para ele
enquanto me falavas,
sem esperar submergir-me.
escancarado o coração
sonhei beijar-te ali,
tocar-te nos ouvidos,
nas mãos.
não o fiz.
esperei que acabasses
para apontar
para o alto
e ver nos teus olhos
e veres nos meus olhos.
ubíquo e pesado
o céu manifestava-se
através das suas cores,
nuvens e estrelas.
o vento e os pássaros
atravessavam-no como
sons relativamente
concretos,
isto é,
singulares.
olhei para ele
enquanto me falavas,
sem esperar submergir-me.
escancarado o coração
sonhei beijar-te ali,
tocar-te nos ouvidos,
nas mãos.
não o fiz.
esperei que acabasses
para apontar
para o alto
e ver nos teus olhos
e veres nos meus olhos.
24 de novembro de 2019
19 de novembro de 2019
Sobre o fim do mundo
O tema do fim do mundo apareceu várias vezes na história da cristandade e, em todos os períodos, surgiram profetas que anunciavam como próximo o último dia. É singular que hoje essa função escatológica - que a igreja esqueceu - tenha sido adotada pelos cientistas, que se apresentam cada vez mais frequentemente como profetas, que preveem e descrevem com absoluta certeza as catástrofes climáticas que levarão ao fim da vida na terra. Singular, mas não surpreendente, caso se considere que, na modernidade, a ciência substituiu a fé e assumiu uma função propriamente religiosa – ela é, aliás, em todos os sentidos, a religião do nosso tempo, aquilo no qual os homens acreditam (ou, ao menos, acreditam acreditar).
Como qualquer religião, a religião da ciência também não podia deixar de ter uma escatologia, isto é, um dispositivo que, mantendo os fiéis no medo, reforça a fé deles e, ao mesmo tempo, garante o domínio da classe sacerdotal. Aparições como Greta são, nesse sentido, sintomáticas: Greta acredita cegamente naquilo que os cientistas profetizam e espera o fim do mundo em 2030, exatamente como os milenaristas na Idade Média, que acreditavam no retorno eminente do messias para salvar o mundo. Não menos sintomática é uma figura como aquela do inventor de Gaia, um cientista que, concentrando os seus diagnósticos apocalípticos sobre um único fator – a percentual de CO2 na atmosfera -, declara, com estupefaciente candor, que a salvação da humanidade está na energia nuclear. O que está em jogo, em ambos os casos, tem um caráter religioso e não científico, que se revela na função central que um vocábulo – a salvação - tirado da filosofia cristã da história exerce.
O fenômeno é ainda mais inquietante na medida em que a ciência nunca incluiu a escatologia entre as próprias tarefas, e é possível que o emprego da nova função profética traia a consciência da própria inegável responsabilidade nas catástrofes das quais prevê a chegada. Naturalmente, como qualquer religião, a religião da ciência também possui os seus incrédulos e os seus adversários, isto é, os adeptos da outra grande religião da modernidade: a religião do dinheiro. Porém, as duas religiões, aparentemente divididas, estão secretamente em solidariedade, uma vez que foi certamente a aliança - cada vez mais forte - entre ciência, tecnologia e capital, que determinou a situação catastrófica que hoje os cientistas denunciam.
É preciso que fique claro que estas considerações não pretendem tomar posição quanto à realidade do problema da poluição e das transformações nocivas que as revoluções industriais geraram nas condições materiais e espirituais dos seres vivos. Ao contrário, alertando contra a confusão entre religião e verdade científica, e entre profecia e lucidez, trata-se de não deixar acriticamente que as partes interessadas ditem as próprias escolhas e as próprias motivações, que, em última análise, não podem ser senão políticas.
Giorgio Agamben, 18 de novembro de 2019, tradução Luan Sevignani.
O tema do fim do mundo apareceu várias vezes na história da cristandade e, em todos os períodos, surgiram profetas que anunciavam como próximo o último dia. É singular que hoje essa função escatológica - que a igreja esqueceu - tenha sido adotada pelos cientistas, que se apresentam cada vez mais frequentemente como profetas, que preveem e descrevem com absoluta certeza as catástrofes climáticas que levarão ao fim da vida na terra. Singular, mas não surpreendente, caso se considere que, na modernidade, a ciência substituiu a fé e assumiu uma função propriamente religiosa – ela é, aliás, em todos os sentidos, a religião do nosso tempo, aquilo no qual os homens acreditam (ou, ao menos, acreditam acreditar).
