17 de julho de 2016
Perhaps my sense of reality is not very highly developed, perhaps I lack a sound and reassuring instinct for the solid facts of our earthly existence; I can’t always tell memories from dreams, and often I mistake dreams, coming to life again in colours, smells, sudden associations, with the eerie secret certainty of a past life from which time and space divide me no differently and no better than a light sleep in the early hours.
Annemarie Schwarzenbach, All the Roads Are Open: The Afghan Journey.
Annemarie Schwarzenbach, All the Roads Are Open: The Afghan Journey.
16 de julho de 2016
14 de julho de 2016
que coisas me ocupavam em criança? de tempos a tempos penso nisto e sempre me ocorre a imagem de desenhar casas, plantas de casas, retiradas de livros técnicos de arquitetura. não sei por que razão retirava tanto prazer e me ocupava tanto tempo com estes desenhos. sei que comecei por copiar as plantas e, uma vez tendo aprendido os códigos, comecei a construir as minhas próprias. lembrei-me disto hoje quando recordava, com um prazer idêntico, a casa de uma amiga de faculdade, com quem trabalhei algumas vezes. tal como outras casas que visitei e continuam vivas na minha memória, esta casa era em tudo diferente daquela em que vivia, bem como daquela onde tinha crescido. ficava no último piso de um edifício no Restelo, em Lisboa, ao lado de Monsanto, de uma bomba de gasolina, que ainda lá está e de uma loja de conveniência, que entretanto desapareceu. tinha uma grande sala com sofás azul claro e branco, com uma mesa de jantar em vidro e uma área com cadeiras, livros espalhados, e ramos de flores em cima dos aparadores. contudo, e apesar da grande beleza e evidente cuidado que alguém tinha tido na escolha dos objetos que a preenchiam, tudo se encontrava em grande desalinho. o pó amontoava-se, as flores estavam secas, as almofadas não eram sacudidas há muito, havia janelas partidas, algumas zonas dos tapetes pareciam não ser pisadas há anos. na verdade parecia que a casa não era ocupada. lembrei-me disto e imediatamente recordei que era a única peça da casa com luz, uma luz intensa vinda de três lados da sala. embora parecendo igualmente desabitado, o resto da casa era bastante sombrio, incluindo na escolha dos tons de tinta das paredes, e parecia pertencer a outra casa, esta antiga, senhorial, vitoriana. havia alguns quadros nas paredes e todas as minhas perguntas eram respondidas: quem eram aquelas pessoas? o que tinham feito? de quem era aquele quarto? porque é que esta sala está fechada? trouxe dessa casa, pelas mãos generosas da minha amiga, uma fotografia de uma mulher que aperta nos braços um bebé num dia de muito vento, com a paisagem da lagoa das sete cidades nos Açores por trás, que conservo até hoje como um tesouro. são pessoas que viveram naquela casa noutros tempos, quando estava cheia de vozes de crianças e ainda ninguém tinha morrido. talvez fosse isso o que me interessasse nas casas quando era criança: era uma forma de observar a precoce, mas lúcida, revelação de que tudo passa.
13 de julho de 2016
tê-lo-ia afirmado se não fosse verdade mas não esperava receber nada para além de desprezo. deste modo, abanou a cabeça, sublinhando a negativa. intrigou-o que o relógio estivesse atrasado, como se fosse impossível que os relógios se atrasassem, ou os corpos ou as cabeças, e portanto de repente tudo lhe parecia muito urgente. refletiu no enigma do relógio durante algum tempo mas não chegou a qualquer conclusão, acabando por decidir que era um relógio teimoso. a vida é, no fim de contas, uma coisa muito parecida, pensou. nascer, crescer, ter filhos e morrer por fim. não há nenhum motivo adequado que explique o seu decurso.
Ao fim de uma hora chegaram a uma clareira. Avançaram mais duzentos metros e estenderam-se de bruços sob uma árvore. Estava certo assim, mas que peso nos seus corações! Com voz baixa, de tom calmo apesar da respiração pesada, devida ao calor e ao passo acelerado em que tinham caminhado, F. disse:
— O que é?
S. fixou-o com um olhar ausente e deu-lhe uma resposta evasiva, que o surpreendeu. F. continuou:
— É impressionante como você é magra. Uma pele de anémica, uma tez descolorada. Os seus traços são insignificantes. Pelo menos, não está sozinha sobre a terra.