Como qualquer religião, a religião da ciência também não podia deixar de ter uma escatologia, isto é, um dispositivo que, mantendo os fiéis no medo, reforça a fé deles e, ao mesmo tempo, garante o domínio da classe sacerdotal. Aparições como Greta são, nesse sentido, sintomáticas: Greta acredita cegamente naquilo que os cientistas profetizam e espera o fim do mundo em 2030, exatamente como os milenaristas na Idade Média, que acreditavam no retorno eminente do messias para salvar o mundo. Não menos sintomática é uma figura como aquela do inventor de Gaia, um cientista que, concentrando os seus diagnósticos apocalípticos sobre um único fator – a percentual de CO2 na atmosfera -, declara, com estupefaciente candor, que a salvação da humanidade está na energia nuclear. O que está em jogo, em ambos os casos, tem um caráter religioso e não científico, que se revela na função central que um vocábulo – a salvação - tirado da filosofia cristã da história exerce.
O fenômeno é ainda mais inquietante na medida em que a ciência nunca incluiu a escatologia entre as próprias tarefas, e é possível que o emprego da nova função profética traia a consciência da própria inegável responsabilidade nas catástrofes das quais prevê a chegada. Naturalmente, como qualquer religião, a religião da ciência também possui os seus incrédulos e os seus adversários, isto é, os adeptos da outra grande religião da modernidade: a religião do dinheiro. Porém, as duas religiões, aparentemente divididas, estão secretamente em solidariedade, uma vez que foi certamente a aliança - cada vez mais forte - entre ciência, tecnologia e capital, que determinou a situação catastrófica que hoje os cientistas denunciam.
É preciso que fique claro que estas considerações não pretendem tomar posição quanto à realidade do problema da poluição e das transformações nocivas que as revoluções industriais geraram nas condições materiais e espirituais dos seres vivos. Ao contrário, alertando contra a confusão entre religião e verdade científica, e entre profecia e lucidez, trata-se de não deixar acriticamente que as partes interessadas ditem as próprias escolhas e as próprias motivações, que, em última análise, não podem ser senão políticas.
Giorgio Agamben, 18 de novembro de 2019, tradução Luan Sevignani.
17 de novembro de 2019
The silence afterwards
Try to be done now
with the provocations and sales statistics,
the Sunday breakfasts and incinerators,
the military parades, the architecture competitions
and the triple rows of traffic lights.
Get through it and be done
with the party preparations and marketing analyses
for it’s too late,
it’s far too late,
be done with it and come home
to the silence afterwards
that meets you like a hot spurt of blood against your forehead
and like the thunder on the way
and the chimes of mighty bells
that make your eardrums quiver
for words are no more,
there are no more words,
from now on everything will speak
with the voices of stones and trees.
The silence that lives in the grass
on the underside of each blade
and in the blue intervals between the stones.
The silence
that follows after the shots and the bird-song.
The silence
that lays a blanket over the one who is dead
and that waits on the stairs until everyone is gone.
The silence
that nestles like a fledgling between your hands,
your only friend.
Rolf Jacobsen
Try to be done now
with the provocations and sales statistics,
the Sunday breakfasts and incinerators,
the military parades, the architecture competitions
and the triple rows of traffic lights.
Get through it and be done
with the party preparations and marketing analyses
for it’s too late,
it’s far too late,
be done with it and come home
to the silence afterwards
that meets you like a hot spurt of blood against your forehead
and like the thunder on the way
and the chimes of mighty bells
that make your eardrums quiver
for words are no more,
there are no more words,
from now on everything will speak
with the voices of stones and trees.
The silence that lives in the grass
on the underside of each blade
and in the blue intervals between the stones.
The silence
that follows after the shots and the bird-song.
The silence
that lays a blanket over the one who is dead
and that waits on the stairs until everyone is gone.
The silence
that nestles like a fledgling between your hands,
your only friend.
Rolf Jacobsen
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