— Porque não?, respondeu S.
E neste instante, F. não encontrou nada para dizer. De tão óbvia, a pergunta desarmou-o por completo, talvez porque o que tivesse preparado para dizer também fosse demasiado previsível. Ou ainda por outra razão. Na verdade, F. não encontrava em S. senão beleza. Uma beleza íntima, que lhe trazia grande satisfação e prazer. Depois de lhe sorrir com um sorriso falso, S. voltou-lhe as costas, expondo a curva do seu dorso. «Ainda não vi tudo», pensou F.
— Onde vive?
— Então, já sabe o meu nome?
— Não sei. Quero apenas conhecê-la melhor.
— Isso depende da sua natureza.
F. deu uma grande gargalhada e depois respondeu:
— Sou um leão sobre uma rocha.
— Sim.
— Então já sabia?
— Se não soubesse não teria vindo consigo até aqui.
— Não fales.
— Não respondas.
— O que é?
S. fixou-o com um olhar ausente e deu-lhe uma resposta evasiva, que o surpreendeu. F. continuou:
— É impressionante como você é magra. Uma pele de anémica, uma tez descolorada. Os seus traços são insignificantes. Pelo menos, não está sozinha sobre a terra.
— Porque não?, respondeu S.
E neste instante, F. não encontrou nada para dizer. De tão óbvia, a pergunta desarmou-o por completo, talvez porque o que tivesse preparado para dizer também fosse demasiado previsível. Ou ainda por outra razão. Na verdade, F. não encontrava em S. senão beleza. Uma beleza íntima, que lhe trazia grande satisfação e prazer. Depois de lhe sorrir com um sorriso falso, S. voltou-lhe as costas, expondo a curva do seu dorso. «Ainda não vi tudo», pensou F.
— Onde vive?
— Então, já sabe o meu nome?
— Não sei. Quero apenas conhecê-la melhor.
— Isso depende da sua natureza.
F. deu uma grande gargalhada e depois respondeu:
— Sou um leão sobre uma rocha.
— Sim.
— Então já sabia?
— Se não soubesse não teria vindo consigo até aqui.
— Não fales.
— Não respondas.
12 de julho de 2016
descubro que os campos que vejo da janela
são corpos,
que recebem a luz à hora do fim da tarde
como fogos alastrados,
enquanto um comboio desliza sobre eles
indiferente à hora,
aos campos,
e aos corpos que o ocupam.
olho para os campos debruçada na janela
sabendo que são campos-corpos.
absorvidos neles mesmos
movem-se, existem, respiram, amam,
por vezes quase impercetivelmente,
outras vezes com ira impercetível
outras ainda com delicadeza,
como se não soubessem para onde vão
nem se interrogassem porque são lavrados,
estio após estio.
quando vi os campos-corpos moverem-se, sem se virarem,
pensei que ia enfurecer-me
mas afinal fiquei sem palavras
como se verdadeiramente tivesse engolido o mundo
ou melhor, como se o mundo me tivesse engolido a mim
perante a lavoura que brilha e se escurece.
olhando-a duvidosa,
observei sobre ela um eterno crepúsculo,
e perguntei-me, vendo os campos-corpos mover-se,
o que significa para ti o crepúsculo?
uma voz no altifalante
que se houve em todo o comboio,
até mesmo nas casas de banho,
diz
o comboio circula com atraso. pedimos desculpa pelos incómodos causados.
e, como se excluída do privilégio
de ter pressa,
nesse momento percebo
que o crepúsculo tem a qualidade de ser
metade luz,
metade sombra,
e que nele estas propriedades
são indivisíveis.
saio por uma porta que se abre ao pressionar um botão
e dirijo-me para o elevador
cuja porta se abre ao pressionar um botão.
chegando ao meu destino
as portas abrem-se de par em par,
são automáticas,
não lhes toco,
nem num botão
nem numa alavanca
nem espero
nem puxo
nem empurro,
opondo a força do corpo à mola aérea
que às vezes há nas portas
para que se fechem sozinhas.
depois, enquanto estou sentada à espera,
penso que talvez seja isso
o que procuramos,
o alívio de uma porta
que seja só uma porta.
é isso a eternidade.
são corpos,
que recebem a luz à hora do fim da tarde
como fogos alastrados,
enquanto um comboio desliza sobre eles
indiferente à hora,
aos campos,
e aos corpos que o ocupam.
olho para os campos debruçada na janela
sabendo que são campos-corpos.
absorvidos neles mesmos
movem-se, existem, respiram, amam,
por vezes quase impercetivelmente,
outras vezes com ira impercetível
outras ainda com delicadeza,
como se não soubessem para onde vão
nem se interrogassem porque são lavrados,
estio após estio.
quando vi os campos-corpos moverem-se, sem se virarem,
pensei que ia enfurecer-me
mas afinal fiquei sem palavras
como se verdadeiramente tivesse engolido o mundo
ou melhor, como se o mundo me tivesse engolido a mim
perante a lavoura que brilha e se escurece.
olhando-a duvidosa,
observei sobre ela um eterno crepúsculo,
e perguntei-me, vendo os campos-corpos mover-se,
o que significa para ti o crepúsculo?
uma voz no altifalante
que se houve em todo o comboio,
até mesmo nas casas de banho,
diz
o comboio circula com atraso. pedimos desculpa pelos incómodos causados.
e, como se excluída do privilégio
de ter pressa,
nesse momento percebo
que o crepúsculo tem a qualidade de ser
metade luz,
metade sombra,
e que nele estas propriedades
são indivisíveis.
saio por uma porta que se abre ao pressionar um botão
e dirijo-me para o elevador
cuja porta se abre ao pressionar um botão.
chegando ao meu destino
as portas abrem-se de par em par,
são automáticas,
não lhes toco,
nem num botão
nem numa alavanca
nem espero
nem puxo
nem empurro,
opondo a força do corpo à mola aérea
que às vezes há nas portas
para que se fechem sozinhas.
depois, enquanto estou sentada à espera,
penso que talvez seja isso
o que procuramos,
o alívio de uma porta
que seja só uma porta.
é isso a eternidade.
4 de julho de 2016
contrariando o movimento habitual, Miguel levantou-se e abriu a janela para fumar um cigarro. nesse momento, uma chuvada intensa cai, muito embora, desde há meses, o tempo fosse de secura. secretamente sabia-se fora do mundo. o exílio era modesto, porém, bem definido e não havia nada que contrariasse a sua lógica e portanto o aligeirasse. dito isto, nenhuma ânsia o perturbava: na cela podia viver-se perpetuamente, sem a aflição dos outros. nas suas paredes lisas, nenhum relógio soava e os desejos caíam como prumas no vento. naturalmente era ingénuo pois o tédio trespassava-o como um relâmpago.
3 de julho de 2016
isto passou-se no final de março, a primavera mostrava-se sem cuidado e por toda a parte, e eles, dóceis e ansiosos, submetiam-se a ela. vindo da sala, onde tinha estado quase toda a manhã a falar com a dona Elisa Berta, Horácio desce a escada e tropeça já no último degrau, rindo depois para disfarçar o susto. saíram os três, atravessaram a feira e o parque rapidamente, caminhando sempre em frente através das barracas de queijo e presunto, dos ramos de alfazema enrolados em papel manteiga, das tílias, dos plátanos e dos castanheiros, e entraram na igreja. isto não levou mais do que quinze, vinte minutos. Maria e Horácio sentaram-se na segunda fila atrás, mergulhada na escuridão, o que surpreendeu Catarina, que pretendia sentar-se com eles logo à frente. hesitou e a hesitação chegou para expor o segredo em plena luz do dia. Catarina em pé, sem decidir se se juntava a eles na segunda fila, ou se os deixava a sós e prosseguia caminho em direção ao altar como havia pensado, Maria corada a apertar as luvas entre as mãos e Horácio incapaz de esconder a felicidade que antecipava um momento a sós com Maria, ou seja, sem Catarina. com plena consciência no papel que desempenhava nos acontecimentos,
Maria estava vestida de negro, mas tinha pintado os olhos e os lábios. nenhum deles pronunciou palavra.
com a mesma naturalidade, uma alegria alucinante, muito próxima do sonho, regressou e fixou-se ameaçadoramente. tudo estava deserto. a matéria acumulada em enorme espessura difundiu-se como sujidade e esvaziou-se. a realidade prosseguia por sua própria conta e risco, como uma contradição ou um animal inocente. mas o seu coração, transbordante, através de todas as metamorfoses mostrava agora a sua repugnância. na verdade, sempre lá tinha estado.
2 de julho de 2016
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